Para criador das metas de inflação, alvo atual é baixo e sacrifica crescimento
Em entrevista à CNN, Sérgio Werlang defende que Brasil tem gastos públicos muito engessados para conseguir trabalhar com altas de preços menores
O engenheiro e doutor em economia Sérgio Werlang não conhecia bem como funcionava um sistema de metas para inflação, mecanismo que à época começava a ser aplicado nos primeiros países, quando foi chamado pelo novo presidente do Banco Central, Armínio Fraga, em 1999, para replicar no Brasil uma metodologia como aquela.
Foi ele que, à frente da diretoria de política econômica do BC, naquele ano, pesquisou o tema e capitaneou a criação do sistema de metas para inflação que substituiu, como principal ferramenta de política monetária do país, o colapsado regime de câmbio fixo e que funciona até hoje no Brasil.
Para Werlang, hoje professor e assessor da presidência na Fundação Getulio Vargas (FGV), as metas de inflação atuais estão muito baixas para a capacidade da economia brasileira. Elas estão previstas em 3,25% em 2023 e 3% em 2024 e 2025.
Isso significa que os nossos juros são forçados a ficar mais altos do que poderiam para dar conta da tarefa, e o nosso crescimento, portanto, mais baixo.
“A meta no Brasil tem que ser um pouco mais alta do que a de países parecidos (…), porque a nossa política fiscal é muito rígida, é muito difícil fazer ajustes fiscais”, disse Werlang, em entrevista à CNN, mencionando emergentes como Chile e México, onde a alta dos preços deve seguir os 3%.
“Se consertarmos o fiscal, podemos ter a mesma meta que o Chile”, acrescentou, defendendo uma reforma administrativa que permita mais flexibilidade ao engessado e pesado gasto público com servidores.
O alvo da meta brasileira foi de 4,5% por 13 anos, de 2005 a 2018, quando começou a ser reduzido gradativamente pela dupla Ilan Goldfajn e Henrique Meirelles, que chefiavam, respectivamente, o Banco Central e o Ministério da Fazenda à época.
A rota traçada é que ela siga caindo até os mesmos 3% do Chile em 2024. O histórico das metas pode ser visto no site do Banco Central.
As alterações também incluíram um estreitamento das bandas de tolerância, que são as margens para cima ou para baixo dentro das quais o BC deve manter a flutuação dos preços ano a ano. Elas eram de dois pontos percentuais e, agora, estão em 1,5 ponto.
Na visão de Werlang, é um espaço muito pequeno para um índice de preços como o brasileiro, que tem peso muito grande dos alimentos e, por isso, oscila mais que os outros. “É uma das razões básicas para a nossa inflação furar tanto o teto”, disse.
Veja a seguir a entrevista completa:
Em 2022, o IPCA rompeu novamente o teto da meta. É algo que é recorrente desde que o sistema de metas começou, em 1999. Quais são as consequências disso e qual é a importância de se respeitar o sistema de metas?
O sistema de metas existe para guiar as expectativas, e, para que faça isso de forma eficiente, tem que acertar muitas vezes. Não necessariamente acertar todas, mas claro que, se erra muito, as pessoas dão menos peso à meta colocada. Então é importante cumpri-la para manter a credibilidade e tornar mais fácil que seja atingida no futuro.
Considerado mês a mês, desde que o sistema existe, há 24 anos, a inflação ficou mais tempo acima do alvo do que próxima dele. Por que é tão difícil para o Brasil cumprir a meta de inflação?
Há duas razões básicas para a nossa inflação furar tanto o teto. Uma delas é que houve um estreitamento da banda de tolerância para 1,5%, o que não deveria ter acontecido. O Brasil tem uma peculiaridade. O nosso índice, o IPCA, tem peso muito grande dos alimentos básicos, que são muito sazonais. As pessoas substituem muitos desses itens, mas, no IPCA, eles têm peso fixo. É como se você comprasse a mesma quantidade de morango o ano todo, independente do preço dele. Isso faz com que o nosso índice tenha uma oscilação muito maior do que deveria, e essa é uma das razões para que a banda originalmente colocada fosse de 2%.
A inflação real, então, na prática, deve ser mais baixa do que o que o IPCA vai mostrando, já que nós podemos fazer substituições que o índice não capta?
Exatamente, o índice do IBGE não tem substitutibilidade.
O senhor disse que há duas razões principais para as fugas constantes à meta. Qual é a segunda?
O Banco Central foi baixando a meta de 4,5% para 3%, mas 3% é muito baixo para o Brasil. A meta no Brasil tem que ser um pouco mais alta do que a de países parecidos. No Chile, por exemplo, é 3%. Agora, claro, eles descumpriram, como o mundo todo descumpriu. Mas, até então, o Chile seguia direitinho suas metas. Nós precisamos de uma meta mais alta porque a nossa política fiscal é muito rígida, é muito difícil fazer ajustes fiscais.
Como essa rigidez atrapalha a tarefa de manter a inflação dentro do intervalo das metas?
