Austeridade fiscal garantiu déficit zero no Brasil de 1999 a 2013, apontam economistas
Ministro da Fazenda vem sendo pressionado para aumentar a arrecadação e cumprir a meta de zerar o déficit fiscal
O conceito de superávit primário — quando se calcula o saldo entre receitas e despesas, sem considerar a conta de juros — foi introduzido no Brasil em 1999. Até 2013, entre os governos do Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, o país seguia em um cenário de superávit primário de, em média, 2% do Produto Interno Bruto (PIB).
A partir de 2014, o cenário se inverteu e o país passou a conviver com um déficit primário, ou seja, as despesas passaram a ser maiores do que a arrecadação.
Um cenário que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, quer reverter. A pasta deve enviar ao Congresso Nacional, até o final de agosto, pelo menos quatro propostas junto com o Orçamento de 2024. A ideia é fazer as medidas tramitarem na Câmara e no Senado para serem atreladas à peça orçamentária.
As propostas têm objetivo de ajudar a aumentar a arrecadação e cumprir a meta de zerar o déficit fiscal de 2024.
Porém, economistas consultados pela CNN dizem que deixar o país superavitário novamente será muito difícil.
“Digamos que este governo consiga zerar as contas — o que eu acho difícil de conseguir este ano, mas talvez no próximo. Mesmo assim, Haddad e Lula terão que pagar R$ 900 bilhões em juros e isso não entrará nessa conta. Consequentemente, as contas não vão estar em dia”, explica Paulo Feldmann, professor de economia da FIA Business School.
Ele lembra que nos anos em que o Brasil tinha um bom superávit primário, nos governos dos presidentes FHC e Lula, o resultado era reflexo da Lei de Responsabilidade Fiscal.
“A premissa era a seguinte: a arrecadação tinha que ser maior que o gasto, em qualquer nível do governo — seja federal, estadual ou municipal. Nenhum administrador público pode aceitar que os gastos seja maior do que ele arrecadou. Se isso acontecer, o responsável vai preso”.
Feldmann conta que essa meta de zerar o déficit iniciou no Plano Real, começando a vigorar por volta de 1999, e foi bem até 2013.
Valter Palmieri Jr., professor de economia da Strong Business School, aponta que desde o Plano Real a economia brasileira não zera o déficit nominal zero — diferença entre receitas e despesas públicas, quando consideradas as parcelas referentes aos juros nominais incidentes sobre as dívidas.
“O período em que o déficit nominal zero foi mais baixo desde 1995 até hoje foi entre 2007 e 2010. Isso ocorreu devido à combinação de um período de elevado crescimento econômico com baixa proporção relativa das despesas com juros do governo central como proporção para o da arrecadação tributária.”
Nesse período, os governos utilizavam do crescimento econômico como estratégia para manter as contas no azul. Palmieri Jr. explica que os presidentes ampliavam a arrecadação sem precisar elevar carga tributária, aliada a política de redução de taxa sem juros.
Início do déficit
O período onde o caixa do governo esteve mais crítico foi após a crise de 2015 e 2016. Foi um momento de diminuição dos gastos públicos e de queda brusca na arrecadação.
Mas, tudo começou no segundo mandato da então presidente Dilma Roulsseff. Foi em 2014, que houve uma mudança no percurso da dívida.
No início daquele ano, em uma reunião na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), ela fez um acordo com empresários da indústria brasileira, renunciando a arrecadação de parte de impostos do setor — ou seja, oficializou a desoneração fiscal.
Essa medida foi tomada no período de eleição em 2013, portanto não teve um contraponto dos industriais. Chegando então ao final do ano, faltou dinheiro no caixa do governo e os gastos continuaram os mesmo. Com isso, pela primeira vez em 13 anos, as contas ficaram negativas.
A partir desses resultados, começou a criar uma tensão no Brasil. Segundo Feldmann, no ano seguinte, em 2015, o cenário piorou ainda mais.
“Na ocasião, a presidente Dilma deu uma guinada na administração, colocando Joaquim Levi no ministério da Fazenda — um economista de orientação e ideologia econômica completamente diferente do PT. Levi apostou então na austeridade total, com uma preocupação na Lei de Responsabilidade Fiscal — gastar apenas dentro dos limites para não exceder a receita.”
O professor ressalta que, o então ministro levou essa política de forma exagerada. “Devido ao déficit pequeno que tinha dado em 2014, Levi anunciou no dia da posse da Dilma, em 2015, que ele iria corrigir aquilo de qualquer jeito e não haveria mais buraco nas contas, implantando a austeridade total.”
