Vasco deve contar história dos Camisas Negras a Ramon Díaz
Frase infeliz do treinador argentino criticando arbitragem feminina deve ser criticada, mas reflete pensamento enraizado no universo masculino do futebol
Quem nunca se enrolou com as palavras? Ou, no calor da emoção, deixou escapar alguma frase da qual se arrependeu antes mesmo de terminá-la?
Não estou passando pano para Ramón Díaz, técnico do Vasco, que foi extremamente infeliz ao insinuar que árbitras mulheres não estão capacitadas para tomar decisões no futebol. O experiente treinador argentino tentou se explicar dizendo que foi mal interpretado.
A verdade é que a maioria de nós, homens, pensa que o futebol é nossa propriedade. Esse pensamento está enraizado desde sempre e se materializa em opiniões sobre arbitragem e narração de futebol feitas por mulheres.
O mundo ideal deveria avaliar a qualidade do trabalho sem viés de gênero. Mas esse mundo não existe.
Embora critique a declaração de Ramón Díaz e, do alto de minha ingenuidade, queira crer que ele apenas se enrolou com as palavras, é provável que ele seja vítima do tribunal das redes sociais. Lacradores e lacradoras oportunistas cercarão o treinador como urubus virtuais em busca de carniça digital.
Repito: Díaz errou e merece ser criticado, dentro do limite de quem erra deve ser criticado. O cancelamento e a lacração são ferramentas que tentam combater ódio propagando mais ódio.
Trabalhei e trabalho com mulheres que são craques do jornalismo e conhecem muito de futebol. Mais do que isso, amam o futebol e o esporte. Em alguns momentos de minha carreira montei equipes nas quais mulheres eram responsáveis pela cobertura de futebol internacional e esportes olímpicos de destaque. Todas entregaram desempenho impecável.
Em certo momento indiquei uma colega para ser a primeira comentarista mulher de futebol em um canal importante. Há muitos e muitos anos, na era do Orkut. Ainda não existia o tribunal virtual das redes e, mesmo assim, ela foi cancelada após pouquíssimas participações.
Mesmo com esse passado, fui vítima de uma lacradora profissional quando me enrolei com as palavras num amistoso entre Brasil e Alemanha. Não pude completar um raciocínio para não atrapalhar o narrador que estava prestes a gritar um gol. Bastou para o ódio ser destilado pelo fígado cancelador.
Não faço isso com ninguém, e não farei com Ramón Díaz. Errar é humano e persistir no erro, é burrice.
O caso de Ramón Díaz escancara outro problema que aflige o futebol brasileiro: a falta de conhecimento de jogadores e treinadores sobre os clubes em que trabalham. Um caso raro de quem parece ter estudado a instituição que o emprega é o de Abel Ferreira, do Palmeiras.
O Vasco deveria chamar Ramón Díaz para um curso intensivo sobre a história do clube. O Cruzmaltino e sua imensa torcida se orgulham da trajetória inclusiva da instituição. Uma aula especial deve ser reservada para o caso dos Camisas Negras, o time campeão carioca de 1923.
O futebol no início do século 20 era um esporte elitista e sectário. Praticado majoritariamente pelos mais ricos e brancos. O Vasco ousou captar talentos entre pobres e negros moradores dos subúrbios da então Capital Federal, o que provocou espanto entre os que se consideravam proprietários do “football”.
O Vasco manteve-se fiel à ideia de montar time com jogadores que estavam à margem daquele clube fechado, inclusive pagando pelos seus serviços. Bastou para que o clube conquistasse a população suburbana do Rio.
Embora não tenha sido o primeiro time a contar com jogadores negros no futebol brasileiro, o Vasco de 1923 foi o primeiro a ser campeão com atletas negros, pobres e suburbanos, o que eternizou a façanha dos Camisas Negras.
Ao informar seu treinador sobre a história inclusiva da instituição, o Vasco ajudará Ramón Díaz e todos nós, homens, a entender que a maior virtude do futebol é ser universal.
O Vasco tem em sua história atletas maravilhosas que foram medalhistas olímpicas enquanto cruzmaltinas. Entre elas Janeth Arcain, do basquete, a nadadora holandesa Inge de Brujin e Adriana Behar e Shelda, dupla do vôlei de praia.
Elas simbolizam milhões e milhões de vascaínas, que são estrelas na terra a brilhar, que iluminam o mar.