Inflação da Argentina chega a 104,3% em março em meio a crises climática e econômica
"Se percebe a inflação em tudo quanto é canto e de uma forma bem agressiva", relata brasileiro que vive no país
De três meses para cá, o brasileiro Juliano Sousa, de 26 anos, relata ter sentido um aumento no custo de suas compras de supermercado na cidade onde mora, em Buenos Aires, capital da Argentina. Os preços dos ovos, por exemplo, subiram 70%.
“Quando cheguei, há três meses, eu pagava 1.000 pesos em 30 ovos. Na mesma loja, hoje, eu pago 1.700 pesos pelos mesmos 30 ovos”, conta ele à CNN. “Se percebe a inflação em tudo quanto é canto e de uma forma bem agressiva”, diz Sousa.
O relato mostra o impacto no cotidiano dos consumidores do que o Instituto Nacional de Estatística e Censos (INDEC) do país divulgou na última sexta-feira (14). O Índice de Preços ao Consumidor (IPC) apontou uma inflação de 104,3% em março, na comparação anual. Na comparação com o mês de fevereiro, os preços estavam 7,7% maiores.
O dado coloca o país no topo do ranking dos maiores índices de inflação entre os membros do G20, grupo formado pelas 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia.
Mesmo a taxa de juros, principal instrumento de bancos centrais para controlar a temperatura econômica, parece não conseguir domar os preços. Na última reunião do Banco Central da República Argentina (BCRA), em março, ela foi definida em 78% ao ano, um aumento de 3 pontos percentuais desde o encontro anterior.
Com a maior taxa nominal do mundo, segundo levantamento da gestora Infinity Asset Management que compila dados das 40 principais economias globais, a Argentina também é o país com os menores juros reais — aqueles que descontam a inflação.
“A inflação elevadíssima da Argentina é resultado da pouca credibilidade que o BC tem com a população e de uma política fiscal muito irresponsável há muitos anos”, afirma à CNN Alberto Bernal, estrategista internacional da Mesa Institucional da XP em Nova York.
“Os salários reais estão caindo, o que implica em um empobrecimento populacional alarmante. A inflação é muito, muito significativa, e os ajustes salariais costumam vir só depois que a inflação se instala. O trabalhador sempre perde seu poder de compra e consumo, e por isso há tanto mal-estar”, avalia.
Seca
A situação se agrava ao se olhar para a crise climática que a Argentina atravessa, um dos maiores exportadores mundiais de grãos. Lidando com uma das piores secas da história, as safras locais podem render quase um quarto a menos de dólares de exportação nesta temporada em relação ao ciclo anterior, de acordo com a bolsa de grãos de Buenos Aires.
O resultado é um encarecimento ainda maior dos preços dos alimentos — e uma perspectiva de perdas de dezenas de bilhões de dólares para a economia.
Como tentativa de conter a crise, o governo Alberto Fernández tem lançado mão de medidas de contenção de divisas e estímulos para determinados setores.
Desde 2018, a Argentina mantém em curso uma política que restringe a compra de dólares para mantê-los no país. A medida permite que apenas alguns poucos setores da economia, geralmente ligados a bens de capital e insumos industriais, tenham acesso ao dólar oficial, a 216,63 pesos por US$ 1 na cotação atual.
Pessoas físicas, que queiram destinar o dinheiro para poupança ou viagens, também podem comprar a esse valor, mas são limitadas a apenas US$ 200 por mês. Em resposta, o mercado paralelo de câmbio é quem sai ganhando, com dezenas de cambistas em quarteirões de ruas movimentadas de Buenos Aires tentando atrair turistas e locais para trocar moedas estrangeiras pela cotação do dólar “blue”, que, mesmo não sendo o oficial, é vendido sem grandes problemas com autoridades do país.
Dólares
O atual cenário de escassez de divisas, somado aos compromissos do país com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de acumular reservas monetárias, tem levado a Argentina a adotar novas medidas para o câmbio.
