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    Maurício Noriega
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    Maurício Noriega

    Mauricio Noriega é um dos jornalistas esportivos mais reconhecidos do país. Ganhou o prêmio ACEESP de melhor comentarista esportivo de TV seis vezes.

    30 anos da morte de Senna: um silêncio ensurdecedor

    Lembranças do dia em que o Brasil, letárgico, acreditava que poderia despertar de um pesadelo

    O telefone tocou, interrompendo o sono que eu desejava longo. Reconheci a voz de meu chefe na redação do “Diário Popular”. Gozação era regra naquela turma, então desliguei sem dar muita importância. Segundos depois, novo toque. Atendo, reclamo que era sacanagem me acordar em minha rara folga dominical e desligo. Na terceira vez, o tom grave da voz grave me convenceu a ligar a TV: “O Senna bateu forte em Ímola. Preciso que você vá até à sede da Torcida Ayrton Senna. O carro do jornal vai passar na sua casa.”, finalizou.

    As imagens da TV e a voz preocupada de Galvão Bueno reforçavam a gravidade da situação. Anotei algumas coisas, joguei um guia da Fórmula 1 na mochila e rumei para uma casa espaçosa no alto da Vila Maria, bairro da Zona Norte de São Paulo. Ali tinha sido o escritório de Ayrton Senna no início da carreira. O piloto cedeu o local para um grupo de fãs que formou a Torcida Ayrton Senna (TAS).

    Quando chegamos, havia algumas pessoas em frente à casa. Buscamos por Adilson Carvalho de Almeida, presidente da TAS. Dezenas de integrantes da torcida estavam reunidos na sede, acompanhando os boletins de repórteres de TV. Vários objetos que o piloto havia doado para a TAS estavam espalhados pelas salas. Capacetes, macacões, troféus e fotografias.

    Está impresso em minha memória o momento em que a morte de Senna foi anunciada naquele ambiente devotado ao ídolo. Algumas pessoas desmaiaram; um torcedor começou a bater violentamente a cabeça contra a parede. Gritos se misturavam ao choro compulsivo. Fui até Adílson, o presidente da TAS, que conteve as lágrimas e balbuciou algumas frases sobre Senna.

    Ao sair da casa, eu e o repórter fotográfico nos deparamos com uma rua tomada por centenas de pessoas, dezenas de carros de reportagem, algumas viaturas policiais e um silêncio que doía na alma. Parecia um pesadelo coletivo. A cena aos poucos foi sendo modificada. Vendedores ambulantes chegaram, oferecendo comida, bebida e, pasmem, macacões, bonés e pôsteres de Senna!

    Em determinado momento, encostamos na cerca baixa de uma casa com um belo jardim. Uma senhora se aproximou e, em vez da bronca que esperávamos, nos convidou a entrar: “querem tomar um cafezinho e comer um bolinho?”. Aceitamos prontamente. A imagem daquele torcedor batendo a cabeça da parede não saía da minha. Quando serviu o café e o bolo, deliciosos, aquela simpática senhora também trouxe álbuns de fotografia. Vários. Todos cuidadosamente preservados, com películas de plástico protegendo as imagens. Saltavam das fotos momentos raros do tricampeão mundial de Fórmula 1, naquele período o maior ídolo do Brasil. Senna empurrando um triciclo com uma das netinhas da simpática vovó, carregando outra no colo, sentado à porta de seu escritório com as crianças. Fizemos fotos das fotos e voltamos à redação.

    No trajeto, testemunhamos a maior cidade do país em silêncio sepulcral. A terra de Senna chorava, calada. Um raro ruído daquele 1º de maio foi o grito em uníssono das torcidas de São Paulo e Palmeiras, num clássico no Morumbi: “Olê, olê, olê olá, Senna, Senna!”.

    A incredulidade marcou meus dias, desde aquele telefonema pela manhã até o sepultamento de Senna. Confesso que nunca fui um grande fã do piloto. Cobri várias provas de Fórmula 1, mas em minha memória afetiva de criança ecoava a narração em rádio do primeiro título mundial de Emerson Fittipaldi, feita pelo pai dele, o Barão Wilson Fittipaldi, registrada em discos compactos de vinil. Também simpatizava mais com o estilo ranzinza de Nelson Piquet.

    Coincidentemente, eu tinha trabalhado no GP do Brasil de Fórmula 1 de 1994, quando Senna largou na pole position e liderou por 21 voltas, mas a Willians que pilotava rodou ao tentar uma ultrapassagem sobre o alemão Michael Schumacher. Fim de sonho da terceira vitória em Interlagos.

    Dias depois fui a um espetáculo do inesquecível Jô Soares. Em determinado momento, interagindo com a plateia, Jô brincou com um casal e disse que o rapaz era a cara de Ayrton Senna. Na verdade, era Senna, acompanhado da namorada Adriane Galisteu. O piloto se levantou e foi aplaudido de pé pelo teatro lotado. Neste mesmo período, ele havia lançado o personagem Senninha, para histórias em quadrinhos, e eu fui escalado para a reportagem.

    Por morar próximo à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, me ofereci para o turno da madrugada na cobertura do velório de Senna. Tive a chance de entrevistar Alain Prost, que chegou de surpresa no meio da noite.

    Foram dias de uma dor indescritível no Brasil. Os mais antigos comparavam à morte de Getúlio Vargas, e eu recordava a de Tancredo Neves. A tristeza nas ruas era palpável. Escolas cancelaram aulas. A chegada do voo trazendo o corpo de Senna foi comovente. Recordei imediatamente do dia em que ele retornou ao Brasil após a conquista de seu terceiro título mundial, em 1991. Estava ao lado do pai de Senna, seu Milton, na pista do aeroporto de Congonhas. Senna veio do Japão pilotando o próprio avião, sendo escoltado por caças da Força Aérea Brasileira na chegada a Congonhas. Percorreu a cidade saudado como a seleção brasileira após vitórias em Copas.

    Em 5 de maio, após um cortejo com honras de Chefe de Estado e o silêncio onipresente, o corpo de Ayrton Senna da Silva foi sepultado no jazigo 11 do setor sete, quadra 15, do Cemitério do Morumbi.

    A Torcida Ayrton Senna encerrou as atividades em 2014, 20 anos após a morte do piloto. A última vez em que li algo sobre ela foi em uma notícia sobre a tentativa de venda do acervo para pagar dívidas, além de um conflito com a família do piloto sobre a posse dos objetos.

    Até hoje, 30 anos depois, mesmo sem ser um grande entusiasta da Fórmula 1 ou fã incondicional de Ayrton Senna, não me esqueço do contraste entre os gritos eufóricos dos brasileiros em suas vitórias nas manhãs de domingo e o silêncio ensurdecedor daquele 1º de maio de 1994.