Com práticas invasivas dos bancos, crédito consignado vira dor de cabeça
Entre 2019 e 2020, houve um salto de 441% nas reclamações sobre “cobrança por serviço/produto não contratado/não reconhecido/não solicitado”
Quando certa manhã o aposentado Gregor acordou de sonhos intranquilos, encontrou em sua conta da Caixa Econômica Federal cerca de R$ 10 mil que não eram seus. Consultou, então, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), e constatou que haviam feito um crédito consignado em seu nome sem autorização.
Essa é uma história que poderia muito bem se encaixar no realismo fantástico do autor tcheco Franz Kafka — mestre em descrever situações bizarras –, mas trata-se de uma prática cada vez mais comum no Brasil. Dados do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), com base no canal de atendimento consumidor.gov.br, mostram a gravidade do problema.
Em 2020, as ocorrências envolvendo crédito consignado ficaram em primeiro lugar entre as reclamações sobre serviços financeiros, com um aumento de 683% nos registros em relação a 2019. E, analisando somente a categoria “cobrança por serviço/produto não contratado/não reconhecido/não solicitado”, o salto é de 441%.
Em 2021, segundo dados do Reclame Aqui, a coisa continua escalando. Entre maio do ano passado e o mesmo mês deste ano, as queixas sobre crédito consignado no site subiram 274% e as reclamações sobre produtos não contratados/solicitados/autorizados saltaram 1.041% no período.
Nessa linha, Clarice Tavares, aposentada aos 63 anos e residente do interior do Paraná, conta que foi vítima dessa modalidade de assédio por parte dos bancos. Ela recebe um benefício equivalente a um salário mínimo e já paga um outro crédito consignado, este contratado de fato.
Mas foi surpreendida com um depósito de pouco mais de R$ 4 mil em sua conta e um compromisso de 80 parcelas de R$ 100 a serem descontadas da sua aposentadoria. Detalhe: ela nem sequer é cliente da instituição financeira que lhe mandou o dinheiro, o Bradesco (na verdade Bradesco Promotora, um correspondente bancário; ler abaixo).
“Liguei no INSS, falaram que era na Caixa. Liguei na Caixa, falaram que era no Bradesco. Liguei no Bradesco, me passaram um telefone 0800 que não atendia. Depois de muitas tentativas, me passaram uma conta jurídica para que eu transferisse o dinheiro de volta. Transferi e uma parte voltou”, conta.
“Agora eu acho que consegui resolver, mas é complicado porque estamos no meio de uma pandemia. Eu tenho 63 anos e só havia tomado a primeira dose da vacina contra a Covid-19, mas tive que utilizar transporte público e ir até ao banco mais de uma vez para resolver um problema que não foi causado por mim.”
Ela afirma que, além do dinheiro que de fato caiu na sua conta irregularmente, ela vem recebendo ligações insistentes de diversas instituições bancárias, até mesmo à noite ou aos domingos. Afirma ainda que pediu que a família parasse de ligar para ela no telefone fixo, pois deixou de atender as chamadas por conta do assédio.
“O crédito consignado, apesar do mérito do produto, está se tornando um grande problema no Brasil. Desde 2019, estamos vendo um nível muito alto de vazamento de dados, o que tem dado margem para várias práticas absurdas”, diz Ione Amorim, coordenadora do programa de serviços financeiros do Idec.
“Temos casos de pessoas que entram com o pedido de aposentadoria e já recebem ligações de instituições bancárias oferecendo produtos, antes da comunicação do INSS. E, com a aprovação da MP 1006/20, que ampliou a margem de consignação de 35% para 40% até o final de 2021 e deveria ajudar as pessoas, as instituições acabaram de perder o bom senso.”
Entre as más práticas identificadas pelo Idec estão: renegociação de contratos a valor presente, aumentando endividamento no tempo e no valor; consumidores que receberam dinheiro que não solicitaram; processo de portabilidade fraudulento; bloqueio de margens; e ligações sistemáticas por parte das instituições.
Correspondentes bancários
Há ainda um complicador neste imbróglio, a figura do correspondente bancário. Trata-se de um representante legal autorizado pela instituição bancária a oferecer produtos em seu nome. O que na teoria deveria servir ampliar a capilaridade e o alcance das marcas, na prática pode estar causando uma queda na qualidade do serviço oferecido.
Prova disso é que o Sistema de Autorregulação do Crédito Consignado, desenvolvido pela Febraban (Federação Brasileira de Bancos) e pela ABBC (Associação Brasileira de Bancos), já aplicou pelo menos 436 punições a correspondentes bancários desde que foi criado em 2020.
