Uso de crime financeiro para acuar jornalistas tem aumento alarmante, diz Unesco
Relatório divulgado por braço da ONU para cultura revela avanço no número de casos de intimidação de jornalistas por meio do uso de legislações financeiras
Um novo relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), divulgado, nesta quarta-feira (23), revela que nos últimos três anos houve um “aumento alarmante” nas acusações de crimes financeiros contra jornalistas, como forma de acuar profissionais, veículos de imprensa e reduzir a liberdade de expressão.
A Unesco avaliou 120 casos entre 2005 e 2024 e verificou que 60% ocorreram entre 2019 e 2022.
“Isso faz parte de uma tendência mais ampla de assédio jurídico voltado para silenciar jornalistas, documentada pela Unesco em todas as regiões do mundo, o que está contribuindo para a erosão da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa”, diz o relatório.
Além de ser responsável pelas iniciativas da ONU que visam a proteção da infância, ciência e cultura, a Unesco inclui entre suas atribuições a defesa da liberdade de expressão, que, segundo a entidade, é “condição essencial para a democracia, a justiça e a dignidade humana”.
Entre as principais conclusões do relatório, a entidade afirma que jornalistas que reportam sobre corrupção são particularmente alvos. E os autores das acusações são quase exclusivamente atores estatais.
“Muitas vezes, os poderes executivos instruem órgãos administrativos, como escritórios de receita ou de aduana, a fazer acusações financeiras, contornando o escrutínio do judiciário”, afirma o documento.
Extorsão, evasão fiscal e lavagem de dinheiro são as acusações mais frequentemente apresentadas de forma indevida. Dos 120 casos analisados, mais da metade, ou 56%, contêm acusações de extorsão.
Em entrevista à CNN Brasil, Guilherme Canela, diretor da Área de Liberdade de Expressão e Segurança de Jornalistas da Unesco, afirma que a utilização de legislações fiscais e financeiras para atacar jornalistas tem substituído o tradicional uso de leis de difamação.
“O objetivo último é reduzir a liberdade de expressão, criar um espaço de medo e, inclusive, de inviabilização financeira, porque muitos desses processos não levam à prisão, alguns até levam, mas muitos terminam em multas altíssimas que inviabilizam a própria existência dos veículos jornalísticos”, diz Canela.
O diretor da Unesco acrescenta que a tática visa levar jornalistas a desistir de avançar em certas coberturas, em função das consequências do uso desse tipo de legislação.
Entre as acusações usadas indevidamente, segundo o estudo, estão: chantagem, financiamento do terrorismo, fraude, peculato e recebimento ilegal de fundos estrangeiros. São táticas que prejudicam seriamente a confiança em jornalistas e veículos de comunicação e que em muitos casos se revelam infundadas, afirma a Unesco.
Em alguns casos, jornalistas e suas famílias foram forçados a deixar seus países devido a acusações financeiras ou por temer perseguições legais.
De acordo com o relatório, esse tipo de assédio acontece com frequência durante protestos, campanhas eleitorais ou às vésperas de grandes eventos internacionais, quando o país anfitrião recebe maior atenção internacional.
Casos emblemáticos
Alguns casos que tiveram ampla repercussão ilustram de forma clara a tática de intimidação via legislações financeiras.
Um dos mais famosos foi a fiscalização do jornal argentino Clarín por 200 agentes da Receita Federal em 2009. A edição do Clarín daquele dia havia publicado que o órgão que controla o comércio agropecuário do país, a Oncca, havia concedido um subsídio de 10 milhões de pesos a uma empresa de maneira irregular.
As fortes imagens dos agentes da Receita entrando em peso na redação do jornal correram o mundo.
Outro caso famoso é o do jornalista José Rubén Zamora, fundador e editor do elPeriódico, um importante jornal da Guatemala que investigava a corrupção dentro do governo conservador de Alejandro Giammattei. Zamora passou mais de 810 dias preso depois de ser condenado em 2023 por lavagem de dinheiro, sentenciado a até seis anos de prisão e multado em cerca de US$ 40 mil.
Zamora foi libertado na semana passada; seu julgamento foi marcado por irregularidades e foi amplamente visto como uma tentativa de minar a democracia e atingir a cobertura crítica da imprensa durante o governo de Giammattei.
Fontes que acompanharam a elaboração do relatório da Unesco também afirmam que há casos no Brasil.
Um dos exemplos usados foi quando jornalistas foram autuados pela Receita Federal em 2021, em uma megaoperação contra irregularidades em contratos profissionais de TV, durante o governo de Jair Bolsonaro.
Regiões
O estudo da Unesco também revela quais regiões concentram a maior parte dos casos de uso indevido de acusações financeiras para silenciar jornalistas.
A Europa Oriental e a Ásia Central, é a área com a maior incidência. Foram 60 casos revistos desde 2008, sendo 41 deles no período mais recente, entre 2020 e 2024.
É uma região que abriga países que, durante o período do estudo, foram liderados por governos com tendências autoritárias. Entre eles, a Hungria, governada desde 2010 pelo primeiro-ministro autocrata Viktor Orbán, e Polônia, que até 2023 tinha um governo ultranacionalista.
Na América Latina e no Caribe, foram registrados sete casos entre 2010 e 2023, dos quais cinco foram iniciados em 2021 ou depois.
Na África, 15 casos foram identificados, sendo nove deles entre 2019 e 2024. Desses casos, a evasão fiscal e a extorsão foram as acusações mais frequentes. Nove dos jornalistas receberam penas de prisão, sendo a maior delas de 12 anos.
No Sul da Ásia, afirma a Unesco, acusações de extorsão têm sido mal utilizadas desde meados da década de 2000, e a restrição de financiamento estrangeiro ou acusações contra meios de comunicação independentes por financiamento ao terrorismo também é comum.
A Unesco destaca ainda que os dados são apenas indicativos e baseados na avaliação e análise de 120 desses casos. “É provável que haja uma subnotificação significativa”, diz o relatório.