Negociações de terrenos virtuais se intensificam; entenda como funcionam
Expansão dos ativos, ainda concentrados em jogos, está ligada ao conceito de metaverso
Uma mansão com dezenas de quartos, esculturas, aparelhos de última geração e com fluxo intenso de pessoas para admirar o local. Essa não é a descrição de um imóvel de luxo em uma grande metrópole, mas sim de um terreno virtual, cujo preço pode chegar a milhões de reais.
A negociação de terrenos virtuais não é exatamente uma novidade na internet, mas foi a fusão desses ativos com a tecnologia de blockchain que levou a uma expansão dos valores, interesse e discussão em torno do assunto.
No ano passado, a Decentraland, uma plataforma virtual que se tornou o principal exemplo do tema, movimentou mais de US$ 110 milhões (cerca de R$ 626 milhões na cotação atual) entre terrenos, roupas, itens de decoração e outros equipamentos. Em novembro, um único terreno foi vendido por US$ 2,4 milhões (cerca de R$ 13,6 milhões).
Mas a rápida ascensão desse tipo de negociação está ligada, também, a outro conceito que se popularizou em 2021, o de metaverso. Por trás desta palavra está a ideia de criar realidades paralelas, em um ambiente imersivo. E, para isso, é necessário ter lugares para frequentar, viver, se divertir e conhecer pessoas.
Os novos terrenos virtuais
Samir Kerbage, CTO da fintech Hashdex, afirma que a existência e negociação de terrenos virtuais já acontecia há, pelo menos, mais de 10 anos. O grande exemplo era o jogo Second Life, também considerado um pioneiro do metaverso na internet.
“A novidade é que agora as infraestruturas de realidade virtual estão sendo integradas com o blockchain, então, dá uma propriedade maior sobre os ativos. Quando compra o terreno registrado lá, sabe que é seu”, diz Kerbage.
Antigamente, o “dono” de um terreno poderia perdê-lo se a plataforma mudasse suas regras, por exemplo.
Com isso, os terrenos e diversos outros elementos do mundo dos jogos passaram a ser integrados nas chamadas finanças descentralizadas, cujo registro de posse e negociação ficam integrados nas redes de blockchain.
Segundo ele, essa possibilidade de ligar os dois elementos explica as altas expectativas, o famoso hype, por trás dos terrenos virtuais, e a alta valorização dos preços dos mesmos.
Para Caio Villa, diretor de investimentos da exchange Uniera, outra diferença é que, agora, os terrenos são considerados NFTs, termo em inglês para se referir a um ativo digital único, que não pode ser replicado e possui um código. “É como um imóvel físico. Pode ter um muito semelhante, mas nunca igual”, diz.
A princípio, os usos desses terrenos ainda estão muito ligados ao entretenimento. Plataformas como a Decentraland permitem criar imóveis, decorações, obras de arte, roupas e itens únicos. A ideia é que os usuários possam se encontrar, interagir, distrair e também negociar ativos entre si.
Segundo Villa, a inserção dentro do blockchain oferece um “ecossistema financeiro por trás”. Isso permite que o terreno seja alugado, usado para receber anúncios de marcas, ou até como garantia para empréstimos por parte de fornecedoras de crédito, em geral, em troca de criptomoedas.
“Esses jogos revolucionaram o sistema financeiro dentro deles. Deixou de ser um entretenimento e passou a ser uma economia”, afirma.
Para Kerbage, as aplicações desses terrenos ainda são “muito incipientes”. A ligação com os jogos acabou se tornando mais natural, pois, segundo ele, a adaptação por parte dos usuários foi mais rápida e simples.
Como comprar um terreno virtual?
Kerbage afirma que a indústria ligada aos terrenos virtuais ainda “está crescendo, está na infância”, mas já tem sido possível observar os elementos comuns nos diversos projetos.
O primeiro elemento é que a quantidade de terrenos virtuais oferecidos é finita. No jogo Sandbox, outra referência na negociação de terrenos, existem 166,464 disponíveis. O limite também existe para a criação de itens.
Segundo Kerbage, esse limite é necessário para criar uma ideia de escassez. Ou seja, se há uma quantidade limitada do ativo, quanto maior a demanda por ele, maior o valor. É um conceito que explica o preço de commodities, por exemplo, mas nesse caso a escassez é artificial, estabelecida pelos criadores da plataforma.
