Escassez global foi intensificada na pandemia, e efeitos devem continuar em 2022
Mudanças climáticas e tensões geopolíticas foram primeiras causas de problemas em cadeias de suprimento, diz especialista
A chamada “escassez global” de suprimentos é um problema que tem atingido uma série de países e diversos setores da economia em 2021. Em alguns casos, ela pode representar uma verdadeira falta de produtos. Em outros, uma elevação considerável nos preços devido a uma oferta menor que a demanda.
Para especialistas, os efeitos dessa escassez devem continuar em 2022, e não há como precisar quando todas as cadeias de produtos vão se estabilizar.
Apesar do cenário ser bastante associado à pandemia, que afetou a oferta e levou a uma demanda intensa conforme os países reabrem e vacinam suas populações, a crise sanitária não é o único fator que criou o cenário atual.
Outros momentos de escassez?
Simão Silber, professor da FEA-USP, afirma que o mais próximo que o mundo já chegou do cenário atual foi há mais de 40 anos, na chamada Crise do Petróleo. Na década de 1970, os principais países produtores da commodity, localizados no Oriente Médio, represaram suas produções, e os preços explodiram, com um efeito em cadeia.
Entretanto, para ele, o contexto atual é pior, já que o cenário de escassez, ou seja, oferta menor que demanda e falta de produtos para atendê-la, envolve uma série de produtos e cadeias, não ficando restrita apenas ao petróleo.
Outro momento histórico que se aproxima da crise vivida atualmente é o de 11 de setembro de 2001, no atentado terrorista às Torres Gêmeas. Após o ataque, houve um “aumento enorme da incerteza e uma interrupção rápida dos fluxos de troca entre países”, afirma Livio Ribeiro, pesquisador associado do FGV-Ibre e sócio da consultoria BRCG.
Mesmo assim, essa interrupção acabou relativamente rápido, com um efeito mais limitado. “Não tem um período com o tipo de choque que estamos observando agora que seja imediatamente destacável, porque alguns eventos naturalmente tiveram disrupções de cadeias, mas eram choques específicos”, diz.
Segundo Ribeiro, os impactos com a pandemia de Covid-19 configuram um cenário particular. “A pandemia é um choque sanitário que afeta principalmente o setor de serviços. Ao contrário de uma guerra que afeta pouco o setor de serviços, mas sim o consumo de bens”, diz. Ou seja, o cenário econômico com a pandemia é inédito, o que dificulta inclusive saber quando ele melhorará.
O caminho até a escassez
Ribeiro afirma que as desorganizações em cadeias produtivas e o descompasso entre oferta e demanda para diversos produtos estão ligadas aos efeitos da pandemia de Covid-19. Durante a crise sanitária, muitas empresas e indústrias precisaram fechar as portas, mesmo que temporariamente, para evitar a disseminação do vírus, o que afetou a produção.
Ao mesmo tempo, conforme a vacinação avançou, a economia dos países começou a reabrir, com uma demanda intensa por parte da população. Como a oferta ainda não a igualou, os preços subiram e alguns produtos ficaram mais escassos.
Entretanto, o pesquisador diz que as primeiras sementes para a crise atual foram plantadas antes da pandemia. “O mundo teve outros choques ou desorganizações de cadeias produtivas anteriores à Covid que ampliou isso. O mais evidente foi a guerra comercial entre Estados Unidos e China, que já afetava as cadeias de produção de eletrônicos”.
Com uma oferta já afetada, as cadeias estavam vulneráveis à pandemia, e o impacto foi grande. A disseminação das cadeias em termos globais, ou seja, com países participando de determinadas etapas de produção, piorou esse cenário.
Além da disputa geopolítica entre Estados Unidos e China, o Brexit – saída do Reino Unido da União Europeia – foi outra tensão que deixou cadeias vulneráveis. A falta de combustíveis no país, com preços altos, teve como uma das causas a falta de motoristas de caminhão para transportar os combustíveis, já que eles eram em maioria europeus e deixaram o país.
Outro exemplo é a tensão entre Rússia e União Europeia. O país fornece 40% do gás natural para a Europa, e alguns integrantes do bloco acusam o governo russo de segurar a produção, encarecendo os preços da commodity.
Há também o caso da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), cujos membros se recusam a elevar a produção da commodity para retornar aos níveis pré-pandemia. Com a demanda alta, os preços dispararam.
Com as disputas geopolíticas, o professor Marcos Fava Neves, da FEA-RP-USP, aponta que as mudanças climáticas pioraram o quadro, em especial para os produtos agrícolas.
“Pensando em grãos, temos uma demanda forte, de 40 milhões de toneladas por ano no mundo em média, e tivemos problemas de oferta por conta do clima principalmente, aí oferta e demanda ficaram desajustadas, estoque caiu, preço subiu”, diz.
