Um 14 de julho sem clima para comemorar a democracia na França
Sem Champs-Élysées e com um primeiro-ministro do campo derrotado nas eleições, o desfile do principal feriado francês será atípico neste ano
A França deve viver um feriado de 14 de julho atípico neste domingo. A data marca a Queda da Bastilha e o fim da monarquia absolutista em 1789, além da Festa da Federação de 1790, primeiro aniversário da tomada da Bastilha.
Seria um dia de celebrar a democracia, mas os franceses não têm grandes motivos para fazê-lo neste ano.
A começar pelas imagens, a edição de 2024 do principal feriado dos franceses pode causar confusão. O tradicional desfile militar não será na famosa avenida Champs-Élysées, mas na avenida Foch, por causa dos Jogos Olímpicos.
Além disso, o primeiro-ministro Gabriel Attal deve acompanhar o presidente Emmanuel Macron na tribuna presidencial, sete dias após a derrota do campo presidencial nas eleições legislativas.
Segundo o artigo 8 da Constituição Francesa, cabe ao presidente escolher o primeiro-ministro, sem necessidade de validação dos parlamentares. Mas por uma questão de convenção e legitimidade política, o presidente sempre indica um premiê que representa o campo que tem a maioria na Assembleia Nacional, o equivalente a Câmara dos Deputados no Brasil.
Por essa razão, Attal apresentou sua demissão na última segunda-feira (8) pela manhã, mas Macron recusou a renúncia horas depois, sob o pretexto de “garantir a estabilidade do país”.
A decisão gerou uma enxurrada de críticas ao longo da semana. O presidente é acusado de não respeitar os princípios democráticos e o resultado das urnas.
Em um comunicado divulgado na terça-feira (9), a coalizão de esquerda que venceu as eleições, a Nova Frente Popular (NFP), alertou Macron contra “qualquer tentativa de sequestro das instituições” com a manutenção de Gabriel Attal.
Macron respondeu o alerta com uma carta aos franceses, publicada na quarta-feira (10), na qual condicionou a nomeação de um primeiro-ministro à criação de uma “maioria sólida” e plural na Assembleia.
O presidente francês afirmou na carta que ninguém venceu as eleições “porque nenhuma força política obteve maioria suficiente” e “os blocos que emergiram das eleições são todos minoritários”.
Também disse que enquanto uma maioria ampla não se formar, o governo continuará a exercer suas responsabilidades e nomeará um primeiro-ministro ao final deste processo.
Para obter maioria absoluta na Câmara Baixa do Parlamento Francês, um partido ou coalizão deve ter mais de 289 deputados. O bloco de esquerda ficou com 182 assentos na Assembleia, o centro com 163 e a ultradireita com 143.
Na direita tradicional, o senador Philippe Bas, do Republicanos, falou em “golpe à tradição republicana” e julgou a decisão como “antidemocrática”. O senador Bruno Retailleau, do mesmo partido, disse que a carta é a cara de Macron e que o presidente “não está se questionando”.
Mathilde Panot, líder do partido de extrema esquerda França Insubmissa na Assembleia, acusou Macron de realizar uma “apropriação legislativa” e disse que o presidente “deve parar de monopolizar o poder” e “admitir que foi derrotado e que a esquerda ganhou”.
A CGT, uma das principais centrais sindicais da França, alinhada a partidos de esquerda, pediu um dia de greves e protestos na semana que vem para pressionar Macron a chamar a NFP para o governo.
Houve reações também na ultradireita. A líder do Reunião Nacional (RN), Marine Le Pen, disse que o presidente propõe bloquear a França Insubmissa que ele ajudou a eleger e que “o circo se torna indigno”.
Jordan Bardella, pupilo de Le Pen e presidente do RN, disse que Macron é “irresponsável e organiza a paralisia do país ao posicionar a extrema esquerda às portas do poder”.
Fora da arena política, constitucionalistas também criticaram o presidente.
“Esta decisão é constitucionalmente incompreensível e democraticamente irresponsável. A nível democrático, Macron perdeu as eleições e não pode impor nada”, avalia Jean-Philippe Derosier, professor de direito na Universidade de Lille, no seu blog “A Constituição Decodificada”.
Outros constitucionalistas seguem na mesma linha e dizem que Macron se recusa a reconhecer a sua própria derrota ao manter Attal no cargo.
Diversos jornais franceses também relataram que interlocutores próximos a Macron afirmaram que o presidente não quer ficar fora do jogo e buscou com a sua carta retomar o controle.
Ao apelar por uma maioria ampla e negar a vitória da esquerda, o presidente francês tenta abrir caminho para a criação de um bloco central na Assembleia Nacional, no qual se reuniriam deputados do seu bloco centrista, o Ensemble, do Republicanos e da esquerda moderada, dos socialistas e ecologistas.
Quando Macron diz que “ninguém ganhou” e que “só as forças republicanas representam a maioria absoluta”, exclui o Reunião Nacional, o partido mais votado no último domingo (7), e a França Insubmissa, que elegeu o maior número de deputados do bloco vencedor. Juntos, os dois partidos somam 214 deputados.
Por todas as razões citadas, não há muito clima para comemorar o grande marco da Revolução Francesa e a queda do absolutismo neste ano.
Além da distração com a chegada da chama olímpica, a Festa Nacional neste domingo será realizada fora do seu lugar habitual e sem um governo formado pelo campo vencedor.
Em um ano em que o mundo olha para França por causa dos Jogos Olímpicos, o berço do Iluminismo pode não ter grandes exemplos democráticos para exibir.