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    Pais são obrigados pelo ECA a vacinar crianças? Decisão divide juristas

    Pais e mães podem ser multados por rejeitar imunizante tidos como mandatórios, mas há dúvidas entre especialistas sobre quem é a autoridade sanitária a dar a palavra final

    Giovanna Galvanida CNN , em São Paulo

    A declaração do presidente Jair Bolsonaro (PL) de que não vacinaria contra a Covid-19 sua filha mais nova, Laura, de 11 anos, mesmo após a aprovação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no último 16 de dezembro, levantou dúvidas sobre qual é o papel dos pais e responsáveis quando o assunto é a imunização de menores de idade.

    O tema vai além da Covid-19. Ele se encontra disposto no artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que determina no 1º parágrafo como “obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.

    No entanto, juristas consultados pela CNN admitem que há um ineditismo na discussão sobre a obrigatoriedade da vacinação devido à falta de definição de qual é a “autoridade sanitária” mencionada pelo ECA.

    Enquanto alguns defendem que o aval da Anvisa basta para que a lei passe a ser aplicada, outros afirmam que precisa ser feita a inclusão da vacina no Plano Nacional de Imunizações (PNI) e no calendário vacinal pelo Ministério da Saúde.

    O PNI determina algumas vacinas como obrigatórias para crianças e adolescentes, como a BGC (contra a tuberculose, aplicada ainda na maternidade), a tríplice viral, a tetravalente, a vacina contra a paralisia infantil, entre outras.

    Caso os pais se recusem a aplicar alguma dessas listadas e dispostas como obrigatórias, eles estão sujeitos a uma multa prevista no artigo 249 do ECA.

    “O que é possível é uma multa de 3 a 20 salários mínimos, porque se considera que os pais ou responsáveis pela guarda da criança estão descumprindo sua função de tutela. Em reincidência, a multa é cobrada em dobro, e, caso os pais insistam, pode até haver uma ação de perda de guarda, mas acredito que seria muito radical, nunca vi isso”, diz Daniel Dourado, advogado e médico sanitarista.

    Segundo Iberê Dias, juiz da Vara da Infância e Juventude de Guarulhos (SP), o artigo do ECA é especialmente voltado aos pais e determina que a vacinação impõe-se além de crenças pessoais dos responsáveis legais pela criança.

    “Quando o ECA diz que a vacinação é obrigatória, ele está dando uma determinação para pais e mães. Não importa se você é vegano ou se acha que vacina não deve ser aplicada em crianças. Pais e mães estão obrigados a vacinarem seus filhos assim que as autoridades sanitárias recomendarem”, afirma.

    A menção ao veganismo retoma o que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em dezembro de 2020, em relação à constitucionalidade da obrigatoriedade da imunização, incluindo a infantil.

    Um dos casos analisados chegou à corte vindo do Tribunal de Justiça de São Paulo: os pais veganos de uma criança de cinco anos alegavam que sua decisão de não vacinar o filho com nenhum dos imunizantes obrigatórios se dava por considerar o procedimento “invasivo”. O TJ-SP determinou a vacinação da criança e os pais recorreram.

    O ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação, entendeu que a obrigatoriedade da imunização é constitucional e “não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.

    O ministro determinou que os casos constitucionais são aqueles nos quais a vacina, já registrada pelo órgão sanitário, “(i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico”.

    Já que foi fixado como caso de repercussão geral, este também é o entendimento para a vacina contra a Covid-19. O que falta definir, no entanto, é se a determinação do ECA já é válida a partir da recomendação da Anvisa ou se será necessário aguardar qual será o posicionamento do Ministério da Saúde sobre o caso.

    Jair Bolsonaro com sua filha mais nova, Laura (11); o presidente disse que ela não será vacinada / Reprodução/Twitter

    Vacinação contra a Covid-19

    No momento, Ministério da Saúde já recomendou a vacinação de crianças contra a Covid-19, mas impôs a necessidade da imunização do público de 5 a 11 anos ser realizada com a autorização dos pais ou responsáveis e com a prescrição médica.

