‘Assisti ‘Mulan’ para que você não precise fazer isso’, dispara historiadora
Professora de universidade americana opina sobre o novo remake da Disney que tem causado controvérsia na internet
NOTA DO EDITOR: Kelly Hammond é professora assistente de história do Leste Asiático na Universidade de Arkansas. Seu primeiro livro, “China’s Muslims and Japan’s Empire: Centering Islam in World War II” (Os muçulmanos da China e o império do Japão: o Islã no centro da Segunda Guerra Mundial, sem tradução no Brasil), será lançado em novembro. Siga a jornalista no Twitter. As opiniões expressas aqui são da autora.
Com a nova versão live-action de “Mulan”, a Disney errou o alvo com as plateias da China e dos Estados Unidos. Como eles puderam errar tão feio? Existem inúmeras controvérsias em torno do lançamento do filme, mas a maioria delas nem mesmo tem a ver com o fato de o filme em si ser uma bagunça enfadonha, monótona e imprecisa.
Embora a história seja bem conhecida em todo o mundo, o filme em live-action é lento, repetitivo e carece de qualquer desenvolvimento substancial de personagem.
Em uma era em que diversidade e representação deveriam significar mais do que simplesmente colocar atores asiáticos na tela, a Disney perdeu a chance de fazer uma obra que fosse amplamente inclusiva e atraente. Com uma história atemporal tão amada quanto “Mulan”, parecia que a Disney havia feito uma aposta campeã.
Mas o estúdio conseguiu não apenas estragar completamente o filme em si como também mergulhar em um atoleiro político que poderia desfazer o equilíbrio precário que a companhia vem tentando manter, aquele entre ter lucro e reverenciar a China.
Esperava-se que o filme, que custou US$ 200 milhões, fosse um sucesso tanto na China quanto nos Estados Unidos. Em vez disso, o estúdio está recebendo críticas de espectadores em ambos os países e teve um desempenho decepcionante até agora, especialmente na China.
Grupos pró-democracia em Hong Kong bombaram a hashtag #BoycottMulan (#boicotemulan) antes do lançamento nos EUA. Eles queriam chamar a atenção para o fato de que a estrela de “Mulan”, Liu Yifei, ter apoiado a polícia de Hong Kong em uma postagem de mídia social em meio a acusações de repressão violenta da força contra protestos pró-democracia.
A Disney também foi criticada por filmar cenas em Xinjiang, onde o registro de abusos dos direitos humanos contra os uigures e outras minorias muçulmanas que vivem na região estão bem documentadas. Ignorar o que o governo dos Estados Unidos descreveu como o encarceramento ilegal de mais de um milhão de muçulmanos para “descrever com precisão” a história de Mulan não é apenas eticamente errado, mas sim uma completa imprecisão histórica.
Projetar as atuais fronteiras da República Popular da China até o século IV é um anacronismo histórico que reforça as reivindicações do atual estado autoritário na região ocidental conhecida como Xinjiang.
No filme, quando o imperador chinês pede que suas tropas “defendam a Rota da Seda” dos invasores rouran, ele reivindica territórios que estavam muito além do controle territorial da China até o século XVIII. A tradução literal da palavra Xinjiang é “os novos territórios”, já que a região só foi colocada sob o controle de Pequim pela Dinastia Manchu Qing e não foi transformada em província até 1884.
Ao fazer isso, a Disney reforça a linha partidária de que Xinjiang e outras partes do oeste da China que agora são consideradas cidades que compõem a histórica Rota da Seda eram – e sempre foram – uma parte da China. A região é central para a Iniciativa Cinturão e Rota do líder chinês
Xi Jinping. Afirmar que ela sempre fez parte da China é fundamental para a manutenção da legitimidade do Estado na região.
Desde que a hashtag #BoycottMulan e a reação contra as filmagens em Xinjiang começaram a aparecer nos meios de comunicação ocidentais, os censores chineses bloquearam qualquer menção a “Mulan” nas mídias chinesas. Mas a China também é o segundo maior mercado da Disney depois dos Estados Unidos. Essa tensão entre acomodação e lucro está no cerne do que levou a Disney a este desastre em primeiro lugar.
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Pouco antes do lançamento de “Mulan” nos Estados Unidos, o diretor Judd Apatow (que não estava envolvido no filme) chamou a atenção de Hollywood por sua cumplicidade: “Talvez a Disney e a Apple devessem FALAR e tentar ajudar um milhão de pessoas que foram raptadas e colocadas em CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO”.
Por um tempo, parecia que a Disney tinha encontrado uma galinha dos ovos de ouro na China, mas as pressões para se conformar às narrativas do governo podem ser grandes demais para a Disney (e outros estúdios de Hollywood) equilibrar no futuro.
A história de Hua Mulan é derivada de um conto originalmente ambientado em algum lugar do século IV ao VI, mas as mais antigas transcrições escritas conhecidas da história datam do século XI.
