Por que ataque a Abu Dhabi pode ser um perigoso ponto de virada no Oriente Médio
A estabilidade, um dos principais ativos de venda dos Emirados Árabes, pode estar ameaçada caso promessas de mais ataques sejam cumpridas por rebeldes do Iêmen
Um ataque mortal realizado com drones no coração da capital dos Emirados Árabes Unidos (EAU) empurrou o Oriente Médio para águas desconhecidas, em um momento que os líderes da região procuraram curar feridas que estão abertas há anos.
Três pessoas foram mortas quando ataques atingiram caminhões de combustível perto do aeroporto de Abu Dhabi na segunda-feira (17), causando múltiplas explosões. Os rebeldes Houthi do Iêmen, apoiados pelo Irã, rapidamente reivindicaram os ataques.
Os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita responderam, acertando a capital iemenita de Sana’a com ataques aéreos, matando pelo menos 12 pessoas no que foi o bombardeio mais mortífero na cidade desde 2019.
Além da escalada da violência em uma região que procurou virar a página de uma década de “guerras por procuração”, a troca de tiros também poderia turvar uma série de conversas de alto nível entre inimigos regionais e internacionais.
As negociações entre o Irã e as potências ocidentais sobre como reavivar o acordo de 2015 para limitar o programa nuclear de Teerã têm mostrado recentemente sinais de progresso. E há também indícios de que discussões históricas, mas difíceis, entre a Arábia Saudita e o rival regional Irã estavam começando a dar frutos.
Mas os ataques sem precedentes dos Houthi em Abu Dhabi poderiam jogar um balde de água fria nessas conversas. E, se os rebeldes cumprirem sua promessa de lançar mais ataques, isso poderia prejudicar a imagem dos Emirados Árabes Unidos como um lugar seguro para se viver, trabalhar e fazer negócios em uma região conturbada.
Eis o que você precisa saber sobre a crise.
Por que o ataque dos Houthi foi tão significativo?
Além de ter sido o primeiro ataque mortal nos Emirados Árabes em muitos anos, as explosões geradas pelos drones demonstraram a capacidade dos Houthis de lançar investidas de longo alcance.
Os rebeldes do Iêmen frequentemente realizam ataques transfronteiriços contra a Arábia Saudita, vizinha do Iêmen, mas estas foram distâncias relativamente curtas em comparação com Abu Dhabi, e a grande maioria dos mísseis e drones foram interceptados antes de atingirem seus alvos.
Os preços do petróleo dispararam após os ataques, o que provocou uma onda de condenação internacional por parte dos Estados Unidos e de outros líderes mundiais.
O Ministro das Relações Exteriores dos Emirados Árabes, Sheikh Abdullah bin Zayed, pediu aos EUA que reclassificassem os Houthis como uma organização terrorista estrangeira – um rótulo que foi instituído nos últimos dias do governo Trump antes de ser dispensado pelo presidente Joe Biden.
Os Houthis afirmaram anteriormente ter realizado investidas contra os Emirados Árabes Unidos, com os quais não dividem fronteira. Mas as autoridades emirati nunca reconheceram os supostos ataques, e muitos observadores consideraram que as alegações foram ridicularizadas.
Agora, os Houthis do Iêmen cumpriram uma ameaça que fizeram durante anos contra os EAU, um importante parceiro de coalizão de uma campanha militar de seis anos, liderada pelos sauditas, para esmagar os rebeldes apoiados pelo Irã.
Em 2019, os EAU retiraram a maior parte de suas tropas do Iêmen depois de considerarem a guerra insustentável. A campanha não conseguiu esmagar os rebeldes, mas teve um enorme peso humanitário, com milhares de iemenitas mortos, além de desnutrição e doenças disseminados.
Mais recentemente, porém, os EAU voltaram à luta, apoiando grupos iemenitas em pontos críticos, como as províncias ricas em petróleo de Shabwa e Marib, e repelindo os combatentes Houthi da cidade estratégica do deserto.
Agora, os analistas dizem que os rebeldes estão ansiosos para provocar outra retirada dos Emirados Árabes.
“A intervenção das forças apoiadas pelos Emirados Árabes Unidos foi uma mudança de jogo. Isto irritou os Houthis”, disse Maged al-Madhaji, diretor executivo e co-fundador do Centro de Estudos Estratégicos de Sana’a.
“Os Houthis estão tentando criar algum tipo de equilíbrio ao atingir a imagem de estabilidade e segurança nos Emirados Árabes Unidos”.
O que está em jogo para os Emirados Árabes Unidos?
