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    CNN No Plural+: Quebrando as portas do armário

    “É um exílio em sua própria sociedade, um exílio em sua própria vida”, conta editor da primeira publicação LGBTQIA+ de caráter nacional e que ganhou as ruas durante a ditadura

    Rafael Câmarada CNN , São Paulo

    Eu nem era nascido quando, em 31 de março de 1964, militares depuseram o então presidente João Goulart e instauraram o regime militar no Brasil.

    Eu nem precisava ter nascido na época para, até hoje, sentir os reflexos desse período que nos considerava “perversos” e “anormais”.

    58 anos depois do golpe, me pergunto – como a sociedade ainda vê a comunidade LGBTQIA +?

    Assim que os militares assumiram o poder, o Brasil mergulhou em mais de 20 anos de censura e repressão a qualquer tipo de manifestação contrária ao regime. Homossexuais, prostitutas, travestis, ou qualquer um que não se encaixasse nos “padrões” da família tradicional brasileira, ou que fosse contra a moral e os bons costumes, passou a ser perseguido.

    Renan Quinalha no lançamento de seu livro “Contra a moral e os bons costumes: A ditadura e a repressão à comunidade LGBT” em 2021 / Acervo pessoal

    “A gente não tinha um movimento organizado no estilo de movimento que a gente entende hoje, que faz publicações, que circula no território nacional, que faz atos públicos de protestos e que tem uma plataforma de reivindicações em relação ao Estado” explica o professor de direito da UNIFESP e advogado Renan Quinalha. Renan, além de ativista na área de direitos humanos, foi consultor da Comissão Nacional da Verdade, que apurou violações de direitos humanos durante a ditadura.

    Nós, enquanto movimento LGBTQIA+, não éramos organizados, mas precisávamos ser para resistir. Foi assim que, no final da década de 1970, com o abrandamento da censura, alguns grupos começaram a se mobilizar para enfrentar a opressão. A imprensa alternativa ganha força e nascia um dos primeiros jornais que iria discutir homofobia, racismo e outros temas considerados tabu: o Lampião da Esquina.

    João Silvério Trevisan, jornalista, escritor e hoje com 77 anos, foi um dos fundadores do periódico:

    “Eu escrevia muito no jornal Lampião abordando desde filmes e peças de teatro a situações de censura e situações da própria comunidade”, me conta João. “A minha participação [no Lampião da Esquina] não foi uma brincadeirinha, era uma maneira de entrar em contato com a comunidade LGBT, que, em resumo, era o objeto inclusive do meu desejo, do meu desejo com todos os direitos que nós estávamos começando a reivindicar a partir dele, ou seja, o meu direito de amar.”

    João Silvério Trevisan, jornalista, escritor e um dos fundadores do Lampião da Esquina

    O editorial da edição de abertura, de abril 1978, não deixava dúvida do que esperar do jornal. Para mim, ao lê-lo, já foi um soco no estômago:

    O que nos interessa é destruir a imagem padrão que se faz do homossexual, segundo qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara a sua preferência sexual (sic) como uma espécie de maldição. O que nós queremos é resgatar essa condição que todas as sociedades construídas em bases machistas lhes negaram: o fato de que os homossexuais são seres humanos e que, portanto, têm todo o direito de lutar por sua plena realização

    Editorial de abertura da edição 0 do Lampião da Esquina, de abril de 1978

    O primeiro jornal gay, com divulgação nacional, como era conhecido o Lampião da Esquina, marcava a sua presença com capas polêmicas como: “A matança dos homossexuais” e “O carnaval das bichas é o maior do mundo”. Entrevistas e denúncias elencavam suas páginas, como a chamada “operação Limpeza” da polícia que perseguia travestis no centro de São Paulo. Além disso, com um corpo editorial culto e conceituado entre as rodas intelectuais da época, o Lampião era capaz de costurar os assuntos cotidianos da comunidade com os grandes factuais do período.

