Na Austrália, autoridades tentam conter protestos de ativistas climáticos
Aumento da vigilância policial e penalidades mais rígidas sobre manifestantes faz parte da nova abordagem dura do estado contra ações de grupos de direitos humanos do país
Ativistas climáticos dividiam torradas e café em um acampamento particular nas montanhas, nos arredores de Sydney, na Austrália, no último domingo (26), quando um deles notou um movimento em uma encosta próxima.
Um membro do grupo foi investigar e encontrou duas figuras em trajes de camuflagem completos, que pareceram pedir ajuda por rádio a um carro preto que correu para o local.
“Ficamos genuinamente confusos sobre por que essas pessoas estavam na propriedade”, disse Zianna Fuad, de 29 anos, membro do grupo ativista climático Blockade Australia.
O vídeo divulgado pelos ativistas mostra vários deles sentados em um carro com pneus vazios, enquanto uma mulher mais velha grita palavrões para os quatro ocupantes, incluindo as duas pessoas vestidas com roupas de camuflagem.
“Pensamos que eles talvez fossem direitistas que estavam nos espionando”, disse Fuad.
Acontece que eles eram policiais.
A polícia do estado de New South Wales divulgou que os homens camuflados eram oficiais da Strike Force Guard, um esquadrão especial formado em março para “prevenir, investigar e interromper protestos não autorizados”, particularmente a “semana da resistência” do Blockade Australia, que já causou caos na região central de Sydney e irritou alguns usuários das rodovias.
Durante a hora do rush da manhã de segunda-feira (27), manifestantes marcharam pelo distrito comercial central e uma ativista se trancou em um carro, bloqueando o acesso ao Túnel da Baía de Sydney.
O aumento da vigilância policial dos manifestantes faz parte da nova abordagem dura do estado contra a ação climática disruptiva que grupos de direitos humanos afirmam estabelecer um “precedente perturbador para os direitos de protestar”.
Após protestos no início deste ano, alguns ativistas climáticos foram ordenados a não deixar suas casas sob condições estritas de fiança que poderiam levá-los à prisão caso pisassem na calçada. Outros foram deportados.
Sophie McNeill, pesquisadora australiana da Human Rights Watch (HRW), disse que os manifestantes climáticos estão sendo “desproporcionalmente submetidos a ações legais vingativas pelas autoridades australianas”.
O ministro da polícia de New South Wales, Paul Toole, disse que os protestos não foram pacíficos nem autorizados e não seriam tolerados. “Esta ação perturbadora e perigosa é ilegal e qualquer pessoa que participe será presa”, disse ele em nota à CNN.
Após a operação de vigilância do último domingo, dez membros do grupo de manifestantes foram acusados de vários crimes, incluindo agredir um policial e destruir ou danificar propriedades.
O comissário assistente interino de polícia de New South Wales e comandante da Strike Force Guard, Paul Dunstan, disse a repórteres que os policiais envolvidos “temiam por suas vidas”.
O advogado Mark Davis, que representa a maioria dos réus, disse durante as audiências no tribunal que vários ativistas presos foram proibidos de entrar em contato com 15 pessoas em uma lista não associada de ativistas climáticos compilada pela polícia. A fiança foi recusada para dois deles, e pelo menos uma foi banida do estado depois de ter violado suas condições de fiança, ao postar um emoji sorridente na página de outro membro do grupo no Facebook.
As relações entre autoridades e ativistas climáticos nem sempre foram tão tensas no estado mais populoso da Austrália –o problema realmente começou em novembro do ano passado, quando o Blockade Australia interrompeu temporariamente o maior porto de carvão do mundo.
Em prisão domiciliar
Mais de 166 milhões de toneladas de carga passam pelo Porto de Newcastle a cada ano, incluindo milhões de toneladas de carvão transportadas por ferrovias de minas na região de Hunter.
