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    Daniel Barros
    Coluna

    Daniel Barros

    Médico psiquiatra e bacharel em Filosofia. Professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP

    OPINIÃO

    Armadilhas cerebrais das apostas online

    Todo mundo já sentiu vergonha de alguma coisa nessa vida. Claro que existem os grandes e pequenos constrangimentos, dependendo do que fizemos. Mas pelo tamanho do prejuízo que Robert Norris levou para se livrar de uma vergonha, imagino que ela tenha sido enorme.

    Norris era um dos cowboys dos cigarros Marlboro, uma das campanhas publicitárias mais bem sucedidas da história. No meio do século 20 a indústria do tabaco começou a reagir às descobertas de que fumar era péssimo para a saúde e lançou os cigarros com filtro. Inicialmente eles foram divulgados como mais suaves e por isso eram vistos pelos consumidores como um produto para mulheres. Ao associa-lo ao universo rústico e bruto dos cowboys a Marlboro conseguiu transformar essa percepção – e ainda alcançou o público mais jovem com uma mensagem de independência e autonomia. As vendas dispararam, colocando a marca entre as mais consumidas na época. Mais gente fumando, basicamente.

    Vários atores – e posteriormente cowboys de verdade – assumiram o papel desses garotos-propaganda; muitos deles, fumantes na vida real, morreram de doenças ligadas ao tabaco, mas Robert Norris nunca fumou. E, ironicamente, não queria que seus filhos fumassem. Até o dia em que, com a ingenuidade e perspicácia caras às crianças, um deles confrontou-o com o óbvio: por que o pai fazia propagando de cigarro, se era tão ruim? Imagine a vergonha. Incapaz de sustentar tamanha dissonância cognitiva, Norris abandonou o papel, renunciando a seu cachê de estrela.

    Conforme os prejuízos associados do tabaco foram ficando mais e mais conhecidos, a sociedade – assim como Norris – decidiu mudar de atitude. Propagandas foram sendo restritas, patrocínios a eventos suspensos, apelo ao público mais jovem – como o famoso personagem Joe Camel – proibido. Certas coisas simplesmente não valem a pena, compreendemos. No Brasil a campanha antitabaco foi especialmente bem sucedida ao impor dificuldades ao uso do cigarro sem precisar bani-lo. Se na década de 1990 tive professores fumando dentro da sala de aula, hoje em dia para acender um cigarro é preciso estar com muita vontade, tamanho o trabalho que é encontrar um local em que seja permitido fumar.

    Mas aparentemente não aprendemos a lição. No momento atravessamos um momento muito parecido com a proliferação das bets no Brasil. A analogia pode ser imperfeita, mas serve para ilustrar pontos importantes. Além de afetar a vida de quem se vicia, a dependência de jogo – assim como o fumo passivo – é perniciosa mesmo para os que não se tornam dependentes: bilhões de reais deixam de ser gastos em bens em serviços para serem perdidos em apostas; a maioria dos jogadores não têm ideia de quanto já gastaram; rendas familiares são comprometidas; proliferam-se casos de crianças e adolescentes afetados.

    E assim como aconteceu com o cigarro no século XX, a propaganda desempenha um grande papel em sua proliferação. Em lugar de cowboys hoje são jogadores de futebol, atores e influencers que aceitam emprestar sua imagem a um produto que já sabemos de antemão ser viciante. E como se não bastasse a legislação parece que vem facilitar a vida dos apostadores.

    Podemos nos perguntar por que tanto barulho com as bets. De onde vem tanta preocupação se desde sempre houve apostas na história da humanidade? O principal motivo é que a tecnologia aumentou de forma exponencial o impacto desse comportamento ao criar armadilhas para nosso cérebro:

    • Os comportamentos se tornam mais frequentes quando ficam mais fáceis. – Com as apostas online todo o trabalho de encontrar o momento, o local, se deslocar até lá, é eliminado, aumentando muito a facilidade – e, portanto, frequência – das apostas;
    • Quando não manuseamos dinheiro temos uma menor sensação de gasto. – Gastar dinheiro geralmente está associado a uma resposta negativa do cérebro, mas o uso de pagamentos eletrônicos elimina o aspecto físico da transação, reduzindo um freio importante para o exagero;
    • Se ninguém está olhando ficamos mais livres. – Os jogos nos celulares permitem que o apostador mantenha as apostas escondidas por muito mais tempo, perdendo a regulação social do comportamento.
    • O reforço intermitente é muito mais viciante. – Quando não temos certeza de quando um comportamento será recompensando, insistimos nele por muito mais tempo, exatamente como acontece em caça-níqueis e diversos outros jogos.
    • Com a ubiquidade dos smartphones as apostas online alcançam um público incomparavelmente maior do que nunca. Com mais gente sendo exposta ao risco é inevitável que mais pessoas desenvolvam dependência de jogos.

    Esses aspectos mostram que, embora as apostas sempre tenham existido, a modalidade online é diferente – e muito mais perigosa.

    Não que eu atribua à Psiquiatria a função de determinar se algo deve ser proibido ou permitido – seja maconha, ritalina ou apostas. Essa é uma discussão que cabe à sociedade toda, calculando as perdas e ganhos associados a cada decisão. À Psiquiatria – e às outras fontes do conhecimento – cabe subsidiar o debate com dados, e a legislação que reflita a decisão da maioria.

    Conhecendo o tamanho dos prejuízos causados pelas apostas online, no entanto, torço para que não tenhamos de acumular ainda mais problemas para que os políticos decidam dificultar – e não facilitar – esse comportamento. Quanto aos influencers das bets, resta esperar que seus filhos lhes perguntem por que eles incentivam algo tão ruim.