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    Defendida por Lula e Guedes, “moeda única” não é viável, dizem especialistas

    Proposta faria com que países da América Latina adotassem uma mesma moeda, facilitando a integração comercial, mas reduzindo autonomia monetária

    João Pedro MalarPedro Zanattado CNN Brasil Business , em São Paulo

    Defendida tanto pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, a implementação de uma “moeda única” para os países latino-americanos esbarra em uma realidade ainda distante da ideal para sua implementação, segundo especialistas ouvidos pelo CNN Brasil Business.

    Na prática, os países abririam mão do real, peso ou bolívar, e adotariam uma mesma moeda oficial como meio de pagamento para transações comerciais dentro e fora de suas fronteiras.

    Para o economista da Eleven Financial Thomaz Sarquis, não existe sentido em criar uma política monetária única nem para o Mercosul e nem para a América Latina.
    “O grande problema é a falta de autonomia monetária.

    Quando o Banco Central Europeu sobe os juros, por exemplo, a alta vale para toda a moeda euro. No nosso caso, em uma política como esta, o Brasil estaria dependente da situação fiscal da Argentina para definir o aumento dos juros, visto que o risco seria percebido como sendo do bloco.”

    Para ele, a diferença entre as economias é essencial. “Ainda que nossa política fiscal não seja um exemplo para os demais países, temos uma moeda mais estável do que a da Argentina.”

    Para o PhD em economia pela Cornell University Marcelo Kfoury, além da disparidade entre os países da América Latina, o bloco econômico do Mercosul ainda não evoluiu como ocorreu com a União Europeia, que alcançou uma integridade e proximidade econômica entre os participantes do bloco.

    Simão Silber, professor de economia da FEA-USP, na mesma linha, explica que existe uma facilidade maior para a Europa por conta da maior integração de seus participantes e da própria condição geográfica.

    Além disso, ele também cita que, para chegar à moeda única, seria preciso uma política de livre comércio e um imposto comum em todos os países. Para ele, o estabelecimento da moeda comum representa a etapa final de um processo de integração econômica ainda inicial na região, com volume de comércio interno bem menor que o da zona do euro.

    Silber diz também que não acredita na possibilidade de uma moeda única proporcionar a independência em relação ao dólar. “A América Latina ainda está em desenvolvimento, tem renda média, é difícil tomar uma posição que hoje é ocupada pelo dólar”.

    Procuradas pela CNN, tanto a comunicação de Lula como de Paulo Guedes disseram que não iriam comentar o tema.

    Como funcionaria

    O principal exemplo ao pensar em moeda única é o euro, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 1999 e hoje serve como moeda oficial dos 19 países da zona do euro, todos eles membros da União Europeia, caso da Alemanha, França, Portugal e Espanha. Mas nem todos os membros do bloco aderiram ao euro e abriram mão de suas moedas e políticas monetárias.

    Antes de sair da UE, o Reino Unido já havia optado por manter o uso da libra, caso semelhante ao da Dinamarca. Outros países membros, como a Bulgária e a Croácia, não atingiram ainda as condições econômicas demandadas para integrar a zona do euro e, por isso, não podem adotar a moeda.

    A emissão do euro é controlada por um banco central comum a todos os integrantes da zona, o Banco Central Europeu (BCE). Por causo disso, ele também é responsável pela política monetária de todos esses países.

    Segundo o BCE, a principal vantagem do euro é tornar mais simples “trabalhar, negociar, viajar, estudar e viver no estrangeiro”, aumentando a integração econômica entre os países.

    A autarquia afirma que uma moeda única “facilita as trocas comerciais entre empresas de países diferentes, melhora o desempenho econômico e possibilita uma maior escolha e mais oportunidades aos consumidores”.

    A adoção de uma moeda única, porém, exige que seus países membros cumpram “objetivos comuns” de estabilidade, crescimento e emprego de modo que os impactos da política monetária geral não sejam muito diferentes para cada membro.

    A responsabilidade por atingir esses objetivos é do governo de cada país, mas o não cumprimento pode levar a sanções.

    E a criação do euro também não foi um processo simples. As discussões sobre criar uma moeda única para aumentar a integração entre os países europeus começaram no fim da década de 1960, antes mesmo da União Europeia existir.

    Mas a proposta oficial de criação de uma “União Econômica e Monetária”, com uma moeda comum, viria apenas em 1988. Foi acordado, então, o estabelecimento da união em três fases, criando um arcabouço jurídico e monetário para a implementação.