    O documento está em consulta pública até 2 de janeiro e foi alvo de críticas e contestações da sociedade civil e de estados, chegando até o Supremo na relatoria do ministro Ricardo Lewandowski – que deu até 5 de janeiro para o governo explicar a necessidade da prescrição.

    “A recomendação do Ministério da Saúde é pela inclusão das crianças de 5 a 11 anos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (PNO), conforme posicionamento oficial da pasta declarado em consulta pública no dia 23 de dezembro e reforçado pelo ministro da Saúde em manifestações públicas”, diz uma nota da pasta do dia 27 de dezembro.

    “Nunca houve um debate mais profundo porque jamais se cogitou a hipótese da Anvisa determinar algo e o Ministério da Saúde ficar fazendo força para que ocorra o contrário. Por isso que essa questão está sendo debatida com mais profundidade agora”, diz o juiz Iberê Dias.

    Dias defende que o aval da Anvisa já confere a recomendação de autoridade sanitária pedida pelo ECA. “A Anvisa é uma autarquia independente. Para que ela possa exercer essa independência de modo pleno, não pode ficar tecnicamente submetida ao Ministério da Saúde”, afirma.

    Essa também é a análise do advogado criminalista Thiago Anastácio, comentarista da CNN. “Cabe à Anvisa regulamentar as políticas sanitárias nacionais. É importante lembrar que referida normalização está em nosso ordenamento jurídico há muito tempo e jamais foi contestada”, diz.

    Para a advogada Bruna Marques Saraiva, presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB do Paraná, a vacina irá tornar-se obrigatória assim que a inserção no PNI foi realizada, conforme divulgado pelo Ministério da Saúde, mas sem as exigências previstas pela pasta.

    “Considerando que o ‘direito à vida’ é uma garantia constitucional assegurada às crianças e aos adolescentes no artigo 227 da Constituição Federal, os detentores do poder parental possuem o dever de lhes proporcionar o acesso ao imunizante já autorizado pela Anvisa tão logo seja disponibilizado para aplicação”, afirma a advogada.

    Porém, para Daniel Dourado, a inserção no PNI e a determinação de que a vacina contra a Covid-19 é obrigatória ainda deve passar por um caminho mais longo de inserção no calendário vacinal – o que também pode ser feito pelos estados e municípios em seus próprios âmbitos, já que o SUS se organiza de forma tripartite.

    “Veio a lei 13.979/2020, na qual o Congresso aprovou que pode ter vacina obrigatória para a Covid-19 determinado pelas autoridades competentes, e o Supremo fez questão de explicar que vacina obrigatória não é vacina forçada“, explica o sanitarista.

    “A Anvisa é vigilância sanitária, ela faz o registro e reconhece que aquele produto imunobiológico é reconhecido como uma vacina no Brasil. A Anvisa não tem competência legal para dizer que tal vacina é obrigatória. Tem várias vacinas autorizadas pela Anvisa que não são obrigatórias”, afirma.

    “O Ministério não colocou [a vacina contra a Covid-19] no calendário. Pode acontecer dos estados e municípios colocarem e, se acontecer, provavelmente será judicializado”, diz Dourado.

    A possibilidade também é considerada por Iberê Dias, que aponta uma possível análise do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o caso – algo que poderia demorar meses.

    Em meio à indefinição, o papel dos pais na imunização poderia atingir esferas mais graves caso a criança contaminada pela Covid-19 evoluísse para casos mais graves da doença, avaliam Bruna Saraiva e Thiago Anastácio.

    “O crime de lesão corporal não dispõe apenas sobre a integridade física, mas também sobre ‘a saúde de outrem’ e admite as hipóteses de dolo e culpa. O crime de lesão corporal, até mesmo em sua modalidade ‘resultado morte’, pode ser verificado caso a criança adoeça ou mesmo venha à terrível hipótese de óbito”, afirma Anastácio, comentarista da CNN.

    Caso os responsáveis se recusem, injustificadamente, a vacinar as crianças a partir de 5 anos sob seus cuidados, podem ser formalmente advertidos pelas autoridades competentes, submetidos à multa prevista pelo artigo 249 do ECA, responderem a processos judiciais de suspensão e perda do poder familiar e, em sobrevindo óbito da criança por Covid-19 ou por complicações dela decorrentes, por crime de homicídio culposo”, avalia Bruna Saraiva.