Mas, por 11 dias em novembro de 2021, ativistas do Blockade Australia desativaram máquinas e bloquearam as linhas ferroviárias que levam ao porto, 163 quilômetros ao norte de Sydney, na costa leste da Austrália. Fuad disse que ela e uma colega ativista fizeram uma descida de rapel de um carregador de carvão e, por isso, foram proibidos de entrar em contato um com o outro por dois anos.
Na época, o então ministro da Polícia de New South Wales, David Elliott, disse que ações disruptivas não seriam toleradas e, em abril, o parlamento aprovou penas mais duras, incluindo penas de prisão de dois anos e multas de até 22 mil dólares australianos (US$ 15.270) por protestos ilegais nas estradas, ferrovias, túneis, pontes e parques industriais.
Antes que a lei fosse aprovada, 39 grupos da sociedade civil escreveram uma carta aberta chamando a legislação de “ataque inescrupuloso aos direitos de protestar”.
Os signatários incluem o Human Rights Law Center e o Greenpeace que, com o Environmental Defenders Office, publicaram anteriormente um relatório que descobriu que os ativistas climáticos estavam “recebendo rotineiramente penalidades desproporcionais e excessivas e condições de fiança que restringem sua liberdade de associação e reunião”.
A Austrália tem um longo histórico de inação climática sob o governo liberal anterior, que deteve o poder por nove anos e acabou perdendo a eleição federal em maio. O país também enfrentou várias emergências relacionadas ao clima nos últimos anos, incluindo inundações generalizadas e incêndios florestais recordes.
O novo governo trabalhista tem metas mais altas para cortes de emissões, mas se recusou a descartar novas usinas de carvão. A riqueza da Austrália está ligada às exportações de carvão e minério de ferro, e os críticos alegam que há fortes laços entre o governo e a indústria de combustíveis fósseis.
Ativistas climáticos dizem que o vínculo precisa ser interrompido com ação direta e estão dispostos a arriscar sua segurança e liberdade para fazê-lo.
Mas enquanto os australianos querem mais ação sobre as mudanças climáticas, muitos reagiram com raiva às táticas disruptivas do Blockade Australia. Davis, o advogado, disse que o grupo era impopular com o público em geral.
“O fato de que eles ousaram bloquear uma estrada, é claro, enfurece as pessoas”, disse ele. “Você não deveria estar bloqueando estradas, eu entendo isso. Mas não vamos ficar histéricos sobre o que essa ameaça significa, e por que não ter um pouco de liberdade para expressão política”.
Violet Coco, do grupo de resistência civil Fireproof Australia, passou 21 dias em prisão domiciliar completa depois de subir em um caminhão estacionado perto da Sydney Harbour Bridge em abril, segurando um sinalizador por 25 minutos, enquanto explicava a necessidade de ação climática urgente em uma live no Facebook.
De acordo com a Human Rights Watch, ela foi acusada de sete crimes, incluindo o de portar explosivos por segurar o sinalizador,. Ela se declarou culpada por bloquear o tráfego e desobedecer a uma ordem policial e foi libertada sob fiança de 10 mil dólares australianos (US$ 7.000) pelas outras acusações com a condição de não deixar seu apartamento, exceto para emergências médicas e comparecimento ao tribunal.
“Mesmo durante a Covid, fomos autorizados a caminhar uma hora por dia, e essas condições de fiança são mais duras do que as de infratores reincidentes de violência doméstica”, disse ela. “O que estamos fazendo ao agir assim com manifestantes pacíficos?”.
Davis, o advogado, disse que a prisão domiciliar é normalmente reservada para criminosos violentos ou aqueles que representam um sério risco de fuga. “A fiança existe para garantir que você volte ao tribunal. Não existe para puní-lo”, disse Davis.
Em maio, as condições de fiança de Coco foram relaxadas para permitir que a cantora de 31 anos deixasse sua casa entre 10h e 15h – horários escolhidos para que ela não atrapalhe o tráfego no horário de pico, disse ela.