É necessário ter uma coordenação entre a política fiscal e a monetária. O problema é que é muito difícil ter controle da nossa política fiscal. O único meio que temos para fazer ajustes fiscais no Brasil, com a rigidez orçamentária que temos, a rigidez salarial e das regras que reajustam o salário mínimo, é atrasar um pouquinho o reajuste do funcionalismo público, fazendo reajustes um pouco abaixo da inflação. Se, por exemplo, a meta for de 4,5%, o governo pode dar um reajuste de 2% ou 2,5% todo ano. Num país europeu, quando precisa fazer ajuste, eles simplesmente cortam os salários do funcionalismo público, dentre muitas outras medidas. Não mandam embora, mas podem diminuir os salários. Aqui é impossível. A meta, então, tem que ser um pouco mais alta para ter espaço.
Isso significa que a nossa inflação tende a ser um pouco mais alta do que a de economias semelhantes por conta de uma pressão maior de demanda mesmo, com aumento de gasto público via aumento nos salários dos servidores?
Não é só o salário do servidor, é também o salário mínimo que vai aumentando. Tudo isso é uma dificuldade adicional para controlar a parte fiscal. A nossa parte fiscal só consegue ser razoavelmente controlada com um pouco de inflação.
Qual seria uma meta de inflação adequada para o Brasil hoje?
Em torno de 4% ou 4,5%. O importante é ter em mente que o sistema de metas criou um guia para discussão, para sabermos para onde está indo a política monetária. Acertar não é o principal; o principal é que ele seja um bom guia. E, para isso, tem, sim, que acertar algumas vezes. E, de preferência, oscilar para baixo e para cima mais ou menos igual, e nós sabemos que temos errado bem mais para cima. Por isso mesmo sou favorável a uma meta mais elevada.
Mas permitir uma inflação mais alta não seria uma maneira de atacar os sintomas em vez do problema em si? Quer dizer, se o problema é o gasto público alto, não deveríamos, pelo menos no longo prazo, pensar em reduzir o gasto em vez de aceitar uma inflação mais alta?
Não há dúvidas. Se a gente consertar o fiscal, a gente pode ter a mesma meta que o Chile. O ponto é que é muito difícil consertar a parte fiscal, porque nós temos muita rigidez. Não podemos demitir funcionário público, não podemos diminuir salário nominal de ninguém. Além disso, temos um salário mínimo corrigido e, agora, acima da inflação. A única solução viável é de médio prazo. No curto prazo tem muita coisa que pode ser feita, como cortar mais subsídios. Na reforma tributária, dá para elevar um pouco a alíquota das áreas de serviços, diminuindo um pouco o imposto na indústria. Mas, no fundo, o que precisamos é controlar esses gastos obrigatórios que o Brasil tem.
As reformas de que tanto se fala, como a da Previdência e a administrativa, já não são o caminho para isso?
A reforma tributária, agora, é a que irão priorizar. Ela é boa, vai aumentar a eficiência e melhorar os negócios, mas não é ela que vai resolver o problema fiscal. A reforma administrativa seria a mais importante de todas. Sem ela, a probabilidade de o Brasil funcionar com uma inflação mais baixa é pequena. Ou seja, funcionar como se fosse o Chile ou o México, que têm uma meta de 3%. Três é um número que países emergentes organizados conseguem ter como meta de longo prazo em tempos de normalidade.
A reforma da Previdência já não foi um passo nesse caminho de controle dos gastos obrigatórios? Com ela já não deveríamos ter espaço para uma meta menor do que os 4,5% que tínhamos antes?
Com certeza. Mas imagine que a reforma da Previdência previa economizar algo como R$ 800 bilhões em dez anos. Nós, só neste ano, já vamos estourar o teto em R$ 200 bilhões, se somar a conta toda. Quer dizer, em um ano vamos gastar um quarto do que queríamos economizar em dez. Aí fica difícil.
Se a nossa meta hoje, indo de 3,5% para 3%, está baixa, ela sacrifica, então, os nossos juros? Agora, por exemplo, com uma meta mais alta que 3,25%, que é o objetivo para 2023, poderíamos estar com os juros menores do que 13,75%?
Hoje não daria para ter uma Selic muito mais baixa que isso. Talvez fosse 13,5%, 13,25%; seriam ajustes finos. Mas, na hora de cair, a taxa de juros poderia cair mais rapidamente se a meta fosse mais alta. Os juros poderiam começar a cair um pouco antes do que acontecerá para que a meta de 3% seja atingida.
E, deixando de lado esses dois anos que vêm de choque inflacionário de guerra e de pandemia, o Brasil poderia ter juros estruturalmente mais baixos se a meta fosse mais alta? Ou seja, a Selic acaba tendo que ser persistentemente maior para que o Banco Central consiga entregar uma inflação menor do que o que a nossa economia é capaz de manter?
Eu não tenho uma resposta definitiva, mas te dou uma resposta intuitiva. Houve um período recente em que a taxa ficou um bom tempo em 6,5% [em 2018 e 2019]. Naquele período, o Brasil cresceu 1%. A meu ver, se a meta estivesse um pouco maior, os juros poderiam ter caído um pouco mais e o Brasil poderia ter crescido um pouco mais também.
A meta de inflação já está programada para ser de 3,25% em 2023 e de 3% em 2024. Se, hoje, isso é baixo, quando, na sua opinião, estaríamos de fato prontos para termos uma inflação nessa faixa?
Só depois que passar uma reforma administrativa, o que eu acho que não vai acontecer no governo Lula. Então, só em 2028 ou 2029, com uma reforma administrativa feita, daria para falar em uma meta mais baixa. Precisamos de uma reforma administrativa que seja realmente eficaz, e que permita maior controle de gastos públicos, para que possamos, então, baixar a meta para 3%.