    [cnn_galeria active=”false” id_galeria=”637570″ title_galeria=”Confira orientações do Ministério da Saúde diante do diagnóstico positivo de Covid-19″/]

    Volta às aulas

    A questão pode tomar proporções ainda maiores de responsabilização assim que houver o retorno às aulas no próximo ano.

    Na quinta-feira (30), o ministro da Educação, Milton Ribeiro, publicou um despacho no Diário Oficial da União dizendo que as instituições federais de ensino não poderiam exigir a apresentação do comprovante vacinal dos alunos.

    Como argumento, utilizou-se da decisão do Supremo sobre a obrigatoriedade, que prevê a necessidade de uma lei específica sobre o caso. Ribeiro escreveu no despacho que as instituições devem seguir com a “implementação dos protocolos sanitários”.

    Para os juristas consultados pela CNN, este é mais um caso de provável judicialização.

    Atualmente, não há nenhuma portaria do Ministério da Saúde em âmbito federal que determine a apresentação da carteirinha de vacinação no ato da matrícula escolar, algo que já foi posto por governos anteriores. O que existem são leis a nível estadual – como no caso de São Paulo, que aprovou legislação pertinente ao ensino público e privado em 2020.

    O Supremo e o STJ vêm firmando a jurisprudência que é possível exigir o comprovante vacinal para que as pessoas tomem parte de atividades coletivas, e isso se aplica às escolas. A exigência de um comprovante de vacinação parece ser lícita, porque é uma questão de saúde coletiva, não individual”, afirma Iberê Dias.

    Caso os responsáveis neguem-se ou se esquivem da apresentação do controle vacinal ou do laudo médico que contraindique a imunização, deve a direção da escola comunicar, imediatamente, o fato ao Conselho Tutelar e demais autoridades competentes, para que as medidas cabíveis sejam efetivadas”, pontua Bruna Saraiva. 

    Daniel Dourado, por sua vez, diz que a exigência do passaporte vacinal poderá ser uma exigência implementada por leis de estados e municípios caso não haja um entendimento federal para o caso. No entanto, ele vê como improvável que uma criança seja restrita de estudar por consequência da decisão dos pais em relação à vacina.

    “A criança não pode ser punida por uma falha do pai ou da mãe – ela tem o direito fundamental à educação e seria duplamente punida. A escola deve acionar o Conselho Tutelar, que tomará as medidas cabíveis”, afirma.

    Também sanitarista, Dourado destaca que, historicamente, o Brasil obteve sucesso na campanha de vacinação de crianças e adultos por meio de campanhas educacionais eficientes, e não pela obrigatoriedade de alguns imunizantes. Para ele, esses elementos foram enfraquecidos nos últimos anos.

    A obrigatoriedade sempre existiu, mas não é ela a responsável pelo sucesso da vacinação. A gente tem tido nos últimos 5 anos uma queda de cobertura vacinal no Brasil inteiro mesmo com vacinas obrigatórias, porque diminuiu esse elemento fundamental que é a comunicação com a população”, analisa.

    “O que a gente sabe é que essa [imunizante contra a Covid-19] é uma vacina segura para crianças. Se vai ser obrigatória ou não, é outra coisa que ficará em um segundo momento. Ter a vacina disponível para vacinar as crianças é necessário e é importante que seja feito o quanto antes”, diz Daniel Dourado.

    Em um 2022 com dúvidas restantes sobre o futuro da pandemia de Covid-19 e sua duração, e após um confinamento que foi flexibilizado devido ao sucesso da campanha de vacinação, Iberê Dias vê como prejudicial que, neste momento, pais imponham “uma segregação ainda maior” a crianças após os últimos dois anos.

    A criança que não se vacina e se vê privada ainda mais desse convívio todo certamente terá consequências ainda mais maléficas”, pontua.

    “Pais e mães que se recusam a vacinar seus filhos e impõem a eles uma segregação social ainda maior, por conta das razoáveis exigências de passaporte vacinal para que se frequente um clube, um esporte, um teatro, um cinema ou a escola, certamente vai ser causa de ainda mais prejuízo socioemocional para elas”.

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