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    Entenda o que é o volume morto de usina hidrelétrica e se ele pode gerar energia

    Para especialista, eficiência baixa do volume não compensaria uso para geração de energia, mesmo durante a crise atual

    João Pedro Malardo CNN Brasil Business* , em São Paulo

    A crise hídrica no Brasil reflete o movimento de redução do volume das barragens das usinas hidrelétricas, principais geradoras de energia no país. Mas nem toda a água armazenada é usada para energia: existe o chamado volume morto.

    O termo se popularizou em 2014 devido à crise hídrica que atingiu São Paulo, quando foi necessário o uso do volume morto do sistema Cantareira para abastecimento de água. No universo das hidrelétricas, o conceito não é muito diferente, mas usar o volume morto para geração de energia pode trazer problemas, segundo especialistas. Entenda:

    O que é o volume morto nas usinas hidrelétricas?

    “O volume morto seria um volume que não é útil, que não contribui para o uso efetivo da água”, diz Arisvaldo Méllo, professor da Escola Politécnica da USP.

    Isso não significa, porém, que o volume morto de uma barragem não possui utilidade. Segundo Méllo, ele é utilizado principalmente para acomodar sedimentos, ou seja, pedaços sólidos e outros grânulos que são trazidos pelo movimento da água.

    “Essas partículas finas, quando encontram um ambiente em que a movimentação da água é lenta, decantam, então, tem que ter um espaço para acumular os sedimentos”, diz. A quantidade de sedimentos varia de barragem em barragem, pelas condições do solo e manejo de terra, o que faz o volume morto também variar.

    Sergio Valdir Bajay, professor aposentado e pesquisador da Unicamp, afirma que o volume morto também pode ter outros usos, como garantir um volume mínimo de água para a navegação.

    “Toda usina hidrelétrica, em princípio, tem que ter um reservatório, e tecnicamente ele é dividido em duas partes. Há o volume útil, usado para gerar energia, e o morto, que tem que se manter constante”, afirma.

    Entre o volume útil e o morto, segundo Méllo, é comum existir também uma espécie de reserva estratégia, que ainda é contabilizada como volume útil, mas que é utilizada para geração de energia em situações mais extremas, como a atual.

    Recentemente, os reservatórios das hidrelétricas de Ilha Solteira e de Três Irmãos, ambas em São Paulo, chegaram ao nível de 0% do volume útil.

    O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) explicou, em nota, que o 0% registrado em setembro quer dizer que o volume de água já atingiu uma cota mínima para utilização da hidrovia, “porém isso não significa que o reservatório da usina esteja vazio”.

    Volume morto acumula sedimentos de reservatórios / REUTERS/Washington Alves

    É possível usar o volume morto para gerar energia?

    Para Arisvaldo Méllo, seria, sim, possível utilizar o volume morto para gerar energia em hidrelétricas, mas os desafios nesse processo não compensariam o esforço.

    O professor diz que a geração de energia em hidrelétricas depende de dois fatores:

    1. Carga potencial, em que uma altura maior da água leva à geração de energia
    2. Vazão, ou seja, a quantidade de água que passa por uma turbina

    “Se o volume de água está baixo, para compensar a falta da energia potencial, de altura, precisaria aumentar a vazão”, afirma. Esse movimento acaba também consumindo mais água do reservatório.

    O problema é que, além do volume morto ter pouca altura e, portanto, ser menos eficiente, o mais comum em usinas hidrelétricas é construir acima do volume morto a chamada tomada, o local de “entrada” da água na tubulação que leva até as turbinas da usina.

    Nesse caso, seria preciso usar um sistema de bombeamento para captar essa água, um processo bastante caro. “Foi o que aconteceu em 2014 na Cantareira, uma solução emergencial, mas com gasto muito grande, e é difícil de recuperar o investimento. Para geração é meio que impensável porque você gasta energia para gerar energia”, diz.

    Mesmo em casos em que a tomada fosse construída no volume morto, a questão da baixa carga potencial e uma vazão limitada levariam a uma baixa produção de energia.

    Outro problema é que a água captada do volume morto não viria sozinha. “Essa água carrega sedimentos para dentro das turbinas, e eles podem causar erosão”, afirma Bajay. Esse processo, segundo o professor, é lento, danifica as turbinas e aumenta a necessidade e custos de manutenção.

    Para evitar danos maiores, ele avalia que o uso do volume morto para geração de energia precisaria durar apenas algumas semanas.

