Governo se preocupa com brecha na reforma tributária que pode reduzir impostos para compra de armas
Dispositivo incluído nos momentos finais da votação foi recebido com preocupação pelo Ministério da Fazenda, que tem defendido nos bastidores que o Senado mude a redação do texto ou elimine o dispositivo
Um dispositivo incluído nos momentos finais da votação da reforma tributária na Câmara pode abrir margem para que a venda de armas e outros equipamentos de segurança a compradores privados seja beneficiada por desconto na tributação, conforme avaliação de membros do governo e tributaristas ouvidos pela Reuters.
O mecanismo, que contraria a visão do governo Luiz Inácio Lula da Silva nessa área, foi recebido com preocupação pelo Ministério da Fazenda, que tem defendido nos bastidores que o Senado mude a redação do texto ou elimine o dispositivo, disseram à Reuters duas fontes da pasta com conhecimento do assunto.
O inciso está entre os últimos incluídos pelo relator da proposta na Câmara, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), para garantir um desconto de 60% na alíquota do novo imposto sobre consumo para “bens e serviços relacionados a segurança e soberania nacional, segurança da informação e segurança cibernética”.
Pelo texto, para todos os setores beneficiados com a redução do tributo, uma lei complementar definirá futuramente as operações com bens ou serviços que serão beneficiadas.
A interpretação das fontes do governo é que o dispositivo foi mal redigido e cria brecha para que o termo “segurança” gere interpretação ampla, incluindo compras de equipamentos desse tipo por empresas privadas e até pessoas físicas. Para elas, se o texto for mantido, é provável que o tema gere disputas na Justiça.
“É um daqueles dispositivos que entraram aos 47 do segundo tempo e ninguém sabe explicar direito”, disse uma das autoridades sob condição de anonimato. “Se eu interpretar como segurança nacional, sem problemas, é compra pública das Forças Armadas. Porém, se eu interpretar como ‘segurança’, abre-se a porta para tudo: segurança pessoal, privada ou pública”.
Na avaliação dessa fonte, nesse “pior cenário interpretativo” muitos poderiam alegar que o desconto tributário relacionado a segurança deveria enquadrar, por exemplo, armas e cursos de tiro.
A segunda autoridade afirmou que a redação ficou confusa e que até mesmo a Fazenda ainda trabalha para tentar entender a extensão do benefício.
“Espero que o Senado melhore a redação, ou mesmo que reavalie esse dispositivo”, afirmou.
Essa fonte disse ser contra o benefício, ainda que na interpretação mais restrita, com o argumento de que o setor de segurança já será favorecido pela reforma tributária mesmo que fique fora de um regime especial. Segundo ela, isso ocorrerá porque no sistema não cumulativo a ser criado, as empresas do setor vão gerar crédito tributário.
Redação final
O atual governo tem se posicionado contra medidas que incentivem a venda e o uso de armas no país. No primeiro dia de seu mandato, Lula assinou instrumentos para reorganizar a política de controle de armas, que havia sido flexibilizada pela gestão de seu antecessor Jair Bolsonaro.
Uma terceira fonte, que participou da elaboração da medida no Congresso, disse que a intenção do dispositivo é simplificar compras do governo, que normalmente é forçado a buscar bens e serviços de segurança no exterior porque o Brasil não é competitivo. Argumentando que a ideia não é facilitar a venda de armas ou beneficiar empresas privadas, ela afirmou que é preciso aguardar a redação final da proposta, que ainda não foi concluída pela Câmara, para tirar conclusões sobre o tema.
Na avaliação da tributarista Ana Cláudia Utumi, sócia de Utumi Advogados, a preocupação do governo tem fundamento. Para ela, se a intenção era facilitar compras governamentais, o dispositivo não seria necessário.
“Como há a isenção constitucional a tributos dos entes federativos, bastava que a lei complementar reforçasse que, quando o comprador fosse qualquer dos governos, não haveria cobrança do tributo”, afirmou.
Utumi afirmou ainda que ficaram muito amplos no texto os conceitos de segurança da informação e segurança cibernética. “Pode acabar gerando bastante discussão”, ressaltou.
O advogado Marcel Alcades, sócio da área tributária do escritório Mattos Filho, afirma que o texto dá espaço para interpretação ampla e pode gerar debates na Justiça no futuro.
“Tendo como foco as empresas de segurança privada, elas adquiririam com carga reduzida. Portanto, em tese, poderiam ser beneficiadas. Outra possibilidade é o vendedor transformar a economia do tributo em margem, aí ele seria beneficiado”, disse.