Mudança de governo na Alemanha não deve ajudar acordo entre Mercosul e UE
Para especialistas, processo de ratificação deve continuar parado, mesmo com mudança na Alemanha
A assinatura do acordo entre o Mercosul e a União Europeia em 2019 foi comemorada, mas, dois anos depois, ele ainda não foi ratificado no continente europeu, e não entrou em vigor. Para especialistas, esse quadro não deve se alterar mesmo com uma mudança de governo na Alemanha, maior economia do bloco.
O grande ponto que gera críticas na Europa e que tem dificultado a implementação do acordo é a alta no desmatamento da Amazônia nos últimos anos. As críticas refletem um posicionamento contrário da própria população do continente, cada vez mais preocupada com as questões climáticas.
Não à toa, as eleições da Alemanha no fim do mês passado terminaram com ascensão do Partido Verde, que se tornou a terceira maior força do país com apenas uma grande pauta: a ambiental.
Entretanto, analistas consideram que o governo também deverá contar com o Partido Liberal Democrata, visto como mais alinhado aos interesses do empresariado, que apoiam o acordo. Especialistas consultados pelo CNN Brasil Business consideram que, mesmo com esse cenário, é necessário esperar alguns desdobramentos em 2022 antes do acordo avançar.
O acordo
Oliver Stuenkel, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), afirma que a negociação do acordo entre os dois blocos econômicos foi histórica em vários sentidos. O primeiro motivo foi a duração: iniciada em 1999, a negociação terminou em um acordo assinado apenas em 2019.
Outro motivo é que o acordo seria o maior da história considerando valores tanto para o Mercosul, formado por Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina, quanto para a União Europeia, com seus 27 países membros.
“A gente não está em uma fase em que a maioria das populações e governos apoiam essa abertura comercial. É mais uma fase de protecionismo, nacionalismo, e a aprovação realmente foi um passo significativo, pois era no contexto em que os Estados Unidos perderam um papel de grande promotor de um mundo globalizado”, diz Stuenkel.
Paulo Feldmann, professor da FEA-USP, concorda com a importância do acordo. “Foi a melhor coisa que poderia ter ocorrido para o Mercosul. Daria mais acesso a um enorme mercado consumidor, e eles usariam muito as nossas potencialidades, de mão de obra barata e riquezas naturais”.
Assim como outros acordos comerciais, ele previa uma isenção tarifária, ou seja, a não obrigação de pagamento de tarifas comerciais para as importações de alguns produtos de cada bloco.
No caso do Mercosul, as isenções seriam principalmente para os produtos agrícolas exportados, enquanto que os países da União Europeia não precisariam pagar tarifas para produtos como automóveis, maquinário, farmacêuticos e químicos.
Em 2020, por exemplo, o Brasil exportou cerca de US$ 27 bilhões em produtos para o bloco, principalmente agrícolas e derivados, como soja, celulose, farinha e sucos, ou seja, mercadorias que entrariam nas isenções previstas no acordo.
Já as importações somaram cerca de US$ 30 bilhões, se concentrando em produtos farmacêuticos e medicamentos, peças de veículos automotivos e produtos ligados à indústria de transformação, que também teriam as tarifas isentas pelo acordo.
“Nós poderíamos comprar produtos europeus a preços mais baixos, o que seria bom. Os preços caíram entre 10% e 20%”, afirma Feldmann. Ele observa, entretanto, que algumas questões regulatórias e o tempo para aplicação das isenções ainda não foram definidas, já que aguardam a ratificação do acordo.
Quais setores seriam beneficiados?
Stuenkel afirma que o acordo beneficiaria principalmente dois setores: o agronegócio do Mercosul, em especial o brasileiro, e a indústria europeia, com a Alemanha sendo uma das grandes ganhadoras.
“Cada acordo beneficia alguns grupos e prejudica outros”, afirma o professor. Exatamente por isso, alguns setores da Europa, em especial os ligados à agricultura que temem a competição com produtos brasileiros, e do Mercosul, mais ligados às indústrias locais, criticaram a negociação.
Kai Enno Lehmann, professor do IRI-USP, considera que o acordo “é o possível dentro das circunstâncias”, mas é limitado se comparado a outros que a União Europeia possui.
“Sempre seria um acordo um pouco limitado, levando em consideração que o grande ponto de disputa é a agricultura, e a União Europeia não está disposta a abrir muito a mão nesse caso” diz.
O entrave na ratificação
Lehmann explica que o processo de ratificação —que ocorre após a assinatura— de um acordo comercial na União Europeia é diferente do andamento no Mercosul. No continente europeu, é necessário que o parlamento de cada país aprove o acordo, assim como o Parlamento Europeu, formado por deputados eleitos a cada quatro anos em todo o bloco.
Já no caso do Mercosul, apenas os Congressos dos países membros precisam ratificar. “Em circunstâncias normais, isso já demora muito tempo, e as circunstâncias políticas do Brasil fazem com que isso demore mais ainda”, afirma o professor.
A ratificação já teria um caminho difícil devido à oposição de setores de agricultura em diversos países, em especial na França. Para Stuenkel, esses grupos “conseguiram um argumento a mais”, e ganharam como aliados os grupos ambientalistas, devido à alta no desmatamento da Amazônia.
Lehmann considera que o presidente francês, Emmanuel Macron, tentou atender aos dois grupos, criticando a política ambiental brasileira atual e colocando a sua permanência como um ponto que inviabiliza a ratificação, o que também agrada os agricultores franceses.
