Pereira e Phillips são o Herzog e o Fiel Filho do governo Bolsonaro
Nos anos 1970, tortura e morte do jornalista e do operário escancaram mazelas da ditadura e provocaram mudanças no governo
Os assassinatos do indigenista Bruno Araújo Pereira e o do jornalista Dom Phillips tendem a representar, para Jair Bolsonaro, o que as mortes do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho simbolizaram para o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979). São tragedias que têm força para ilustrar uma época, que ajudam a resumir um período historico.
Há diferenças importantes entre os casos. A tortura e assassinato de Herzog (1975) e de Fiel Filho (1976) em dependências do exército foram obra de funcionários públicos, militares ligados aos porões, inconformados com o processo de abertura política.
Pelo que se sabe até agora, Pereira e Phillips foram vítimas de bandidos que invadem terras indígenas para praticar atividades econômicas ilegais. Não há evidência de participação de pessoas ligadas a governos na chacina.
Os torturadores de Herzog e Fiel Filho se sentiam abandonados, traídos por aqueles homens que haviam estimulado a repressão baseada na aplicação indiscriminada de sevicias, no assassinato e no desparecimento de opositores.
Havia sinais de mudança nos tempos, de moderação no processo de escolha de vítimas – documento do governo americano revelou que, no ano anterior, Geisel autorizara a continuação de execuções sumarias, mas apenas de “subversivos perigosos”.
Suspeitos de ligação com o Partido Comunista Brasileiro, o jornalista e o operário não poderiam ser considerados perigosos, suas mortes foram interpretadas com um desafio vindo dos setores mais duros do regime. Afrontado, Geisel reagiu, e demitiu o comandante do então II Exército, general Ednardo d”Avila Mello.
Herzog não era um jornalista conhecido do grande público, trabalhava nos bastidores, como diretor de jornalismo da TV Cultura. Seu assassinato, porém, despertou uma indignação que culminou com um ato na Catedral da Sé, onde o arcebispo D. Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor presbiteriano Jaime Wright celebraram um culto ecumênico em homenagem à vítima e em protesto contra a ditadura.
Parte relevante da sociedade disse, naquele momento, que passaria a reagir de forma mais ativa aos crimes cometidos pelos militares. Um limite fora ultrapassado com o assassinato de um opositor que atuava de forma pacifica, que trabalhava numa TV ligada ao governo estadual e que, depois de convocado, tomou a iniciativa de ir ao quartel depor. Três meses depois haveria a tortura e morte do operário.
Milhares de pessoas foram torturadas na ditadura, centenas foram mortas ou estão desaparecidas até hoje, mas os assassinatos de Herzog e Fiel Filho se transformaram em marcos, em pontos de inflexão, um aviso de que a sucessão de casos semelhantes deveria ser encerrada.
O sacrifício de Pereira e de Phillips tende a cumprir o mesmo papel. Mesmo que agentes do Estado não tenham responsabilidade por suas mortes, os crimes só foram possíveis graças à leniência de governos – o federal, principalmente – com práticas ilegais na Amazônia.
Na campanha eleitoral e ao longo de seu mandato, Bolsonaro não economizou atos e declarações que enfraqueceram órgãos como a Funai e o Ibama, que tiveram efeito negativo sobre comunidades indígenas, que reforçaram a atuação criminosa de garimpeiros, agricultores, pecuaristas e de outros invasores de terras reservadas para populações originarias.
Em 2018, chegou a dizer que, caso eleito, daria uma “foiçada na Funai”. A foice que atingiu a fundação – que acabou entregue a policiais – serviu como incentivo àqueles que, na ponta da linha, soltos na floresta, veem o indígena e seus defensores como inimigos a serem expulsos ou exterminados – levantamento publicado pela CNN mostrou que os homicídios na região sudoeste do Amazonas aumentaram de 14 em 2019 para 85 em 2021, crescimento de 507%.
Diferentemente do ocorrido sob Geisel, os assassinatos do indigenista brasileiro e do jornalista britânico não foram uma provocação ao poder. Os homicidas tinham certeza de que estariam protegidos pela mesma impunidade que garante a liberdade de outros criminosos.
Mas, assim como os algozes de 1975 e 1976, eles erraram na avaliação das vítimas e do momento histórico. A História é assim, dinâmica, mutável, surpreendente. Volta e meia aparenta dar alguns saltos repentinos – pulos, que com frequência, são momentos em que afloram sentimentos represados e que não poderiam mais ser reprimidos.
Assim como nos casos de Herzog e Fiel Filho, a repercussão das mortes de Pereira e Phillips indica o início do fim de um modelo de exploração da floresta e joga na cara do país e do mundo as consequências do que muitos tentavam não ver.