A nação rica em petróleo conseguiu, durante décadas, evitar a turbulência política que ocorre em outros lugares da região. A estabilidade é um dos principais pontos de venda dos EAU, e ajuda a atrair milhões de expatriados e bilhões de dólares em investimentos estrangeiros.
Porém, essa imagem poderia ser abalada se o conflito com os Houthis se intensificasse.
Os EAU dependem fortemente dos trabalhadores estrangeiros, que constituem a grande maioria da força de trabalho do país. As autoridades administram intensivamente a reputação do país, e a liberdade de expressão política é praticamente inexistente.
Defensores dessas restrições à expressão argumentam que elas são necessárias para manter a estabilidade contra todas as probabilidades em um Oriente Médio cheio de conflitos.
Mas, durante anos, a musculosa política externa dos EAU – que interveio no Egito, Líbia, Síria e Chifre da África, além do Iêmen – impôs essa mesma estabilidade.
Quando os petroleiros estavam sendo alvo de seu arqui-inimigo regional, o Irã, ao largo da costa dos Emirados Árabes Unidos em 2019, Abu Dhabi rapidamente mudou de rumo.
Desde então, o país estado em uma onda diplomática para curar feridas antigas. Fez uma série de aberturas ao Irã, incluindo o envio de uma delegação de alto nível em outubro de 2019 e, novamente, no final de 2021. Também restabeleceu laços com o presidente pária da Síria, Bashar al-Assad, depois de apoiar grupos armados que procuraram derrubá-lo na guerra daquele país.
A liderança dos Emirados Árabes Unidos tem dito repetidamente que o país procura se tornar uma força de desescalonamento na região.
No entanto, o ataque de segunda-feira ressaltou um ponto que muitos observadores já salientaram: virar a página sobre uma década de guerra sangrenta por procuração não será nem suave, nem instantâneo.
Todos os países da região, não apenas os Emirados Árabes Unidos, terão interesse em uma rápida desaceleração da violência da segunda-feira.
O Irã está envolvido no ataque?
Não se sabe. O que se conhece é que os drones provavelmente foram fornecidos pelo Irã, o principal apoiador dos Houthis em sua guerra contra o governo internacionalmente reconhecido do Iêmen. Mas não está claro se os apoiadores dos Houthis em Teerã ordenaram o ataque, ou se o grupo rebelde de repente se tornou um vilão.
Não seria a primeira vez que grupos alinhados com o Irã pareciam seguir seu próprio caminho. Em novembro de 2021, o chefe da elite Quds do Irã, Esmail Qaani, fez uma visita ao primeiro-ministro iraquiano Mostafa al-Kadhimi logo após um atentado contra a vida de al-Kadhimi pelas milícias apoiadas pelo Irã. Alguns observadores viram a visita como uma tentativa de distanciar o Irã das ações de seus aliados militantes.
Outro motivo para suspeitar que os Houthis agiram por sua própria vontade é que o Irã tem repetidamente dito que deseja reavivar as relações com seus inimigos regionais. O novo presidente linha dura do Irã, Ebrahim Raisi, recebeu pelo menos dois convites para visitar os EAU, de acordo com a mídia estatal iraniana.
Em suas declarações condenando o ataque em Abu Dhabi, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos – de forma não usual – não culparam os apoiadores do grupo rebelde em Teerã. O Irã ainda não comentou publicamente o ataque.
No entanto, como sempre, a liderança do Irã é difícil de ser lida. Uma rede de notícias libanesa, Al Mayadeen, informou que Raisi se encontrou com o chefe da equipe de negociação de Sana’a em Teerã na segunda-feira, dia do ataque. Alguns observadores viram isso como uma admissão de responsabilidade no ataque de Abu Dhabi.
O que isto significa para as negociações nucleares do Irã?
A violência na segunda-feira tem o potencial de descarrilar as negociações nucleares em Viena, assim como as conversações paralelas entre a Arábia Saudita e o Irã, vistas como críticas para o sucesso de uma possível segunda versão do acordo de 2015.
Caso se acredite que o Irã está por trás do ataque de segunda-feira em Abu Dhabi – da mesma forma que foram amplamente acusados de serem responsáveis pelos ataques de 2019 às refinarias de petróleo ARAMCO (o Irã negou as alegações) –, então relações de confiança poderiam entrar em colapso, e seria difícil ver como as negociações poderiam continuar.
Se, por outro lado, o Irã condenar os Houthis, como uma abertura para seus inimigos regionais, então a violência de segunda-feira pode acabar e as negociações podem continuar, possivelmente sem abrandamento.
*Com informações de Sarah El Sirgany, de Abu Dhabi para a CNN