A intensidade e frequência maiores de eventos climáticos, como secas e geadas, marcaram a produção agrícola brasileira em 2021. Somou-se a isso uma alta nos preços dos contêineres e dos insumos agrícolas, em especial adubo, com o câmbio desvalorizado.
Com produção menor e mais custos, os preços dos alimentos dispararam, tanto no Brasil quanto no resto do mundo. “Já vivemos momentos semelhantes, um deles ocorreu entre 2008 e 2009, quando as commodities subiram bastante de preço por causa da oferta alta. É um problema cíclico”, diz Neves.
Além disso, as secas no Brasil geraram uma crise energética, com a necessidade de usar mais usinas térmicas em vez das hidrelétricas, e as contas subiram, afetando toda a economia.
Já no caso da crise energética da China, foi o combate às mudanças climáticas que acabou gerando desafios. O país fechou minas de carvão e reduziu a importação, mas não conseguiu atender à demanda de energia conforme a economia reaquecia, levando a apagões e problemas na produção.
O encarecimento de produtos na China tem impacto mundial, já que o país fornece produtos e componentes para diversos países. Agora, segundo Ribeiro, o país “exporta inflação”, o que afeta toda a economia mundial.
Neves lembra que a área de transporte marítimo internacional ainda está se reajustando após os efeitos do encalhamento do navio Ever Given no Canal de Suez em março de 2021, que levou a atrasos em entregas e prejudicou o fluxo de transporte, também ajudando a encarecer os preços e desestabilizar as cadeias.
Quando a escassez acabará?
Considerando o impacto da pandemia nas cadeias globais, Livio Ribeiro diz que é difícil prever quando exatamente oferta e demanda vão se igualar e a situação de escassez se resolver, e isso deve variar de setor para setor.
“Um pedaço [desse choque de demanda] é permanente, mudou o nível de demanda que vai ter efeito inflacionário de curto prazo e ficou mais persistente até reorganizar demanda e oferta. Outro pedaço é conjuntural, e já está bem superado, estava ligado com contexto dos fechamentos”, afirma.
Para ele, a economia global enfrenta a parcela do choque persistente de demanda e oferta em setores, que pode representar mudanças definitivas ou temporárias. A reorganização dessas cadeias, porém, deve demorar, com efeitos prolongados nos preços.
“Temos visto que o choque tem sido mais persistente, mas a gente não sabe se ele será permanente. A mudança de visão do temporário para o persistente já tem refletido em políticas monetárias, como a do Federal Reserve”, afirma.
Entretanto, o pesquisador diz que é difícil que os preços acelerem para sempre, já que, em geral, a oferta consegue se igualar a demanda em algum momento, inclusive pela ação de alta de juros para desincentivar o consumo. Há a probabilidade, porém, que isso ocorra em um patamar de preços ainda elevado, o que dificulta a recuperação das economias.
Um problema é que não há como saber quanto do impacto dessas cadeias foi da pandemia, e quanto foi de fatores como disputas geopolíticas e crise climática. Com isso, ele espera que algumas das pressões inflacionárias e choques de demanda se mantenham para além de 2022.
No caso dos alimentos, por exemplo, a normalização no Brasil depende mais de questões climáticas que sanitárias. “Se não ocorrer nenhum problema climático ou de escassez de insumos, a produção vem para o mercado e começa a normalizar mais os preços lá para fevereiro e março pensando em grãos. Já café, laranja e cana é mais para o fim do ano que vem, dependendo de uma boa produção”, diz Neves.
Mesmo assim, o professor espera que a normalização também ocorra em patamares elevados. Já se o cenário de eventos climáticos extremos se manter, algo que muitos cientistas já esperam, altas nos preços dos alimentos como em 2021 podem se tornar a regra, e não a exceção.
“O Brasil é o principal prejudicado pela alteração climática global por ser um grande produtor agrícola, precisa se posicionar mais forte na questão climática. Se não acelerar a redução das emissões, esse quadro não muda, e não é o que temos observado”, afirma.
O cenário global tem feito com que alguns falem que estamos em uma “era da escassez”, ou “capitalismo da escassez”, mas Neves afirma que é cedo para chegar a essa conclusão.
“A crise começou muito agora, um monte de coisa se combinou em uma cesta. Para dizer que é estrutural é mais difícil, só se o planeta colocasse uma meta muito grande de descarbonização para reduzir muito a produção, mas é difícil que isso ocorra. Não acho que tenha nada muito diferente que impeça a demanda e oferta de igualar”, diz.
“Acho que é muito cedo para dizer que estamos em uma era da escassez, o que tem é que a estrutura relativa de demanda e oferta desorganizou, para isso virar cenário em vez de só transição, precisa que dure muito mais tempo e de forma sistemática”, afirma Ribeiro.