Ela agora está morando em Lismore, uma cidade do norte de New South Wales devastada por inundações em março, onde está ajudando um grupo comunitário a reconstruir casas. Ela disse que planeja solicitar que suas condições de fiança sejam mais relaxadas.
“Isso é estúpido”, disse ela. “Estou morando em Lismore. Não há tráfego no horário de pico”.
Banido do estado
Três meses atrás, Alex Pearse, um cientista ambiental de 32 anos, de Brisbane, estava pendurado em um poste de oito metros sobre trilhos de trem em Port Botany, o maior porto de contêineres de New South Wales, bloqueando a cadeia de suprimentos por quase duas horas.
A polícia de New South Wales disse em um comunicado na época que “as autoridades ferroviárias foram obrigadas a parar todos os trens de carga que viajavam na linha”.
Pearse disse que as autoridades ferroviárias foram avisadas sobre uma ação iminente: “Não tomaremos essa ação a menos que tenhamos 100% de certeza de que não haverá trens circulando e tenhamos outros sistemas para garantir que esse seja o caso”.
Quando a polícia finalmente o retirou de lá, ele foi acusado de quatro crimes, incluindo incentivar a prática de um crime, com base em uma transmissão ao vivo do Facebook que ele filmou enquanto estava suspenso no poste.
Pearse se declarou culpado de duas das quatro acusações e foi banido de New South Wales enquanto aguarda sua próxima audiência no tribunal, com a condição de que ele se apresente à polícia de Queensland a cada dois dias. “Eles queriam tirar meu passaporte e me banir de aeroportos internacionais”, disse ele, acrescentando que o juiz recusou o pedido.
Cientista ambiental, Pearse viaja pela Austrália para monitorar ecossistemas de mangue e ver de perto os danos causados pela crise climática. Suas condições de fiança acabaram com isso, e ele não tem ideia de quando o processo judicial terminará.
“O nível de vigilância e repressão que está ocorrendo em pessoas comuns que só querem mostrar que estão descontentes com a resposta do Estado às mudanças climáticas é sem precedentes e francamente bastante assustador”, disse ele.
Como Coco e Pearse estão proibidos de viajar, eles não participarão da “semana da resistência” em Sydney. Nem Arno, um turista alemão de 21 anos que foi deportado depois de participar do protesto de Port Botany em março.
Arno, que está usando um pseudônimo para proteger sua identidade, chegou à Austrália em novembro de 2021 e estava trabalhando em canteiros de obras para financiar suas viagens. Ele participou de sessões de informação organizadas pelo Blockade Australia e, em 23 de março, se armarrou suspenso em um poste preso a uma ponte no porto, bloqueando o tráfego por três horas.
No dia seguinte, antes de sua primeira aparição no tribunal, o visto de Arno foi cancelado a critério do ex-ministro da Imigração do Partido Liberal Alex Hawke, que o considerou um “risco para a boa ordem” da Austrália – a mesma disposição usada para deportar o tenista Novak Djokovic sobre suas opiniões contra as vacinas de Covid-19.
De acordo com o aviso de deportação, visto pela CNN, Arno atraiu “uma quantidade significativa de cobertura da imprensa e interesse público em um momento crítico na gestão do governo de eventos climáticos específicos, como a atual emergência de inundações em Queensland e New South Wales”.
O ministro acrescentou que acredita que o envolvimento de Arno na promoção da ação climática desta semana em Sydney “provavelmente causará mais divisão dentro da comunidade e sentirá extrema desarmonia dentro da comunidade em ambos os lados do espectro das mudanças climáticas”.
Arno disse que passou uma semana na prisão e depois quatro semanas no Centro de Detenção de Imigração de Villawood, antes de ser enviado de volta à Alemanha. Seu irmão de 23 anos, Tom, cujo nome não é verdadeiro, também foi deportado por participar do protesto e proibido de entrar na Austrália por três anos. Agora desempregado, Arno ainda está tentando pagar milhares de dólares em multas australianas e custos de deportação.
