Alta-costura de Paris volta aos desfiles presenciais em grande estilo
Princesa a cavalo na passarela da Chanel, bordados extravagantes para a Dior, o surrealismo solar de Schiaparelli: após dois anos de desfiles virtuais, grandes maisons têm retorno triunfal às passarelas
A alta-costura é feita para dar asas à criação dos costureiros, que se despem de qualquer tendência efêmera de moda para realizar os desejos mais inusitados de suas clientes. As consumidoras de alta-costura, espécie rara hoje em dia (elas somam um pouco mais de 200 no mundo inteiro), esperam com ansiedade as duas temporadas de coleções, que acontecem em Paris nos meses de janeiro e e julho.
Mas nem tudo é festa: a rigidez de um ateliê, com regras e técnicas de costura centenárias, perpetuadas pelas premières d’atelier (chefes de estúdio) e pelas petites mains (jovens aprendizes), durante meses a fio, é visível e palpável durante um desfile.
Mas para fazer parte do seleto calendário oficial da Federação de Alta Costura e da Moda francesa, a grife tem que respeitar diversas condições: cada peça deve ser feita à mão em ateliês de, no mínimo, vinte pessoas. Além disso, a marca tem que se comprometer a mostrar duas coleções por ano, com, pelo menos, 25 silhuetas cada, respeitando as normas de dois ateliês, o flou (peças fluidas) e tailleur (calças a blazers).
Não é pouca coisa, mas o espetáculo vale a pena. Cenário, música, casting de modelos, além das próprias silhuetas, tudo junto colabora para que a seleta plateia de jornalistas, buyers e clientes VIP não economize nas palmas e lágrimas.
E assim não foi diferente com a temporada de Primavera/Verão 2022, que começou na segunda e terminou ontem na capital francesa. No total, 16 maisons desfilaram suas coleções, além de 12 que optaram por apresentações digitais.
A França, que impôs regras de controle de passaporte vacinal restritas para o publico presente, vai, pouco a pouco, voltando à normalidade das semanas de moda. Depois de dois anos difíceis, com cancelamento de desfiles e a adoção de apresentações digitais, a roda da moda volta a girar, para a alegria dos fashionistas e do mercado, que comemora o retorno das semanas de moda presenciais.
Chanel
O desfile mais esperado de todas as fashion weeks, seja na couture ou no prêt-à-porter, a Chanel nos trouxe um cenário em preto, branco e bege (cores símbolo da maison) imaginado pelo artista francês Xavier Veillan, amigo pessoal de Virginie Viard. Uma mistura de percurso equestre com jardim e minigolfe, além de uma passarela com areia e um palco para o cantor Sébastien Tellier, o desfile ainda abriu com a princesa Charlotte Casiraghi montando em um cavalo (e é claro, vestida com um tailleur Chanel preto).
As silhuetas, compostas de tailleurs curtos e longos evasés abaixo da cintura, trouxe ainda saias com aberturas que revelavam rendas e minissaias, vestidos longos com plumas, lantejoulas e macramés.
Para fechar com chave de ouro, uma singela homenagem ao ator Gaspar Ulliel, morto em um acidente de esqui nesse mês em Grenoble: a noiva carregava um buquê azul, cor do perfume Bleu de Chanel, para quem o ator era o rosto.
Dior
Como habitual, a Dior apresenta suas coleções no Musée Rodin. Numa vibe indiana, a grife contou com a colaboração do casal de artistas Madhvi et Manu Parekh, que exploraram suas obras em tamanho XXL nas paredes da “caixa branca” onde acontecem os desfiles da maison.
Coube à comunidades indianas de bordadeiras celebrarem o trabalho dos artistas bordando em cima de suas obras, repletas de rostos e formas em cores vibrantes, transformando a sala em uma galeria de tapeçaria gigante. Os looks, que também prestaram homenagem ao trabalho das costureiras de seus ateliês (localizados na célebre Avenue Montaigne, em Paris), vieram com longos fluidos e mais colados ao corpo, recheados de canutilhos, lantejoulas, rendas e mini contas.