Amaury Oliva, diretor executivo de Sustentabilidade, Cidadania Financeira, Relações com o Consumidor e Autorregulação da Febraban, diz em entrevista ao CNN Brasil Business que a atuação do grupo está sendo observada de perto, a começar por um indicador de qualidade mantido pelo sistema.
A ideia é que cada queixa vinda dos canais internos das instituições financeiras, do Banco Central e da plataforma consumidor.gov impacte negativamente o score daquele prestador de serviço, até que, se não houver uma melhora na performance, ele seja desligado da função.
“Estes profissionais são importantes em locais onde não há tanta oferta de serviços e as instituições financeiras sempre tiveram ferramentas para capacitá-los e monitorá-los. Mas agora, com a autorregulação, estamos criando conteúdos online e exigindo que todos os profissionais sejam certificados.”
Enquanto isso não acontece, os bancos também sofrem no bolso. Em junho, o Banco Itaú Consignado S.A. foi multado em R$ 9,6 milhões por infrações na oferta de crédito consignado e irregularidades no serviço envolvendo correspondente bancário vinculado à instituição.
Em maio, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) já havia multado em R$ 8,8 milhões o Banco PAN por infrações parecidas ao Código de Defesa do Consumidor na oferta e contratação de empréstimo consignado. Segundo o órgão, a instituição foi punida especificamente por prática abusiva contra clientes idosos.
Evolução da modalidade
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) confirmou em junho que poderá usar tecnologias biométricas para confirmar um pedido de empréstimo consignado feito por aposentados e pensionistas. A ideia é justamente evitar o assédio praticado por instituições financeiras e correspondentes.
A possibilidade de uso da biometria foi aventada pelo presidente do INSS, Leonardo Rolim, durante audiência na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, que discute o vazamento de informações do instituto.
Segundo ele, o INSS estuda “a possibilidade de utilizar tecnologia de confirmação biométrica que já é usada para a prova de vida, para que o aposentado pensionista confirme o empréstimo consignado”.
À época, Rolim admitiu que esse tipo de assédio está, de fato, atribuído ao vazamento de informações, e que o INSS tomou algumas medidas para evitar que isso aconteça também com a sua base de dados. “Criamos uma startup com especialistas em segurança da informação para que isso não ocorra”, disse.
“Estamos fazendo uma série de medidas dentro do INSS para evitar o vazamento, como a dupla autenticação para acesso aos nossos sistemas, o que impede que uma pessoa que tenha apenas uma senha consiga acessar a conta do INSS. E estamos implementando outras medidas, como coibir robôs que não sejam oficiais do INSS, ou seja, sistemas que fazem varreduras na base de dados.”
Oliva, da Febraban, garante que os bancos têm rígidos protocolos para respeitar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e outras normas, como a do sigilo bancário. No entanto, afirma que a autorregulação também ajudou neste ponto, através do serviço Não me Perturbe.
“Trinta dias após a realização do cadastro do telefone fixo ou móvel no sistema, tanto os bancos quanto os correspondentes por eles contratados não poderão fazer nenhuma oferta de operação de crédito consignado. O bloqueio valerá por um ano e o cliente poderá escolher se bloqueia instituições financeiras específicas ou todo o setor bancário.” Mais de 1 milhão de pedidos já foram feitos.
o Idec notificou e cobrou, em 17 de junho, soluções concretas do INSS para que as fraudes sejam combatidas. Procurado, o órgão não comentou o tema e disse não dispor de dados de abertura de contratos de crédito e a quantidade de segurados que pediram o seu bloqueio.
Outro lado
Em nota, o Bradesco defende que “todas as operações de crédito consignado são feitas respeitando os parâmetros do produto e sua autorregulação. O banco também realiza intenso trabalho no acompanhamento das reclamações e priorização no encaminhamento de soluções e evoluções contínuas quanto a melhorias nas jornadas de comercialização e pós-venda do produto.”
Já o banco PAN afirma que “tem adotado medidas concretas de melhoria na oferta e concessão de crédito consignado, cuja modernização tem sido consistentemente liderada pelo PAN, pioneiro no processo de formalização digital desses contratos, muito importante no combate a fraudes.” Quando multado, o banco afirmou que recorreria da decisão.
À época da multa sofrida em junho, o Itaú disse que “está atento às necessidades dos seus clientes e mantém um processo de melhoria contínua para a oferta e contratação de crédito consignado. Em relação ao processo em questão, o banco entende que foram desconsiderados argumentos relevantes, que demonstram a inexistência de qualquer responsabilidade nas práticas relatadas. Por esta razão, recorrerá da decisão.”
*Com informações de Tamires Vitorio e do Estadão Conteúdo