Ele diz que não acha que penalidades mais duras em New South Wales irão deter os ativistas climáticos.
“As pessoas estão realmente cientes das consequências de não agir e não resistir a esse sistema extrativista”, disse. “E as pessoas também percebem que este é o sistema se protegendo mais uma vez, priorizando os lucros dos 1% ricos sobre os interesses da grande maioria da população”.
A emergência climática influenciou os votos na última eleição, confirmando opiniões expressadas em pesquisas de que os australianos querem mais ação climática. A eleição para o parlamento colocou mais membros do Partido Verde, o grupo político mais ambientalista da Austrália, junto com os novos independentes, que defendem uma transição ainda mais rápida para as energias renováveis do que a prometida pela maioria trabalhista.
O recém-eleito primeiro-ministro, Anthony Albanese, prometeu acabar com as “guerras climáticas” – a discussão entre esquerda e direita sobre o custo tanto da ação quanto da inação climática – mas até agora os protestos climáticos disruptivos têm sido um assunto para os estados.
Sistema se endurece contra ativistas climáticos
New South Wales não é o único estado australiano que está sendo duro com os ativistas climáticos. A Tasmânia está perto de aprovar emendas para aumentar as multas e impor penas de prisão mais longas aos manifestantes que obstruam negócios ou causem “risco sério”. E o estado de Victoria está considerando leis para atingir pessoas que protestam contra a derrubada de florestas nativas.
A repressão se estende não apenas às pessoas que participam dos protestos, mas também aos envolvidos em qualquer coisa considerada associada a uma possível ação de protesto – como foi visto durante a operação do último domingo.
Em uma declaração conjunta, 40 organizações da sociedade civil expressaram preocupação com o fato de a polícia de New South Wales ter se engajado em “policiamento preventivo”, colocando o grupo sob vigilância e enviando um helicóptero, o esquadrão de cães, o esquadrão de choque e o de elite – entre outros – quando o disfarce dos oficiais foi descoberto.
“Enviar 100 policiais armados para ameaçar e intimidar pessoas que planejam um protesto pacífico é alarmante e desproporcional”, disse Alice Drury, diretora jurídica do Human Rights Law Center, em um comunicado.
Mais de 250 policiais foram mobilizados na região metropolitana de Sydney nesta semana para evitar o que eles esperam ser uma “perturbação considerável”.
A polícia de New South Wales prendeu 10 pessoas e pediu ajuda pública para identificar outros que participaram. “Espere uma batida na sua porta, nós iremos até você para prendê-lo”, disse Dunstan, o comissário assistente interino da polícia de New South Wales.
“O comportamento deste grupo não foi menor do que uma atividade criminosa”, acrescentou. “O arremesso de bicicletas, o arremesso de latas de lixo, o arremesso de outros itens no caminho da polícia, no caminho da mídia, no caminho de membros inocentes do público apenas passando, não serão tolerados”.
Os ativistas que anteriormente foram soltos sob fiança correm o risco de serem presos se chegarem perto dos locais de protesto – ou se entrarem em contato uns com os outros por qualquer meio.
Fuad, o ativista, disse que eles “realmente, realmente” não querem ir para a cadeia, mas alegam que não têm muita escolha. “Sinto que estamos em um ponto agora em que precisamos aumentar profundamente nossa resposta porque não estamos sendo ouvidos”.
O Blockade Australia não tem uma lista específica de demandas – eles apenas querem que o governo, as corporações e a mídia ajam de acordo com a escala da emergência climática.
Fuad disse que suas comunidades sofreram com os incêndios florestais de 2019-2020 que destruíram milhões de hectares de terra na costa leste, bem como as recentes inundações em New South Wales e Queensland.
“Minhas comunidades foram dilaceradas por desastres climáticos que já estão aqui”, disse Fuad.
“Somos uma nação incrivelmente extrativista, e acho que os jovens estão percebendo que essa é a única escolha que nos resta”.