Boom brasileiro de startups esfria e demissões superam 3 mil, mostra levantamento
Para especialistas da indústria de capital de risco, esse ciclo de ajustes deve durar cerca de dois anos
Na última década, os investimentos em startups no Brasil cresceram mais de 60 vezes, refletindo um cenário de oferta generosa de capital, inovação tecnológica e regulatória, além da rápida penetração de serviços online, catalisados pela pandemia.
No ano passado, essa indústria despejou US$ 9,4 bilhões no país, segundo a plataforma de análise Distrito. Neste ano, porém, com bancos centrais no mundo deixando os estímulos dos últimos dois anos para passar a conter o maior surto de inflação em quatro décadas, empreendedores estão tendo que moderar as ambições para preservar caixa, o que em muitos casos tem envolvido cortar na carne.
Segundo o layoffsbrasil.com, site criado para recolocação de profissionais de tecnologia, já são mais de 3 mil demissões do setor em 2022 no Brasil.
Os cortes incluíram ícones como a imobiliária digital QuintoAndar, o portal automotivo Kavak, a plataforma para comércio eletrônico VTEX, a fintech Ebanx e a corretora de criptomoedas Mercado Bitcoin, só para citar alguns unicórnios, como são conhecidas as startups avaliadas em ao menos US$ 1 bilhão, além da varejista Americanas, forte no ecommerce e com um braço de fintech.
Para especialistas da indústria de capital de risco, esse ciclo de ajustes deve durar cerca de dois anos, quando se prevê uma reversão do aumento do custo do dinheiro, piora que recentemente fez grandes fundos internacionais subirem a régua após terem injetado centenas de bilhões de dólares em negócios baseados em tecnologia pelo mundo.
Segundo a empresa de análise CBInsights, os aportes globais em startups no primeiro trimestre pelo mundo somaram US$ 143,9 bilhões, queda de 19% em relação ao trimestre anterior, maior perda sequencial em quase uma década. No Brasil, os US$ 1,5 bilhão captados de janeiro a março foram o terceiro trimestre seguido em baixa, após terem atingido o pico de US$ 4,8 bilhões no segundo trimestre do ano passado.
“A dinâmica do mercado mudou; agora, antes de aceitar aportar mais recursos, o investidor quer provas de que os negócios são sustentáveis no longo prazo e de que existe uma perspectiva de geração de caixa”, disse Gueitiro Genso, ex-presidente da carteira digital PicPay e conselheiro em startups.
Exagero na “disrupção”
Segundo Álvaro Gonçalves, sócio da Stratus e veterano da indústria de capital de risco no país, o redimensionamento dos negócios em parte é positivo, pois mostra que os empreendedores estão se ajustando rápido ao novo cenário, fazendo o necessário para dar sustentação aos negócios.
Mas mostra também que a combinação de abundância de capital com empreendedores enxergando a chance de ganhar mercado de rivais estabelecidos com modelos de negócios relativamente simples levou a alguns excessos, avalia.
Com a ânsia de “disruptar”, termo que se tornou frequente no meio como sinônimo de mudar a dinâmica de mercados dominados por nomes tradicionais ou de setores altamente fragmentados, startups de empreendedores jovens, muitos com formação em grandes universidades norte-americanas, passaram a receber volumes crescentes de recursos em ciclos cada vez mais curtos.
Assim, em vez do período padrão médio de 18 a 24 meses, os intervalos entre as rodadas foram sendo encurtados, chegando a até 3 meses em alguns casos.
A plataforma digital de recursos humanos Gupy, por exemplo, recebeu no fim de janeiro um investimento de R$ 500 milhões liderado por SoftBank e Riverwood, montante 12 vezes maior do que o da rodada anterior ocorrida apenas sete meses antes.
Segundo especialistas, isso foi acelerado em parte pela necessidade dos gestores de fundos de risco de atingirem metas de alocação de recursos.
“Começou a chegar investimento até para startups que propunham resolver problemas que não existem ou com planos de negócio sem consistência”, disse Gonçalves.
Eldorado
Um segmento que prometia ser o novo eldorado das startups, o de entregas de compras de supermercado, viu emergir uma miríade de modelos de negócios e é um dos que está passando por correção mais forte no Brasil, como também ocorre em outros países.
Por aqui, esse mercado cobiçado, mas de margens comprimidas, inúmeros problemas logísticos, dificuldades de ganho de escala e muito sensível a reclamações de clientes, viu projetos alternativos encontrarem desafios ainda maiores do que imaginavam.
A Favo, que surgiu em 2019, propunha uma comunidade de compras em que pessoas cadastradas seriam remuneradas para entregar encomendas nas casas de vizinhos. A startup recebeu R$ 141 milhões de investidores em outubro passado. Neste mês, encerrou as operações no país, com a demissão de 175 pessoas.
O supermercado digital Facily, já tinha acumulado mais de 150 mil queixas por atrasos na entrega de produtos e falta de reembolso quando recebeu US$ 135 milhões no fim de 2021. Recentemente, anunciou ajustes no negócio, fez 170 demissões e se comprometeu a reduzir reclamações em 80%.
Segundo o diretor de políticas públicas da Facily, Igor Cordeiro, a maioria dos clientes está tendo com a companhia sua primeira experiência com compras online.
Agora, negócios de ecommerce e de serviços financeiros, os que receberam os maiores volumes de investimentos do setor nos últimos anos, são os maiores candidatos a passar por um processo de consolidação, dizem especialistas.
Em relatório publicado na semana passada, a Fitch previu que o foco das fintechs deve migrar para retenção de clientes e vendas cruzadas, com as mais fortes em capital aumentando a fatia de mercado comprando rivais menores.
Sem espaço na memória
“Historicamente, em ambientes economicamente desafiadores como o atual ocorreram consolidações em várias indústrias, e os participantes mais bem preparados e capitalizados se beneficiaram”, afirmou o fundador e presidente-executivo do Nubank, David Vélez, acrescentando que o banco está atento a oportunidades de fusões e aquisições. “Não há espaço para 40 diferentes bancos digitais no mesmo smartphone.”
E mesmo gigantes que até pouco meses atrás mantinham o foco na expansão orgânica acelerada da base, mudaram o tom, no esforço de mostrar ao mercado que conseguem ser rentáveis e vão superar dificuldades.
O Mercado Livre, maior portal de comércio eletrônico e serviços financeiros da América Latina, desde 2021 passou a priorizar lucro e tem multiplicado lançamentos de produtos para rentabilizar uma base de 36 milhões de clientes no Brasil.
“Mais do que nunca, ter caixa é importante e estamos bem posicionados para passar por esse momento”, disse à Reuters o vice-presidente do Mercado Pago, fintech do grupo.
Apesar da desaceleração recente, analistas avaliam que a escalada de investimentos em inovação no Brasil é positiva por induzir maior competitividade e busca por eficiência em vários setores da economia.
“O legado positivo gerado nos últimos anos irá se manter no longo prazo, feitas as correções de rota”, afirmou Thiago Favero, da plataforma de análise Distrito, acrescentando que o investimento em startups segue elevado no Brasil.