Piloto relata pressão da Voepass para exceder jornada e trabalhar em dia de folga: “Vai, vai que dá para voar”
Em audiência pública na Anac, profissional da companhia aérea contou rotina de cobranças e fadiga: "Não queremos entrar em estatística de acidentes"
Um piloto da Voepass relatou em junho, durante audiência pública na Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), uma rotina de pressões da companhia aérea para a realização de voos fora da escala de trabalho e sem respeitar as necessidades de descanso da tripulação.
Ele contou já ter acordado com oito ligações perdidas no telefone, em dia de folga, com pedidos para pilotar. E advertiu que essa situação aumentava o risco de, em algum momento, ocorrer um desastre aéreo.
“A empresa às vezes me liga para fazer um voo: ‘Vai, vai que dá [para voar]’. Mas [na escala] diz que não é para ir”, afirmou o piloto Luis Claudio de Almeida, no dia 28 de junho, em uma audiência na agência reguladora que discutia a mudança de regras sobre a jornada trabalhista dos tripulantes.
A resposta, segundo ele, vinha em seguida: “Não. Vai, vai, vai que dá”.
De acordo com Almeida, esse tipo de conduta da companhia só acentua o cansaço extremo dos pilotos.
“Quando você acorda, tem oito ligações da escala no seu dia folga. Eu estava de folga e precisei desligar o meu celular”, completou.
A CNN tentou localizar o piloto, mas ele não foi encontrado.
Questionada pela reportagem, a Voepass garantiu que “cumpre com todos os requisitos legais, considerando jornadas e folgas”, conforme a regra da Anac que disciplina a jornada e a gestão da fadiga dos tripulantes.
Dirigindo-se a técnicos da Anac que conduziam a sessão pública, o piloto alertou sobre o risco de um dia “ligarem aí o jornal” e serem surpreendidos com notícias de um acidente aéreo causado por fadiga.
“Nós não queremos entrar nessa estatística”.
A mudança, ainda em discussão pela agência reguladora, é no RBAC (Regulamento Brasileiro da Aviação Civil) 117.
Segundo a agência, a atualização da norma pretende “revisar critérios para o gerenciamento da fadiga”, mas obedecendo a legislação em vigor e “sem descuidar” da segurança das operações.
O Sindicato Nacional dos Aeronautas critica a proposta e argumenta que ela pode ampliar, na prática, o limite de horas trabalhadas pelos tripulantes.
O presidente da Associação Brasileira de Pilotos da Aviação Civil, Maurício Pontes, fez um apelo — também na audiência pública da Anac — pela suspensão imediata das discussões e que não ocorra nenhuma mudança sem estudos aprofundados.
“Não existem estudos científicos para embasar qualquer flexibilização de limites”, disse Pontes, acrescentando que a Anac apenas tenta replicar experiências internacionais, desconsiderando a infraestrutura e o ambiente operacional no Brasil.
“Há risco objetivo de aumento da fadiga, da sonolência dos tripulantes brasileiros e, consequentemente, aumento do risco das operações”, afirmou.
Entenda as mudanças propostas pela Anac
O intuito da Anac, com a proposta, é aprimorar a legislação vigente, se aproximando da legislação dos Estados Unidos, para evitar os casos de fadiga entre os pilotos.
Entre as mudanças debatidas, estão:
- Duas opções de tabelas novas com tempos máximos de jornada e tempos de voo (tripulação simples, composta e de revezamento) – uma seguindo o padrão do FAA (autoridade de aviação dos Estados Unidos) e a outra seguindo o regulamento vigente.
- Ajuste nas jornadas na madrugada para reduzir a ocorrência da sequência “madrugada-madrugada-início cedo” (entre 6h01 e 7h59), reduzindo as sequências de jornadas mais cansativas;
- Limite de três jornadas na madrugada para operação de passageiros a cada 168 horas.
- Definição de requisitos para voos com tripulante extra para permitir seu retorno à base contratual, sem interferir na duração máxima de jornada.