Inflação global é impulsionada por alta demanda e problemas em cadeias produtivas
Elevação dos preços deve continuar pelo menos até o primeiro semestre de 2022, dizem especialistas
O termo inflação resume um movimento de alta de preços e, em 2021, esse fenômeno se espalhou pelo mundo a ponto de se falar de uma “inflação global”, consequência da pandemia de Covid-19.
A ideia ganhou força em especial após os recordes de inflação ao consumidor nos Estados Unidos, com a maior alta nos últimos 30 anos, e ao produtor na China, com a maior elevação em 25 anos.
Como os países são as duas maiores economias do mundo, os efeitos inflacionários, em especial o aumento em custos de produção e nos preços de produtos, tendem a se espelhar.
Um ponto em comum em muitos casos são problemas em cadeias de fornecimento, com preços altos ou falta de produtos, e uma demanda aquecida da população devido a estímulos governamentais.
Esses dois fatores, segundo especialistas, estão entre as principais causas de um fenômeno inflacionário que ainda deve durar, pelo menos, até o primeiro semestre de 2022, afetando a recuperação econômica mundial.
As causas
O cenário atual de inflação global decorre de uma série de questões que surgiram a partir de um mesmo evento, a pandemia de Covid-19.
“A pandemia é um elemento externo à economia, não é um fenômeno econômico, mas tem consequências econômicas porque desorganiza a produção com a necessidade de períodos de isolamento”, afirma Simão Silber, professor da FEA-USP.
As paralisações, necessárias para conter a disseminação do coronavírus, levaram a uma queda na produção e, consequentemente, na oferta de produtos. Ao mesmo tempo, a demanda da população cresceu conforme as economias reabriram, além dos incentivos com programas de auxílios por parte de diversos governos para mitigar os impactos econômicos da pandemia.
Nesse cenário, entrou em ação a famosa lei da oferta e demanda: se a demanda é maior que a oferta, os preços sobem.
“Os governos fizeram programas de transferência de renda muito significativos. Então, de um lado a produção cai, mas boa parte da demanda se mantém, com até aumento na renda, via transferências fiscais”, diz o professor.
Um dos motivos para a inflação ser vista cada vez menos como transitória, mas sim como persistente, é a dificuldade das cadeias produtivas de se realinharem e equilibrarem novamente oferta e demanda.
Um dos principais exemplos é a falta de chips suficientes para atender às necessidades de produção de eletrônicos e automóveis, levando à falta de produtos.
No caso da China ainda há a política de “Covid zero”, que leva a fechamentos constantes de fábricas e afeta em algum grau a produção.
Já no caso do petróleo, os principais produtores, reunidos na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) cortaram a produção durante a pandemia, e ainda não decidiram retomar o patamar anterior à crise sanitária, limitando a oferta enquanto a demanda segue alta.
Armando Castelar, pesquisador associado do Ibre-FGV, cita ainda a alta mundial nos preços dos alimentos como fator para a inflação. Nesse caso, ela está ligada primeiro a uma série de eventos climáticos extremos que afetaram a produção, como as geadas e seca no Brasil.
Somou-se a isso os preços elevados dos contêineres usados no transporte marítimo, novamente por uma demanda maior que a oferta, o que encarece os custos de exportação e eleva os preços.
Para William Castro, estrategista-chefe da consultoria Avenue, todos esses fatores criaram um cenário de escassez, ou falta de determinados produtos, o que leva à alta nos preços. O problema que alguns países, como os Estados Unidos, estão passando de não encontrar trabalhadores para vagas de remuneração mais baixa também piora o problema.
“Muitas pessoas optam por não trabalhar ou trabalhar de maneira diferente do que anteriormente. O mundo ainda não voltou totalmente ao normal”, afirma Castro.
Segundo Silber, o cenário acabou se tornando mundial exatamente pelo fato de a pandemia ter o caráter global, além da ligação intensa das cadeias de suprimento, passando por vários países. Além disso, os fenômenos locais de alguns países ou regiões pioram quadros de inflação.
Na Europa, os países estão lidando com um aumento nos preços do gás natural, tanto pela demanda chinesa maior quanto pela produção menor da Rússia, principal fornecedor. A alta atinge as contas de luz, afetando consumidores e produtores, e encarecendo produtos e serviços.
Já na China, uma crise energética tem prejudicado a produção. O país cortou a importação e produção de carvão para combater as mudanças climáticas, mas não conseguiu atender toda a demanda de energia com outras fontes. Com isso, os preços de energia subiram e apagões ficaram mais frequentes.
O Brasil também tem uma inflação em alta, associada a uma série de fatores, como uma crise energética com a maior crise hídrica em 90 anos, uma demanda mais aquecida por programas de auxílio de renda, o dólar valorizado e incertezas fiscais. As incertezas fiscais, associadas à política, também pioram o quadro de inflação de outros países, como a Turquia.
“Isso tudo já reflete na inflação, seja nos Estados Unidos, China ou Brasil, e a previsão ainda é de alta nos preços para proteger as margens [de lucro]. Muito se falava que [a inflação] era transitória, mas ela tem sido temporariamente permanente”, diz Castro.
Os efeitos para a recuperação econômica
Além do efeito imediato que a população sente com a inflação – a redução do seu poder de compra – um quadro inflacionário pode trazer outras consequências. A principal é a resposta dos bancos centrais: alta nas taxas de juros para desincentivar o consumo, ou seja, a demanda, e fazer os preços caírem, às custas de desacelerar as economias.