“Me concentrei na linguagem do bordado, que muitas vezes tem uma dimensão ornamental superficial. Queria que ele se tornasse a matéria-prima, que envolvesse o corpo”, disse Maria Grazia Chiuri no press release do desfile. Foi o caso de um vestido com tramas, tule cinza e tranças costuradas com contas e pérolas, que somaram mais de 1.200 horas de trabalho.
Schiaparelli
O americano Daniel Roseberry não para de impressionar o público de moda com suas coleções extravagantes e cheias de alusões surrealistas, herança da fundadora Elsa Schiaparelli (1890-1973). Dessa vez o local escolhido foi o Petit Palais, um dos epicentros de moda e arte parisienses.
Toda feita em preto, dourado e branco, a coleção trouxe um grande número de modelos negras, que realçavam as peças fortes da linha. Chapéus com tules que iam até o decote de vestidos tubinho, bijoux que saíam dos vestidos de gala e flutuavam no espaço, tiras de metal que iam quase até o chão, a representação do sol e dos planetas em vestidos e em bolsas, o universo “Schiap” em uma deliciosa loucura.
Valentino
A maison italiana é pura magia, e tem o poder de fazer chorar em cada temporada da couture. Dessa vez, não foi diferente. A maestria de Pierpaolo Piccioli ao criar a sintonia entre o look, a escolha da modelo, além da trilha sonora, é garantida a cada coleção apresentada na Place Vendöme, sede parisiense da marca.
Vestidos amplos e mais justos, às vezes feitos com tiras em forma de amarração, tranças de lã, crepes e sedas nos tons mais inusitados possíveis (verde, roxo, laranja, rosa e vermelho), arrancaram suspiros da reduzida plateia de 50 pessoas.
Mas o casting inclusivo de Piccioli foi o que chamou a atenção, desde modelos veteranas como Violetta Sanchez (musa de Yves Saint Laurent na década de 1980) e Kristen McMenamy, meninos desfilando looks couture, até a manequim holandesa Jill Kortleve, com formas e curvas de um tamanho 40, longe do estereotipo XXS exigido pelas passarelas.
“Eu queria explorar a história do corpo através dos tempos. Pensei na Vênus de Milo, no Nascimento de Vênus de Botticelli, mas também nas fotos de Man Ray ou nas curvas femininas de Picasso. Costumamos trabalhar com nosso manequim interno e todos os stockmans (bustos sobre os quais os protótipos são feitos) são feitos sob medida. Foi um exercício diferente para os ateliês se apropriarem dessas novas medidas”, explica o designer romano no press release divulgado na ocasião, querendo “celebrar o poder do corpo”.
Viktor & Rolf
A maison holandesa, membro correspondente da semana de couture (assim são chamadas as marcas estrangeiras que participam do calendário oficial) trouxe uma coleção inspirada no clássico filme noir “Nosferatu” . Em pleno Palais Chaillot, sublime teatro parisiense, as modelos mostraram looks fantasmagóricos com ombros estruturados que ultrapassavam a altura dos ombros.
Uma mistura de Família Addams com Drácula, os costumes, vestidos estilo boneca, golas Claudine, tudo ia de encontro à maquiagem hollywoodiana e vampiresca das modelos, com perucas grisalhas. A dupla Viktor & Rolf, como sempre, saindo do ordinário e criando burburinho, aproveitou para revelar com exclusividade a parceria com a brasileiríssima Melissa: tamancos pretos em salto plataforma ornados com uma fivela XXL. Um luxo!
Jean Paul-Gaultier por Glenn Martens
Desde que se retirou da alta-costura em 2020, o designer tomou gosto em convidar outros estilistas para criarem looks couture para sua marca. Dessa vez, Glenn Martens, à frente da Y/Project e da Diesel, incorporou seus códigos à marca do enfant terrible da moda.
Na passarela, o espirito rock de Glenn foi visto na marinière, marca registrada de Gaultier, aqui desfiada em um vestido nude, ou nos retalhos de tecido que se transformavam em caudas imensas. O corselete, outro símbolo da maison, apareceu em vários looks, às vezes ultracolados ao corpo, como uma volta à séculos longínquos.
Tecidos tingidos quase psicodélicos, retalhos, tiras, dobraduras, veludos, golas altas, um quê de romantismo fúnebre também deu as caras na passarela, mostrando que uma pitada de rebeldia também pode ser couture.