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    Análise: Lockdowns rígidos na China podem exacerbar crise populacional no país

    Gerações mais jovens mostram desejo menor de casar e ter filhos

    Nectar Ganda CNN , Em Hong Kong

    Durante gerações, os pais chineses tiveram como um de seus principais objetivos na vida o sucesso dos seus filhos – e sabe-se que estão dispostos a fazer grandes sacrifícios por isso.

    Assim, quando uma família de Xangai se recusou a ser levada de casa para quarentena do governo durante a sexta semana de lockdown da cidade, um policial alertou-os para o que ele pensava ser uma ameaça poderosa para atingi-los: o futuro de seus filhos.

    “Se você não obedecer às ordens do governo da cidade, você será punido e a punição afetará três gerações em sua família”, afirmou o policial, vestido com o traje branco de proteção, de dedo em riste, falando para a câmera, em vídeo publicado nas redes sociais chinesas.

    “Nós somos a última geração, obrigado”, respondeu com firmeza um jovem, que não é visto no vídeo, em uma aparente sugestão que ele não está planejando ter filhos.

    O vídeo termina ali, sem indicar se a família acabou sendo levada ou não. A filmagem viralizou intensamente na China, refletindo como muitos jovens chineses estão cansados com a pressão crescente para ter filhos, uma pressão vinda de uma sociedade e de um governo que muitos dizem que lhes fornece pouca segurança material e emocional necessárias para criar crianças.

    “Eu ri no começo, mas no final senti uma grande tristeza. O jovem está demonstrando sua resistência ao desistir de seus direitos reprodutivos”, comentou um usuário no Weibo, a plataforma da China semelhante ao Twitter. ​

    Há muito tempo, transmitir a linhagem familiar tem sido um dever filial na cultura chinesa tradicional. No entanto, na China de hoje, não ter filhos (ou atrasar o processo) se tornou uma forma de resistência branda e protesto silencioso contra o que muitos enxergam como a realidade decepcionante em que vivem, com problemas estruturais profundamente enraizados decorrentes de um sistema nos quais eles têm pouco poder para mudar.

    Trabalhadores em trajes de proteção transportam equipamento para exame de detecção de Covid-19 em Xangai, na China / 14/05/2022 cnsphoto via REUTERS

    “É uma trágica expressão de desespero do tipo mais profundo”, escreveu no Twitter Zhang Xuezhong, advogado de direitos humanos e ex-professor de direito em Xangai.

    “Fomos roubados de um futuro que vale a pena esperar. É, sem dúvida, a denúncia mais forte que um jovem pode fazer da era em que vive”, continuou.

    Ao longo da última década, um número crescente de millennials chineses adiou (ou rejeitou totalmente) o casamento e a formação da família por enfrentar uma elevada pressão profissional, os preços altíssimos no mercado imobiliário, os custos crescentes com educação e a discriminação contra as mães no local de trabalho.

    No ano passado, apenas 7,6 milhões de casais chineses registaram-se para se casar, uma queda de 44% desde 2013 e a taxa mais baixa em 36 anos. Ao mesmo tempo, a taxa de nascimento do país caiu para 7,5 nascimentos por 1.0000 pessoas, a menor desde a fundação da China comunista, com nove províncias e regiões registrando crescimento negativo da população.

    O governo chinês está preocupado. Durante décadas, ele aplicou uma política severa de uma criança por casal, o que forçou milhões de mulheres a abortar gestações consideradas ilegais pelo estado. No entanto, com a taxa de natalidade da China em forte queda, os demógrafos alertaram para uma iminente crise populacional.

    O governo suspendeu a política do filho único em 2016 e relaxou ainda mais as regras no ano passado para permitir que os casais tenham três filhos. Os governos locais lançaram uma série de slogans de propaganda e incentivos financeiros para encorajar mais nascimentos. Mas a taxa de natalidade segue desabando.

    Algumas autoridades e consultores políticos parecem surdos às exigências dos jovens. No mês passado, um professor de direito e representante do Congresso Popular Municipal de Jinzhou, na província de Hubei, sugeriu que, para promover o casamento e a gestação, os meios de comunicação devem reduzir ou evitar a apresentação de reportagens sobre “mulheres independentes” e sobre o estilo de vida “dois salários sem filhos” (conhecido pela sigla DINK em inglês) porque eles não estão em conformidade com os “principais valores” do país. A sugestão trouxe uma grande reação negativa.

    Funcionários em trajes de proteção atendem cliente em supermercado de Xangai, na China / 05/05/2022 China Daily via REUTERS

    Com a pandemia se arrastando, o sentimento de desencanto entre muitas das gerações mais jovens do país só cresceu.

    Os lockdowns cada vez mais frequentes e rigorosos (e o caos e as tragédias que deles surgiram) fizeram com que os cidadãos percebessem a fragilidade de seus direitos face a um aparelho estatal que não permite dissidências e a uma burocracia insensível treinada para decretar ordens de cima para baixo, com pouca flexibilidade.

    A situação é mais exacerbada em Xangai, que está vivendo um lockdown rigoroso há sete semanas. Na cidade mais rica e glamorosa do país, os moradores têm sido sujeitos a uma escassez generalizada de alimentos, falta de cuidados médicos e quarentena forçada em instalações improvisadas e precárias. No início, as autoridades separavam as crianças pequenas de seus pais no isolamento – e só reverteram o curso depois de um forte apelo do povo.

    A crescente frustração e raiva eclodiram nas redes sociais chinesas – e, em alguns casos, os censores lutam para acompanhar o ritmo. Alguns moradores protestaram de suas janelas, batendo panelas e panelas e gritando sua frustração. Outros colidiram com a polícia e os profissionais de saúde nas ruas, algo raramente visto num país onde a dissidência é rotineiramente suprimida.

    Na semana passada, funcionários públicos forçaram os moradores a entregar suas chaves depois que eles foram levados para quarentena, para que então os profissionais de saúde pudessem entrar e limpar seus pertences pessoais com desinfetante, algo feito com pouca justificativa científica ou respeito pelos direitos de propriedade privada.

    Para muitos moradores, essa foi a gota d’água. Foi quando perceberam que nem mesmo as suas casas – o seu espaço privado e último refúgio – seriam poupadas da zelosa aplicação da política de Covid zero do governo. Alguns dizem que suas vidas se tornaram dispensáveis na busca do que os oficiais consideram o “bem maior”. Cidadãos se sentiram impotentes para proteger os seus entes queridos.

    Para muitos jovens, a crise que se desenrola em Xangai está disparando sinais de alerta. Se até mesmo a cidade mais desenvolvida da China – com a maior população de classe média, os burocratas supostamente mais abertos e a cultura mais cosmopolita – não pode ser poupada do tratamento autoritário, será que outras cidades têm situação melhor?

    “Quem está disposto a ter filhos quando as coisas chegam a esse ponto? Quem ousa ter filhos?”, perguntou um usuário no Weibo.

    “O seu reinado termina comigo. E o sofrimento que você causou também termina comigo”, comentou outro.

    A raiva em veloz expansão logo atraiu a atenção dos censores. Na noite de quinta-feira (12), a maioria dos vídeos havia sido apagada da internet chinesa. No Weibo, várias hashtags relacionadas, entre elas “somos a última geração” e “última geração”, foram censuradas após atrair discussões acaloradas.

    Mas suprimir o que os jovens querem dizer não ajudará a convencê-los a ter filhos. Pelo contrário, é provável que isso apenas aumente sua insatisfação.

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