“Eu acho que o Macron vai enfrentar uma eleição em 2022 e não quer agitar o setor [agrícola]. Mesmo que não contribua muito para o PIB francês, é um setor politicamente bem organizado e que tem um lugar na identidade francesa, um estilo de vida do país”, diz.
“Já a proteção ambiental não vem só da França. É um ponto muito importante, pelo menos politicamente, para muitos países, como a Bélgica e o próprio Partido Verde da Alemanha, que se colocam contra o acordo devido às políticas ambientais do Brasil”, afirma Lehmann.
O professor considera que outro fator que dificulta a ratificação do acordo entre os membros do bloco é uma resistência forte na União Europeia em dar uma vitória para o governo Bolsonaro na política externa. “Eles veem questões polêmicas no governo, e cairia mal nesses países uma associação”.
Outro ponto é que, apesar do acordo conter o comprometimento de todos os signatários de cumprir as metas estabelecidas no Acordo de Paris contra as mudanças climáticas, e do Brasil de diminuir o desmatamento, não ficou claro como essas medidas ocorreriam e quais seriam as punições caso fossem descumpridas, o que desagrada ambientalistas.
Impacto de eleições da Alemanha
Stuenkel afirma que o acordo do Mercosul não foi um tema debatido na mais recente eleição da Alemanha. “Na verdade, assuntos externos praticamente não apareceram, o que foi visto por analistas como preocupante, reflexo de um país que não está pronto para assumir responsabilidades internacionais”.
Ele avalia que Angela Merkel, de saída do cargo de chanceler, “foi uma grande defensora” do acordo. “Ela peitou muito os ambientalistas com a frase de que a não ratificação não ajuda a proteger a Amazônia. Sempre buscou evitar a percepção defendida pelos Verdes de que uma ratificação seria uma vitória para Bolsonaro, uma aprovação”.
Segundo o professor, Merkel considerava que um isolamento não levaria a uma queda no desmatamento. Nesse sentido, ele afirma que um governo liderado pelo partido dela, o CDU, com apoio do Partido Liberal Democrático teriam “os dois principais defensores do acordo”.
O mais provável, porém, é que se forme uma coalizão “semáforo”, com o Partido Social Democrata (SPD), que ficou em primeiro lugar, o Verde e os liberais. Nesse caso, o primeiro-ministro seria Olaf Scholz, do SPD e atual ministro das finanças de Merkel.
“Eu diria que, quando se olha pelo impacto prático, esse novo governo será menos disposto a defender o Brasil publicamente porque a única prioridade dos Verdes é a questão ambiental, sem histórico de promover livre-comércio. O SPD é mais neutro, não quer gastar capital político, e os liberais devem ter como prioridade lidar com o atraso digital da Alemanha e desburocratização”, afirma Stuenkel.
Já Lehmann diz que será importante observar a distribuições dos ministérios entre os partidos. Caso o de relações exteriores fique com os liberais, poderia haver uma postura mais aberta ao acordo, mas a distribuição ainda é um mistério.
“Politicamente, me parece bem provável, até pela instabilidade relativa do governo e a situação econômica da Europa, que o foco principal vai ser doméstico”, diz. Isso, segundo ele, acabaria prejudicando as chances de ratificação.
Os professores afirmam que, independente da composição do governo, pouco deve ocorrer em relação ao acordo nos próximos 12 meses. A atenção ficará, primeiro, para a eleição presidencial na França, e depois para a do Brasil.
“Se houvesse uma mudança de governo no Brasil em 2022, seria outro cenário geopolítico”, diz Stuenkel. “A ratificação não vai ocorrer sem ratificar na França e Alemanha, e os dois têm eventos doméstico que chamarão mais a atenção no curto prazo”, afirma Lehmann.
Feldmann afirma que a aprovação de um acordo climático com medidas duras, incluindo o incentivo a não comprar produtos de países que sejam grandes contribuidores para as questões climáticas, deve prejudicar ainda mais o andamento do acordo.
“Eles vão ser muito rigorosos com isso, mas se o acordo já estivesse vigorando, teríamos sido chamados para discutir essas questões, e nem fomos. Não temos o acordo assinado por uma questão brasileira, eles foram muito claros”, diz.
“O Macron, por exemplo, já deixou claro que não vai assinar o acordo enquanto o Brasil não comprovar que diminuiu as queimadas na Amazônia. E a liderança da comunidade europeia também apoiou isso”.
Ele afirma que apenas com uma política ambiental ligada à preservação do meio ambiente será possível avançar no acordo.
A inação dos outros integrantes do Mercosul reflete o que Feldmann diz ser uma “falta de liderança” histórica no bloco, já que o Brasil não assumiu esse papel em nenhum governo. Segundo ele, também falta um “senso de planejamento” e uma busca por desenvolver uma capacidade de exportação nos países.
“O Mercosul é quem mais perde economicamente, porque a União Europeia é o maior ator do comércio internacional hoje. A entrada na Europa daria uma ampliação muto grande, abriria um novo mercado. Dá para ver que é menos relevante para a União Europeia exatamente porque, até agora, não ratificaram. Se fosse, eles teriam superado as críticas que colocam hoje”, afirma Feldmann.
Já Stuenkel afirma que é difícil analisar qual região acaba sendo a maior “perdedora” com a demora na ratificação.
“Os europeus olharam para o acordo a partir de uma perspectiva geopolítica, porque percebem que a presença europeia tem diminuído diante da concorrência econômica e política entre China e Estados Unidos. Então eu acho que havia uma argumentação de que fechar o acordo garantiria um pé na América do Sul, uma região em que eles foram perdendo influência e estão em terceiro lugar hoje”, diz.
*Sob supervisão de Thâmara Kaoru