    O Lampião também tinha muito disso, de uma comunidade, de uma sociabilidade, mas ele também trazia discussões políticas internacionais, como o que aconteceu nos Estados Unidos, na Argentina, de perseguição a homossexuais na ditadura. 

    Renan Quinalha, professor de direito da Unifesp e advogado

    E é exatamente o que lembra Trevisan quando narra suas principais coberturas na época em que escrevia para o Lampião:

    João Silvério Trevisan, aos 30 anos, na Cidade do México, em 1974 / Acervo pessoal

    “[Uma matéria] que eu me lembro com muito impacto e muito gratificado foi uma matéria sobre a perseguição de homossexuais em Cuba. Era um enfrentamento muito sério, porque a própria esquerda evitava tocar no assunto”, me conta o jornalista. “E nós fizemos uma longa pesquisa a partir da equipe em São Paulo durante quase um ano para conseguir uma entrevista com, por exemplo, Reinado Arenas, um grande escritor homossexual cubano que tinha fugido de Cuba, que estava vivendo em Nova York, e para conseguir as informações todas que nós conseguimos e fizemos uma matéria muito séria jornalisticamente e de um ponto de vista político de muita importância”.

    Mesmo com tanta gente talentosa e respeitada à frente do jornal como Aguinaldo Silva, Darcy Ribeiro, o próprio João Silvério Trevisan e com entrevistas com personalidades como Ney Matogrosso, muitos jornaleiros e bancas se recusavam a vender o periódico.

    Além disso, o ato da compra do jornal, por si só, já era um desafio tanto para a equipe do Lampião quanto para os leitores. “Nós tínhamos que ir para as bancas para verificar se os jornais estavam sendo distribuídos a contento. A primeira distribuidora às vésperas de iniciar o jornal desistiu quando percebeu do que se tratavam”, narra João Silvério Trevisan.

    Era o jornal dos viados, então o jornal ficava escondido na banca. Aí você tinha que ir lá e cochichar ‘você tem um Lampião?’ e aí o jornaliero pensava ‘hm, é um viado. Olha, tem um aqui para você, viado’. Então era uma via sacra

    João Silvério Trevisan, jornalista, escritor e um dos fundadores do Lampião da Esquina
    Renan Quinalha na Parada do Orgulho LGBTQIA+ em São Paulo / Acervo pessoal

    Esse fato nunca foi comprovado, mas muitas bancas que vendiam o Lampião da Esquina sofreram atentados a bomba. E os editores do jornal, por sua vez, chegaram a sofrer inquérito policial por estarem violando a lei de imprensa de 1967. Eles eram acusados de violar a moral e os bons costumes.

    E ainda bem que violaram, porque só assim, hoje, podemos ter espaços como esta coluna CNN No Plural+, para discutir assuntos relevantes à comunidade LGBTQIA+ e para a toda a sociedade. “O que a ditadura fez foi abrir os braços para a postura conservadora que a sociedade brasileira tinha no período. Ela deu espaço para esse conservadorismo, ela reforçou esse conservadorismo…”, diz João Silvério Trevisan.

    Nós ensinamos a sociedade a nos aceitar. Todo esse período que nós vivemos, a comunidade LGBTQIA+ evoluiu dentro da sociedade e a sociedade evoluiu com ela. Mas o mais importante que aconteceu foi que essa comunidade LGBT teve uma evolução política extraordinária. Sofreu de fato uma evolução política extraordinária em relação à luta pelos seus direitos.

    João Silvério Trevisan, jornalista, escritor e um dos fundadores do Lampião da Esquina

    É indiscutível que nós evoluímos, mas não podemos esquecer que o Brasil ainda hoje, 58 anos depois do golpe, é o país que mais mata e deixa matar homossexuais.

    Passamos pela ditadura, garantimos leis formais, mas não conseguimos nos livrar do preconceito e do medo de vivermos sendo quem nós somos.

    *Produção: Letícia Brito, da CNN, em São Paulo

    João Silvério Trevisan na Parada LGBTQIA+ em São Paulo / Acervo pessoal

     

    Veja algumas capas do Lampião da Esquina:

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