    Apenas na última, iniciada em 1999, que o euro foi introduzido e foram fixadas taxas de câmbio para as moedas de cada país em relação à nova. Por três anos, o euro serviu apenas para pagamentos eletrônicos e balanços contábeis, até que, em 2002, passou a circular oficialmente e ser usado pela população desses países.

    Mesmo sendo a mais famosa, o euro não é a única moeda comum em circulação pelo mundo. Há ainda os casos do dólar do Caribe Oriental, adotado por oito países, o franco CFA da África Ocidental, de oito países, e o franco CFA da África Central, de seis, todos com origens ligadas à substituição de moedas usadas durante a colonização por países europeus.

    Segundo Silber, para implementar uma política de moeda única na América Latina, os países precisariam abdicar de seus respectivos bancos centrais.
    “Ficaria criado um banco central sul-americano que emitiria a moeda. Então, todos os países perdem soberania, a capacidade de emitir moeda, e perdem também a capacidade de influenciar na taxa de câmbio, já que é esse banco central que influencia”.

    Entenda a discussão

    O pré-candidato do PT à Presidência defendeu no final de abril a implementação de uma “moeda única” na América Latina, que segundo ele ajudaria a ampliar a relação entre os países da região.

    Em 2008, o político já havia falado sobre o tema, mas pensando apenas no continente sul-americano. “Nós trabalhamos aqui na América do Sul com a possibilidade que as novas gerações, já não acredito mais para meu governo, possam criar uma moeda única, possam criar um banco central”, afirmou à época.

    Desta vez, ele associou a criação da moeda a uma redução da dependência do dólar. “Vamos voltar a restabelecer nossa relação com a América Latina. E, se Deus quiser, vamos criar uma moeda na América Latina, porque não tem esse negócio de ficar dependendo do dólar”.

    Em artigo recente publicado no jornal “Folha de S.Paulo”, o economista Gabriel Galípolo, ex-presidente do banco Fator e colaborador de Lula na área econômica, e o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad – pré-candidato do PT ao governo paulista – defenderam a moeda única, em um modelo semelhante ao euro, como uma forma de aumentar a integração regional, fortalecer a independência monetária da região e superar “limitações econômicas decorrentes da fragilidade internacional de suas moedas”.
    Para eles, a medida aumentaria o comércio na região, aceleraria a integração regional, traria relevância a nível global e daria maior “liberdade ao desejo democrático”.

    A moeda, chamada de SUR, teria uma taxa de câmbio flutuante com as moedas nacionais e seria emitida por um “Banco Central Sul-Americano”, com capitalização dos países membros proporcional à participação no comércio regional a partir de reservas internacionais ou taxas sobre exportações. Ela poderia ser usada “tanto para fluxos comerciais quanto financeiros entre países da região”.

    Em 2016, o presidente Jair Bolsonaro (PL) chegou a fazer uma publicação com as falas de Lula em 2008, afirmando que “o PT, depois do livre trânsito de cidadãos na América do Sul, também planejou moeda única e banco central bolivariano”.

    No começo de maio, Bolsonaro publicou em suas redes sociais um vídeo em que coloca as falas do pré-candidato do PT e, na parte de baixo, sua publicação de 2016. Além disso, também compartilhou uma matéria sobre o ministro da Economia, Paulo Guedes, durante uma visita à Argentina.

    Na ocasião, em 2019, Bolsonaro disse que Guedes teria dado “um primeiro passo para um sonho de uma moeda única na região do Mercosul”, que se chamaria peso real. Bolsonaro citou como exemplo o euro. Na mesma visita, Guedes afirmou que a ideia era defendida pelos argentinos, que estariam “animadíssimos”. “Nós estamos pensando, conversando e conjecturando”.

    O tema, porém, não avançou, e o ministro voltaria a falar sobre o assunto apenas em agosto de 2021.

    Na ocasião, disse que uma moeda única para o Mercosul possibilitaria uma integração maior e uma área de livre comércio, e criaria uma divisa que poderia ser uma das “cinco ou seis moedas relevantes no mundo”.

    E não foi a primeira vez que Guedes falou sobre o tema. Também em 2008, em artigo para a Revista Época, ele disse que “seriam várias as vantagens de criar a moeda regional”.

    Entre essas vantagens, ele cita “aumentar a massa crítica do continente nas questões financeiras e comerciais ante os grandes blocos regionais do dólar, do euro e da Ásia”, e a “possibilidade de tornar tangíveis as promessas de maior integração regional (Mercosul)”.

    No entanto, até o momento, nenhum dos pré-candidatos trouxe detalhes sobre um possível projeto ou estudos que tratem da viabilidade ou vantagens da proposta para o Brasil e para o bloco econômico do Mercosul ou para a própria América Latina.

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