São 16 variações do dólar para estimular setores específicos da economia. O último, em vigor desde 1.º de abril, leva o nome de “dólar Malbec” e é focado no mercado nacional de vinhos, mirando elevar a competitividade da bebida.
Ele segue a esteira de outras variações — algumas com nomes inusitados, como dólar Coldplay, dólar Catar e dólar Netflix.
“Tomamos essa medida porque recebemos reclamações de setores da economia e porque queremos cuidar das reservas para produção e geração de empregos. Para isso, é preciso evitar a fuga de divisas”, disse Carlos Castagneto, chefe da AFIP (Receita Federal Argentina) em entrevista a jornalistas.
“Não estamos proibindo a compra de mercadorias ou pacotes turísticos, apenas encarecendo o dólar para proteger nossas reservas.”
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Em vez de ter uma única cotação para o dólar norte-americano, a Argentina tem criado variações da moeda para diferentes finalidades, com o objetivo de evitar a saída de divisas e fortalecer as reservas internacionais. São 16 cotações diferentes; veja quais são: • Tomas Cuesta/Getty Images
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Dólar do atacado, ou "mayorista"
Voltado para bancos e importadores, é a cotação pela qual o Banco Central argentino libera dólares para operações no exterior. Também chamado de “dólar interbancário”, é a moeda negociada no Mercado Único de Câmbio Livre (MULC). • 27/03/2010REUTERS/Jessica Rinaldi
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Dólar de varejo, ou “minorista”
É a taxa pela qual bancos vendem dólares ao público geral, limitada a U$ 200 por mês. Os clientes precisam apresentar um comprovante que justifique a necessidade de obtenção da moeda norte-americana, como viagens ao exterior. • 23/07/2015REUTERS/Thomas Mukoya
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Dólar Catar
Assim nomeado por causa da Copa do Mundo e da expectativa de maiores gastos de viajantes argentinos no exterior, é a cotação que incide sobre compras com cartão de crédito e débito que ultrapassem US$ 300 por mês, a uma taxa de câmbio de 300 pesos por dólar. • Hamad I Mohammed/Reuters
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Dólar Coldplay
Batizado em homenagem à banda britânica que fez 10 shows em território argentino, representa um acordo com o setor cultural -- em especial empresários do entretenimento internacional -- que podem ter acesso à moeda estrangeira a um preço menor. Cotado ao redor de 200 pesos, o “dólar Coldplay” tem um valor mais acessível que o “blue”, a versão clandestina. • Buda Mendes/Getty Images
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Dólar Blue
É a moeda que corre no mercado paralelo argentino, que, por ser mais acessível, costuma reger os preços do câmbio. Embora seja ilegal, circula amplamente no país e é vendido em lojas especializadas, à força da vista grossa de autoridades argentinas. Costuma rondar 300 pesos, quase o dobro da cotação oficial, do atacado e varejo • 17/07/2022REUTERS/Dado Ruvic/Ilustração
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Dólar Luxo
Usado para compra de artigos de luxo importados, como jetskis, aviões particulares e relógios, tem a mesma cotação do dólar Catar. • Divulgação
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Dólar Bolsa
Aplicado em transações no mercado acionário, é obtido na compra de títulos públicos em pesos e, depois, na venda deles em dólares. • 06/07/2023REUTERS/Amanda Perobelli
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Dólar "contado com liquidação" (CCL)
É parecido com o dólar Bolsa, mas quando os dólares resultantes das transações são depositados no exterior. • 28/10/2021REUTERS/Amanda Perobelli
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Dólar Senebi
Acrônimo para Segmento de Negociação Bilateral, foi criado em meados de 2021 para incidir sobre as negociações de bônus decorrentes da compra e venda de títulos públicos. Atua de forma parecida com o dólar Bolsa. • REUTERS/Dado Ruvic
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Dólar ADR
Utilizado apenas por empresas que operam no exterior, incide sobre ações cotadas em pesos e dólares, simultaneamente. Também atua de forma parecida com o dólar Bolsa. • 17/10/2022REUTERS/Agustin Marcarian