Histórias tão antigas e duradouras como esta são frequentemente alteradas para se adequar ao contexto político e social de alguma adaptação em particular. No entanto, existem certos erros flagrantes nesta adaptação mais recente que só servem para fazer avançar a agenda política da China.
No conto original, por exemplo, Mulan é leal a seu Khan, não a um imperador chinês (interpretado aqui por Jet Li, famoso por “Herói”).
Isso indica que Mulan provavelmente era membro do clã touba, um grupo de nômades que governou parte do norte da China entre 386 e 534 como a Dinastia Wei do Norte, e não uma chinesa han.
Os han são o maior grupo etnográfico da China, respondendo por cerca de 92% da população. Mas em um país com cerca de 1,4 bilhão de habitantes, isso significa que quase 129 milhões de pessoas não são chineses han.
Dessa forma, a apropriação de passados não-han serve essencialmente ao mesmo propósito de “branqueamento” na história norte-americana.
Ao apagar a identidade étnica de Mulan, a Disney eliminou as contribuições históricas que as pessoas (que agora são classificadas como minorias étnicas pelo atual partido-estado) fizeram à China ao longo do tempo.
Ao apresentar Mulan como uma chinesa han patriótica servindo a um imperador chinês que luta contra invasores sem rosto vestidos de preto pelo lado de fora (os rouran), a Disney está ajudando a reescrever a história chinesa de acordo com as narrativas estatais chinesas.
Os rouran eram uma verdadeira confederação tribal de proto-mongóis da área que agora compõe a província chinesa da Mongólia Interior e da Mongólia, e eles guerrearam várias vezes com as pessoas que Mulan supostamente defendia no conto original: a Dinastia Wei do Norte.
Mas a apresentação de Mulan como han defendendo sua nação de uma horda invasora de nômades sem rosto serve apenas para reforçar as alegorias de Hollywood sobre “o outro” e jogar na retórica tóxica na China de que os povos que vivem nas periferias do estado chinês são bárbaros que precisam ser civilizados e sinicizados.
As tensões que são sentidas no dia a dia das minorias étnicas que vivem dentro das fronteiras da República Popular da China (tibetanos, mongóis e uigures, entre outros) que sofrem pressões para abandonar suas línguas e culturas nativas em nome do chamado progresso.
A diretora Niki Caro disse que queria criar uma protagonista feminina forte em sua versão de “Mulan”. Mas a história é narrada pelo pai de Mulan, interpretado Tzi Ma, um ator sino-americano onipresente, dando ao filme um clima meio “queridinha do papai”.
Ao remover a capacidade de Mulan ao contar sua própria história, Caro nos dá uma personagem presa no sistema patriarcal em que nasceu, em vez da personagem poderosa que a diretora imagina que Mulan seja.
Baseando-se em alegorias orientalistas desatualizadas sobre a lealdade asiática à família, Em vez de quebrar estereótipos de gênero profundamente enraizados, Caro novamente reforça o papel das mulheres e da família no Leste Asiático.
Talvez um dos maiores erros tenha sido abandonar a bem recebida versão de desenho animado do filme. Fãs tanto na China como nos Estados Unidos notaram a ausência do companheiro dragão de Mulan,
Mushu, e o alívio cômico que ele proporcionou na versão em desenho animado de 1998. Sem Mushu, o filme se baseia em piadas idiotas feitas pelos companheiros soldados de Mulan sobre os desatualizados papéis de gênero no casamento para tentar levar algo leve a um público internacional.
As piadas dão vergonha alheia e passam despercebidas muitas vezes. Imprecisões históricas são perdoáveis, a menos que você esteja pedindo autenticidade.
Nesse sentido, “Mulan” fracassa tanto que os públicos norte-americano e chinês podem enxergar algo além dos esforços da Disney em posicionar o filme como autêntico ou poderoso.
Como Sean Bailey, presidente da produção cinematográfica do Walt Disney Studios, disse em um evento da Disney Expo no ano passado, de acordo com a agência de notícias estatal Xinhua, “no início, passamos muito tempo com acadêmicos, especialistas e pessoas da região.
E passamos muito tempo na China”. Bailey acrescentou que o estúdio “não só tem um elenco chinês, mas também um produtor chinês para fazer o filme com esse elenco”.
Em março, “Mulan” foi aplaudido por alguns por seu elenco totalmente asiático. Mas um olhar mais atento aos créditos revela as profundas desigualdades raciais estruturais em Hollywood: diretora, figurinista, roteirista, compositor, diretor de fotografia, editor e diretor de elenco são todos brancos.
Veredito final: na batalha expectativa versus realidade, o mais recente filme de live action da Disney criou a primeira, mas se esqueceu da segunda.
(Texto traduzido, leia o original em inglês)