Para especialistas, o grande debate hoje é entender quando, exatamente, os países vão começar a aumentar suas taxas para combater a inflação. William Castro afirma que cada país deve ser analisado individualmente, já que é preciso considerar fatores internos.
“É difícil ver isso acontecendo na Europa, que está se recuperando agora e que está sentido o impacto da inflação mais hoje. Os Estados Unidos estão mais à frente nesse sentido. No Japão não é algo que faz sentido pensar, até porque o PIB caiu. Eles têm um cenário de estagnação há anos”, diz.
Ao mesmo tempo, Castelar lembra que diversos países emergentes já começaram a subir seus juros para conter a inflação, caso do Brasil.
“Como o dólar ainda é moeda mundial, o encarecimento dela com a alta de juros cria uma pressão adicional em cima do real e outras moedas de emergentes”, afirma Silber.
O banco central dos Estados Unidos, o Federal Reserve, já tomou algumas medidas para conter a inflação. “Em vez de comprar todo mês uma quantidade de títulos do tesouro para injetar dinheiro na economia, ele vai reduzindo essa quantidade de compra até parar em 2022. O Fed prevê ao menos dois aumentos de juros em 2022 também, com a taxa encerrando em 1%”, diz o professor.
Entretanto, o banco central tem enfrentado pressões para adiantar esses aumentos para o primeiro semestre de 2022. Qualquer variação nos juros tem um impacto global, no sentido de retirar investimentos de países, em especial emergentes, com a atratividade maior dos títulos norte-americanos.
“É óbvio que existem pressões para que o Fed pare mais rápido essa compra e acelere a alta dos juros. É possível, mas a economia tem dado os sinais que o Fed quer ver, em especial, a queda da taxa de desemprego. Ela chegando na meta poderia acelerar esse processo”, afirma Castro.
Castelar considera que “a tendência é a taxa de juros americana subir, mais provavelmente a partir do segundo semestre de 2022. As expectativas ainda são de inflação alta lá, e precisa de juros maiores para conter. Mas o mercado não coloca isso, não precificaram um aumento tão grande ainda”.
As mesmas pressões começam a surgir na Europa, em relação ao Banco Central Europeu (BCE) e até na China. Por trás delas, está a visão de que a inflação durará mais tempo que o esperado, e não é exatamente transitória como alguns diziam antes, inclusive o Fed, daí a necessidade de acelerar as altas de juros.
Os especialistas consultados pelo CNN Brasil Business concordam que a inflação deve permanecer alta no primeiro semestre de 2022, mas é difícil saber o quão alta.
“O debate hoje não é se vai subir mais, mas sim o quão rápido vai cair. É difícil subir tanto mais porque os preços já estão muito altos, então, não seria o tamanho de alta que já ocorreu”, diz Castelar.
Com isso, a pergunta, para ele, é se a inflação cai ou se está entrando em uma fase de inflação sustentadamente alta, que exigiria um período de juros reais mais fortes, com ação maior dos bancos centrais.
“Eu acho que a pior fase já passou, mas não quer dizer que o efeito terminou. Ele deve durar até 2022. Até onde consigo acompanhar, só 2023 deve ter organizado o processo de fornecimento a nível mundial, “afirma Silber.
Para Castro, o Federal Reserve tem, em geral, sido bem-sucedido em convencer o mercado de que a inflação tende a ser controlada em um horizonte de dois anos, o que evita um pânico e a necessidade de “remédios maiores”.
O perigo, para o analista, é o que ele chama de “exportação” da inflação dos Estados Unidos e, em especial da China. “São as duas maiores economias do mundo. Se sobe lá, sobe em todos os países do mundo. Isso sem considerar o efeito no dólar”, afirma.
Segundo ele, será possível avaliar em algum nível o grau de gravidade da situação prestando atenção, primeiro, se alta na inflação aos produtores da China se manterá e chegará à inflação aos consumidores, o que resultaria em uma desaceleração da economia do país e traria repercussões negativas para inúmeros países, inclusive o Brasil. Até o momento, esse não parece ser o caso.
Além disso, “os preços das commodities são super importantes de acompanhar, em especial petróleo e ferro, e ver se vai cair ou subir. Eles antecipam altas que vão ter na produção. As próprias expectativas inflacionárias, que nos Estados Unidos estão mais controladas, e no Brasil começam a ficar descontroladas, demandam atenção”.
Segundo ele, o pior cenário mundial com a persistência da inflação e as altas de juros seria a chamada estagflação, quando os preços aumentam sem um crescimento da economia e a população fica mais pobre. “Para o Brasil, isso atinge em cheio, principalmente pensando em inflação e empregabilidade”.
Para o Brasil, Castelar afirma que a inflação deve ficar mais baixo que os níveis atuais, com a combinação dos efeitos das altas de juros com um custo menor de energia e a gasolina subindo menos. Entretanto, os riscos fiscais, o ano eleitoral e a possibilidade de alta do dólar com uma elevação de juros nos Estados Unidos podem pesar negativamente.
“No caso do Brasil, e em menor escala em outros lugares, a pandemia segurou muito a inflação de serviços, e agora com a reabertura, a tendência é que ela comece a subir. Vai ser uma fonte de inflação ano que vem também”, diz.
“A inflação global já piorou muito, já está incorporada à desorganização da produção. Os surtos adicionais de Covid estão acontecendo, na Europa por exemplo, com confinamentos na China também. Talvez o pior ainda não tenha passado”, afirma Silber.