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    Saída de multinacionais da China é junção de diferentes crises, dizem analistas

    Segundo especialistas, encerramento de parte de operações em território chinês tem relação com política Covid-zero, escrutínio regulatório e relações estremecidas com os EUA

    Tamara Nassifdo CNN Brasil Business* em São Paulo

    Quando os dispositivos de leitura digital Kindle, da Amazon, passaram a ser vendidos na China, o mundo era outro.

    O ano era 2013, e a ideia de que um vírus seria capaz de colocar bilhões de pessoas sob quarentena era tão remota quanto as mesmas narrativas de ataques zumbis relatadas nos e-books.

    Quase dez anos depois, essa mesma possibilidade remota é um dos motivos que levaram a Amazon a suspender as vendas do e-reader em todo território chinês. Desde a última quinta-feira (2), varejistas da segunda maior economia do mundo pararam de receber novos dispositivos para venda, e, até o final de junho do ano que vem, espera-se que a loja virtual Kindle seja fechada.

    O movimento de suspender operações parciais por lá não se restringe à Amazon: é, na verdade, um fenômeno coletivo de gigantes norte-americanas que estão deixando de oferecer parte de seus serviços ao mercado chinês. No pacote, inclui-se a empresa de hospedagens Airbnb, que vai deixar de fornecer listagens de acomodações no território da China, e a Nike, que vai desativar o aplicativo Run Club a partir de 8 de julho.

    Além delas, o LinkedIn, rede social vinculada à Microsoft, e o Yahoo deixaram de atuar por lá ainda em 2021.

    “São firmas que estão deixando, parcialmente, o mercado chinês em um contexto global de acirramento de competições e operações”, diz Isabela Nogueira professora do Instituto de Economia da UFRJ e coordenadora do LabChina (Laboratório de Estudos em Economia Política da China), núcleo também vinculado à federal fluminense.

    “Três elementos estruturais sustentam essa ‘debandada’, o primeiro sendo, sem dúvidas, a pandemia de coronavírus.”

    Segundo a professora, a forma com que a China tem lidado com a pandemia nos últimos meses — política conhecida como “Covid-zero”, que institui lockdowns rígidos para conter a disseminação do vírus — é uma das responsáveis por instaurar um clima de pessimismo na economia do país.

    “O que era para ser um lockdown de 8 dias em Xangai, maior centro financeiro do país, durou 2 meses. Em resposta, alguns dos principais indicadores econômicos da China despencaram, como nível de produção industrial, empregabilidade e vendas no varejo”, diz Nogueira. “A China vive hoje o que o mundo todo, com exceção a ela, viveu em 2020.”

    E ainda tem o fator guerra na Ucrânia: com cadeias de abastecimento mais sufocadas por causa do conflito no leste-europeu, e até uma desconfiança da relação entre Rússia e China, o prognóstico não é dos melhores.

    O cenário faz com que as empresas, em especial multinacionais, coloquem o custo-benefício de certas operações na ponta do lápis — conta que considera, principalmente, o escrutínio regulatório instaurado sobre grandes empresas de tecnologia, as chamadas Big Techs, pelo governo chinês.

    Esse aumento de regulações restritivas sobre empresas do setor de tecnologia é o segundo fator estrutural ao qual Isabela se refere, e que Lívio Ribeiro, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-IBRE), diz ser um “lembrete do quão pesada pode ser a mão do governo chinês”.

    “Falo em ‘lembrete’ porque ela sempre esteve aí, mas se intensificou do último ano para cá. As empresas estão relembrando que são sujeitas a mudanças regulatórias unilaterais e não avisadas, que as empurram para um cenário de muita instabilidade”, afirma Ribeiro.

    A quantidade de regulações faz com que as empresas não operem da forma que consideram satisfatória. Soma-se isso ao cenário nublado da economia chinesa e o resultado é o tal do “reajuste do foco estratégico de certas operações” — uma forma mais polida de dizer que certos serviços já não valem mais a pena.

    Hoje, as cidades chinesas vivem o famoso “abre-e-fecha” visto em 2020 e 2021. Depois de dois meses sob lockdown, tem havido um tímido movimento de reabertura de atividades que vem reaquecendo a economia.

    Mas, na quinta-feira (9), tanto Xangai quanto a capital Pequim voltaram a receber um novo alerta de transmissões de Covid-19, levando partes dos maiores centros da China a adotarem, novamente, restrições de lockdown.

    “Tem uma espada pairando sobre a cabeça das multinacionais neste momento. Dá para garantir que as restrições não vão voltar totalmente e que a economia vai se recuperar de forma rigorosa? Não”, diz Ribeiro. “É um momento de muita incerteza.”

    China vs. Estados Unidos: disputa de titãs

    Se há algo que ligue a Nike à Microsoft fora a grandeza de suas operações, essa corda é o local de origem: Estados Unidos. Todas as empresas que, até agora, noticiaram saídas parciais da China têm o DNA estadunidense — sinal que não pode ser ignorado diante de uma crescente contraposição geopolítica entre ambos os países.

    Esse, segundo os analistas, é o terceiro fator que pode estar por trás do “reajuste do foco estratégico”.

    “Está em curso uma guerra comercial-tecnológica entre China e Estados Unidos, e quem ganhar vai ter o controle sobre tecnologias cruciais do que chamam de 4.ª Revolução Industrial, que coloca dados e inteligência analítica em foco”, diz Isabela.

    “O Big Data é, hoje, o novo petróleo.”

    É curioso, na visão da professora, que a Nike, por exemplo, tenha suspendido um aplicativo que monitora hábitos de corrida e informações muito pessoais de corredores chineses, como percursos, velocidade média, frequência de exercícios.

    “Não permitir mais que a China tenha acesso a esse volume de informação também é uma estratégia de controle”, diz.

    “Ao limitar operações parciais, as empresas estão mandando um recado para o governo chinês: nós estamos insatisfeitas com a forma com que a banda tem tocado, e, se continuar nos regulando assim, vamos continuar saindo.”

    Ao mesmo tempo, do ponto de vista de negócios, significa uma perda imensa de mercado consumidor — coisa que Ribeiro considera ser a grande moeda de troca da China.

    Segundo ele, no fim do dia, o balanço é de lucro ou prejuízo, e virar as costas para um mercado consumidor de 1,5 bilhão de pessoas não é uma decisão fácil.

    “Às vezes acho que temos uma visão ocidental excessivamente benigna, no sentido de que talvez o governo chinês se importe muito pouco com saídas parciais de operações. Ele sabe que está sentado em cima de 1,5 bilhão de potenciais consumidores, e esse é um mercado que não dá para perder”, diz.

    “Para o mercado consumidor chinês, perder um Kindle ou um Run Club significa um grande nada. A China tem suas próprias versões de serviços. O nosso Uber, por exemplo, é o Didi deles, o WhatsApp é o WeChat. Eles vivem muito bem sem os nossos aplicativos.”

    De qualquer forma, há um consenso entre eles: isso não acaba aqui.

    *Sob supervisão de Ana Carolina Nunes.

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