Levi declarou que o ritmo da economia brasileira em 2015 iria cair, pois só assim o país reaveria a saúde nas contas ficais. “Esse anúncio foi um desastre. A declaração fez com que os empresários, temendo uma recessão, começasse a demitir seus empregados.”
A taxa de desemprego no país em 2014 era de 4%. Após a declaração de Levi, os números dispararam. No segundo semestre de 2015 estava em 8,3%.
De lá para cá, a economia brasileira entrou em uma crise crônica. “Desde então, nunca mais se recuperou. O começo do problema aconteceu de forma muito pequena em 2014 e poderia ser resolvida de outra maneira, não da forma como Levi encarou”, opinou Feldmann.
O déficit em 2015 foi maior ainda, e em 2016 culminou no impeachment da presidente. “Quanto Michel Temer assume a presidente, até tentou consertar o rombo, mas não conseguiu.”
Na administração seguinte, de Jair Bolsonaro, até houve um início de melhora em 2019, porém, com o início da pandemia em 2020, o buraco ficou ainda maior.
“Esta administração, por conta da crise sanitária, teve que gastar mais do que se imaginava”.
Próximos passos
Para arrumar esse cenário, Espírito Santo aposta em uma saída: reformas.
“Esse é o melhor caminho, mas, para alcançá-las, é preciso força no Congresso e vontade política. Governos reformistas, com perfil mais liberal, tendem a buscar um orçamento mais equilibrado. Reduzir número de ministérios, privatizações, são medidas que contribuem. Ações que vão à contramão da atual gestão.”
Na visão de Palmieri Jr., sem corte em ritmo mais acelerado na taxa de juros não é viável.
“Além da taxa Selic ampliar os gastos públicos, promove menor crescimento da arrecadação, pois, a economia cresce menos. Penso que a qualidade do gasto é o que deve pautar a discussão e não corte apenas para cumprir com meta de curto prazo, comprometendo a dinâmica econômica no longo prazo”.
Valter Palmieri Jr.
Espírito Santo diz não acreditar que a solução seja o aumento de receitas.
“A carga tributária do Brasil já é elevadíssima para o que o governo retorna para a sociedade. Assim, seria preciso cortar gastos. Mas, como fazer com quase 40 ministérios? Precisamos de uma reforma administrativa para racionalizar o tamanho do Estado. Não me parece que esteja no radar de curto prazo.”
Palmieri Jr. também concorda com as reformas, mas avalia ser um grande desafio.
“O mais importante seria diminuir os elevados gastos com servidores da elite administrativa, militar e judiciária. Porém, a elite do poder se beneficia da situação atual e dificilmente aceitaria reduzir seus privilégios sem uma grande pressão popular.”
Propostas de Haddad
O ministro da Fazenda deve entregar, até o fim de agosto ao Congresso Nacional, o projeto de lei orçamentária anual (PLOA) de 2024.
A ideia de Haddad é fazer as medidas tramitarem na Câmara dos Deputados e no Senado Federal para serem atreladas à peça orçamentária.
Entre as ideias já sinalizadas estão a taxação de fundos exclusivos, conhecida como fundos dos super-ricos, e dos offshores — os fundos internacionais.
Além destas, há também medidas para taxar as casas de apostas esportivas, tributação para e-commerce internacional e retomada no voto de desempate no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf).
Outra proposta a ser enviada ao Congresso é o fim do Juro sobre o Capital Próprio (JCP), classificada por Haddad como “a maior caixa preta do Brasil” e que “drena bilhões dos cofres públicos” em benefício de poucas pessoas.
Quer também regulamentar, por fim, decisões judiciais do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como a decisão julgada em abril que reforçou que as empresas não podem usar incentivos fiscais estaduais para abater o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
Veja as perspectivas de arrecadação com as medidas que poderão ser entregues ao Congresso pelo governo federal:
- Tributação de renda no exterior (offshores) – de R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões
- Tributos sobre incentivos fiscais estaduais que não sejam para investimentos – R$ 50 bilhões
- Retomada no voto de desempate no Carf – de R$ 35 bilhões a R$ 50 bilhões
- Regulamentação das apostas esportivas – de R$ 2 bilhões a R$ 4 bilhões
- Fim do Juro sobre o Capital Próprio (JCP) – indefinido
- Tributação de e-commerce internacional – inicialmente R$ 8 bilhões, mas com isenção de taxação em compras de até US$ 50, ficou indefinido