“O NFT só faz sentido quando utilizado para representar ativos que são escassos. É isso que dá valor”, afirma Kerbage.
Uma vez que os terrenos são criados, eles são oferecidos nos marketplaces, ou seja, ambientes de compras. Eles podem ser exclusivos da plataforma, mas é possível encontrar terrenos sendo vendidos em exchanges de criptomoedas, por exemplo, ou então em marketplaces gerais de NFTs, como o Open Sea, que movimentou mais de US$ 3 bilhões em dezembro (cerca de R$ 17 bilhões).
É por meio desses ambientes que as negociações ocorrem, em geral, com ofertas feitas por compradores interessados. No marketplace da Decentraland, por exemplo, é possível encontrar terrenos com valores que chegam a mais de US$ 50 mil (cerca de R$ 283 mil).
Assim como qualquer imóvel, a localização também pesa no valor. Na plataforma Decentraland, terrenos próximos das áreas de surgimento de jogadores costumam ser mais caros, pelo fluxo maior. Terrenos que já possuem conteúdos construídos também podem valer mais, dependendo do interesse dos compradores.
Já os pagamentos são feitos, em geral, por meio de criptomoedas. Algumas plataformas criam criptomoedas próprias, caso do Mana, do Decentraland, ou do Sand, do Sandbox.
Elas costumam ter quantidades finitas, também para criar a ideia de escassez, e cotações próprias, podendo ser negociadas em exchanges. Em alguns jogos, é possível obter um determinado valor da criptomoeda a partir de certas ações.
A negociação também pode ocorrer usando criptomoedas gerais, como as mais comuns, bitcoin e ethereum.
Cuidados necessários
Para Caio Villa, o “hype” em torno dos terrenos virtuais, e produtos ligados ao metaverso como um todo”, foi “gigantesco”, mas a maioria dos preços já teve recuo, em um processo normal do mercado.
“Agora tem uma consolidação, e os projetos vão precisar entregar, porque a maioria é só ideia ainda, e leva tempo até que eles se lançam, se desenvolvam, por mais que o mercado de criptomoedas seja rápido”, diz.
Nesse contexto, ele afirma que “quem investe tem que tomar muito cuidado, estudar, pegar projetos com bons fundamentos, ter um perfil adequado ao investimento e ter responsabilidade com o próprio dinheiro”.
Já Kerbage diz que, por mais que seja cedo para dizer se o setor passa por uma “bolha” – valorização excessiva e sem fundamento -, não é aconselhável que NFTs, inclusive terrenos virtuais, virem alternativas de investimento.
“O risco é muito alto. É um momento de hype, todo mundo fala sobre. Se isso é o começo de bolha, uma moda, ou é algo que vai virar parte normal do dia a dia, só o tempo vai dizer”, afirma.
Villa avalia que “muita coisa vai surgir, muita coisa vai desaparecer, mas a tecnologia em si [metaverso], não. Não é bolha, ela veio para ficar”.
Ele compara o metaverso à internet, já que é um elemento que traz muitas mudanças e coisas novas, mas que também envolve um certo receio inicial da maioria das pessoas pela falta de conhecimento sobre a tecnologia.
Kerbage afirma que o crescimento da demanda por NTFs como terrenos virtuais em 2021 foi “surpreendente”, mostrando um setor dinâmico e com muitas possibilidades de aplicação, ainda que várias sejam desconhecidas até o momento.
“É difícil fazer previsões sobre como o mercado vai evoluir, mas temos visto que, conforme o tema fica mais quente, a infraestrutura por trás e as plataformas de contrato inteligente precisam crescer, e elas vão competir entre si por escala mais massiva”, diz.
Segundo ele, a expansão desse mercado para um novo patamar, com ganho de escala, ainda depende da capacidade dessas plataformas de redes de blockchain de processar um número maior de transações.
“O conceito de propriedade no mundo digital é algo que veio para ficar, é um processo geracional de transformação digital”, diz.
Nesse sentido, Kerbage vê os terrenos virtuais como um próximo passo no processo, em que a representação de propriedade, valor e dinheiro passaram a ser possíveis no meio digital.
“Dentro dessa macrotendência pode ter momentos com excesso de expectativas, que criam bolhas. É natural que se mova em ciclos. É um novo ciclo e pode ter fases positivas e negativas dele”, afirma.