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Dólar Cedear
Acrônimo para Certificado de Depósito Argentino, é usado por empresas em operações de títulos comprados em pesos, mas que podem ser convertidos em moeda estrangeira. • 03/11/2009REUTERS/Rick Wilking
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Dólar Netflix
É aplicado sobre serviços de streaming pagos com cartão de crédito, como Netflix, Spotify, entre outros. Aqui, o dólar varejo incide com mais uma taxa de 45% para o Imposto de Renda antecipado, além de outra de 8%, chamada “imposto país”, e mais uma de 21% de EVA. Assim, a sobretaxa total é de 74% em relação ao dólar de varejo. • Foto: Mollie Sivaram/Unsplash
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Dólar Tecno
Embora tenha esse nome, não é uma taxa de câmbio, mas um incentivo a empresas que exportam serviços ou atuam na indústria da economia do conhecimento. Para aquelas que fazem mais de US$ 3 milhões em investimentos, o governo argentino anunciou isenção do pagamento de 20% sobre a moeda estrangeira no mercado oficial. Além disso, as empresas que aumentarem suas exportações neste ano terão disponibilidade de 30% de moeda estrangeira para utilizar na remuneração. • Pexels
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Dólar Cripto
Incide sobre transações de criptomoedas cujos valores estão atrelados ao dólar. • 14/02/2018REUTERS/Dado Ruvic
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Dólar Soja ou de Exportação
Em vigor apenas durante temporada de soja, faz parte do Programa de Incentivo às Exportações, onde os exportadores da commodity recebem o resultado de suas vendas ao preço de 230 pesos por dólar exportado. • 17/02/2020REUTERS/Jorge Adorno
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Dólar Malbec
É uma nova taxa de câmbio paralela para estimular a indústria do vinho e recuperar a competitividade do setor, que vem perdendo espaço no mercado por condições climáticas extremas. Deve ficar em vigor pelo menos até o fim deste ano. • Getty Images/EyeEm
“Décadas de má-gestão”
Segundo especialistas consultados pela CNN, a situação econômica da Argentina é reflexo de “décadas de má gestão”.
“O país tropeça de crise em crise há anos, porque a combinação de políticas lá é muito ruim”, comenta o economista Alexandre Schwartsman, ex-diretor de Relações Internacionais do Banco Central (BC).
“Nenhum governo parece conseguir ajustar esse problema. A análise quanto à Argentina não tem segredo: é simplesmente um país que tem sido mal gerido há décadas. A política monetária é absolutamente inconsistente com o objetivo de trazer a inflação para um mínimo de controle e, para piorar essa questão, o volume de gastos públicos não para de crescer.”
Para Alberto Bernal, a solução é uma só: “O Banco Central precisa aumentar os juros e ter uma política fiscal responsável, contracionista. Se não, será muito, muito difícil diminuir a inflação e dar confiança à sustentabilidade da dívida pública.”
Mesmo afetando o país independentemente do governo à frente, as eleições presidenciais batem à porta e as projeções não são animadoras para Alberto Fernández, que pleiteia a reeleição.
Os especialistas avaliam que as estratégias adotadas nos últimos anos — inclusive a criação de variações do dólar com nomes curiosos — são heterodoxas e extremas, e não atacam, necessariamente, os problemas estruturais que afetam a economia.
Temendo mais queda na popularidade, Fernández e a vice-presidente, Cristina Kirchner, relutam em adotar medidas impopulares e urgentes. É, porém, uma forma de empurrar o problema com a barriga, sem gerar resultados concretos nas chances de reeleição.
“É muito pouco provável que Fernández seja reeleito. A população tem uma péssima visão do governo por causa da péssima situação econômica”, avalia Bernal, que afirma acreditar que a oposição deve levar a maioria dos votos.
Entre os adversários, na direita liberal, há o atual prefeito de Buenos Aires, Horacio Larreta, e a ex-ministra de Segurança, Patricia Bullrich, ambos do partido Juntos por el Cambio. Correndo pela direita radical, há o deputado Javier Milei.
*Com informações da Reuters