    Além disso, o uso do volume morto não poderia ocorrer de forma indiscriminada. No momento em que o nível de água ficasse abaixo do da tomada, seria necessário encerrar a produção.

    “A hora que o volume fica baixo, a água entra com ar e, aí, as turbinas não funcionam de forma adequada e estragam muito rápido, seria um prejuízo sério para os equipamentos”, diz o professor.

    Usar o volume morto também significaria reduzir ainda mais os reservatórios das hidrelétricas, o que poderia dificultar ou tornar mais lenta a recuperação deles, em especial se o próximo período de chuva não for intenso.

    Considerando todos esses fatores, Méllo defende que o volume morto não seja utilizado para a geração de energia. “Seria uma solução de baixíssimo rendimento, não é comum, salvo em alguma condição específica de cada projeto. Foge ao rendimento razoável”.

    Para ele, o ideal seria o Sistema Integrado Nacional (SNI) buscar alternativas, como aumentar a produção de termelétricas ou distribuir a energia gerada em regiões com reservatórios em níveis maiores, o que já ocorre atualmente.

    Roberto Brandão, pesquisador sênior do Grupo do Setor Elétrico da UFRJ, considera que o volume morto dessas usinas ainda não deve ser utilizado, mas que elas acabarão tendo características de uma usina de fio d’água, em que seria produzido energia com a água das chuvas, sem criação de reservas.

    “Nesses casos, a usina até consegue armazenar no fim de semana, quando a demanda é menor, mas essa água vai embora na semana”, afirma.

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    Perspectiva para os próximos meses

    Para Méllo, discutir a possibilidade de usar ou não o volume morto das hidrelétricas para gerar energia “já mostra o quão grave é a nossa situação”.

    “Mesmo se chover [nos próximos meses], a recuperação é lenta, então, os próximos meses, com chuva dentro da média, demandará medidas para economizar água e recuperar os reservatórios”, diz o professor.

    Ele observa que, se a previsão de chuvas ficar abaixo da média, pode haver risco de desabastecimento e de apagão. Dados da ONS mostram que, apenas no subsistema Sudeste/Centro-Oeste, 12 reservatórios estão com menos de 15% do volume útil, o que Méllo afirma ser “perigosamente baixo”.

    Roberto Brandão lembra que a região calha do rio Paraná é a principal área de geração de energia do país, que tem a maior hidrelétrica e outras três que somadas “são muito relevantes”.

    “A gente vai chegar no final do período seco com os reservatórios do Sudeste em níveis absolutamente críticos. É possível que se evite um racionamento ou algum acontecimento de maior gravidade, mas de qualquer maneira, eles estarão muito vazios, o que coloca para 2022 uma situação de abastecimento ariscada”, afirma.

    Assim, ele diz que a perspectiva para o começo do ano que vem ainda é de uma energia cara. “Vai depender muito da estação úmida, que nos últimos anos tem sido de baixa intensidade, ainda não se sabe ao certo se os reservatórios vão se recuperar em um nível que dê conforto para 2022”.

    Em entrevista à CNN, o diretor-geral do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) Luiz Carlos Ciocchi afirmou que “não há a menor possibilidade de racionamento” para este ano. Segundo ele, o sistema elétrico brasileiro é “bastante robusto”.

    O que diz o governo federal

    Em nota enviada ao CNN Brasil Business, o Ministério de Minas e Energia afirmou que “foram realizadas flexibilizações temporárias em diversas bacias, considerando a importância de se dispor dos estoques hídricos armazenados para assegurar o fornecimento de energia elétrica”.

    Segundo a pasta, “os reservatórios de usinas hidrelétricas são projetados para operar em valores próximos a zero e algumas das usinas já operaram abaixo de 10%. Nesse sentido, o ONS está avaliando com cada um dos concessionários as condições operacionais das usinas”.

    Desde maio de 2021, “foram removidas algumas restrições hídricas (devido a restrições ambientais e de níveis mínimos de reservatórios) que impediram a alocação de mais geração termelétrica durante o período úmido. Essas medidas foram precedidas de ampla discussão com os agentes responsáveis pela operação dos reservatórios (como ONS, Ibama, ANA)”, diz a nota.

    O ministério afirmou ainda que “as restrições de vazões e os níveis mínimos de reservatórios das usinas hidrelétricas têm sido analisadas com uma visão de país, ponderando os usos dos recursos hídricos e resguardadas as prioridades legais”, mas não respondeu especificamente se haveria possibilidade de uso do volume morto para geração de energia.

    *Sob supervisão de Thâmara Kaoru

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