Como tratado de 1936 pode forçar a Turquia a tomar partido na guerra da Ucrânia
Convenção de Montreaux dá à Turquia certo controle sobre a passagem de navios de guerra dos estreitos de Dardanelos e Bósforo, que conectam os mares Egeu, de Mármara e Negro
A Turquia rotulou oficialmente a invasão da Ucrânia pela Rússia como uma guerra, em um movimento que, segundo especialistas, poderia prejudicar algumas das atividades militares do governo russo na região.
Na quinta-feira (24), as forças russas lançaram um ataque terrestre, marítimo e aéreo à Ucrânia – o maior ataque de um estado contra outro na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
O embaixador da Ucrânia na Turquia, Vasyl Bodnar, deu uma declaração à televisão local na semana passada e apelou ao governo em Ancara para fechar seus principais estreitos para navios de guerra russos devido às disposições da Convenção de Montreux de 1936. A Turquia disse que só poderia fazê-lo se reconhecesse oficialmente o conflito como uma guerra e, no domingo (27), foi o que o país fez.
Veja como isso aconteceu e o que isso significa para a guerra.
O que é a Convenção de Montreux?
A convenção dá à Turquia certo controle sobre a passagem de navios de guerra dos estreitos de Dardanelos e Bósforo, que conectam os mares Egeu, de Mármara e Negro.
Em tempos de paz, os navios de guerra podem passar pelo estreito mediante notificação diplomática prévia com certas limitações no peso dos navios e armas que carregam e também dependendo de o navio pertencer a uma nação do Mar Negro ou não. E em tempos de guerra, a Turquia pode impedir a passagem dos navios de guerra das partes beligerantes.
De acordo com a convenção, se a Turquia é parte na guerra ou se considera ameaçada de perigo iminente, pode fechar o estreito para a passagem de navios de guerra.
Como isso afeta a Rússia?
Tanto a Rússia quanto a Ucrânia ficam no Mar Negro, junto com a Romênia e os membros da OTAN Bulgária e Geórgia. A Turquia pode limitar o trânsito de navios de guerra russos do Mediterrâneo ao Mar Negro através de seus estreitos sob a Convenção de Montreux, mas o pacto tem uma ressalva: os navios de guerra dos estados beligerantes podem atravessar se estiverem retornando à sua base de origem.
“Se o navio do país em guerra retornar ao seu porto, uma exceção é feita. Implementaremos todas as disposições de Montreux com transparência”, afirmou o ministro das Relações Exteriores da Turquia, Mevlut Cavusoglu, acrescentando que a exceção não deve ser abusada.
A medida seria apenas simbólica, disse Mustafa Aydin, presidente do Conselho de Relações Internacionais da Turquia.
“A Rússia tem poder de fogo suficiente no Mar Negro para não fazer sentido para os países da OTAN entrar na região”, comentou. “A Rússia tem total supremacia na água”.
Mas, se a guerra se arrastar, o lado russo pode ser prejudicado, já que a Rússia já havia completado seu desenvolvimento naval no Mar Negro, deslocando unidades do Mar Báltico antes do início das hostilidades, de acordo com Serhat Guvenc, professor de relações internacionais da Universidade Kadir Has.
No início de fevereiro, seis navios de guerra russos e um submarino transitaram pelos estreitos de Dardanelos e Bósforo até o Mar Negro para o que o governo russo chamou de exercícios navais perto das águas ucranianas.
“A Rússia provavelmente tem recursos suficientes para sustentar seu poder naval no Mar Negro por cerca de dois a três meses”, calculou. “Mas, se o conflito se arrastar, será uma história diferente”.
Por que a Turquia declarou o conflito uma guerra?
Guvenc disse que não esperava que a Turquia tomasse uma decisão tão cedo, mas o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky “colocou Ancara [onde fica a sede do governo] em destaque” ao agradecer prematuramente à Turquia no Twitter por seu apoio.
A Turquia disse que respeitou historicamente o tratado e continuará a fazê-lo.
Guvenc disse que é do interesse do governo turco fazê-lo porque o tratado apoia a Turquia em tempos de guerra. Qualquer exceção feita para agradar a Rússia poderia comprometer a credibilidade do tratado no longo prazo.
“Os Estados Unidos estão muito interessados na ideia de liberdade de navegação irrestrita pelos estreitos turcos, como é o caso de outras hidrovias como os canais de Suez e Panamá”, afirmou. Um desvio da convenção daria aos EUA “uma razão legítima para questionar o status da Turquia como o protetor da Convenção de Montreux”.
Como isso poderia afetar as relações externas da Turquia?
A Turquia tem uma fronteira marítima com a Ucrânia e a Rússia no Mar Negro e vê os dois países como amigos. O governo turco depende da Rússia para turismo e gás natural, mas também tem estreitos laços econômicos e de defesa com a Ucrânia e, apesar das objeções russas, vendeu drones para o país.
Na segunda-feira (28), o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, disse que a Turquia não abandonará seus laços com a Rússia ou a Ucrânia, mas que o governo em Ancara “decidiu usar a autoridade dada ao nosso país pela Convenção de Montreux sobre o tráfego de navios no estreito de forma a impedir que a crise aumente”.
Erdogan disse que a Turquia respeita a integridade territorial e a soberania política da Ucrânia e que considerou “o ataque da Rússia à Ucrânia inaceitável”.
A União Soviética, antecessora do estado russo, foi um dos signatários originais da Convenção de Montreux.
“A Rússia conhece as complexidades da política e da lei e estaria preparada para tal eventualidade”, disse Guvenc. Moscou, no entanto, pode não ter esperado que Ancara agisse no tratado tão cedo, acrescentou.
“A Turquia pode vender essa medida como mero cumprimento de uma obrigação sob o direito internacional”, disse ele, mas a medida pode ser uma indicação de onde a Turquia pode se apoiar se o conflito se prolongar. “A Turquia decidiu se alinhar mais com seus aliados tradicionais na OTAN e na União Europeia, e um pouco longe da Rússia”.