Ameaça da inflação volta e aflige classe média
Primeiras vítimas foram os mais pobres. Agora, o aumento de preços pegou em cheio quem ganha mais. E em 2022 a pressão nos preços continua
Morando no Brasil desde 2009, o alemão Klaus Hepp nunca, em seus 64 anos de idade, soube o que é viver com inflação.
Ele não passou a infância na fila da carne nos anos 1980, não viu os congelamentos de moeda. “É horrível, tanto na vida pessoal como na profissional”, diz Hepp, diretor da Vulkan do Brasil, indústria de peças em Itatiba, no interior de São Paulo.
Hepp é casado e tem dois filhos, sendo um em idade escolar. Em casa, já passaram da picanha para a alcatra e da alcatra para o frango. “A inflação rouba de todo mundo. Não tem como fugir, a não ser cortar gastos”, diz ele.
Velha conhecida de quem tem mais de 40 anos, a inflação voltou – depois de décadas de percentuais amenos.
Os alimentos foram os primeiros a subir em 2020. “Naquele primeiro momento, a inflação ficou mais concentrada em alimentos, até porque as outras coisas – cinema, salão de beleza, shopping – não eram oferecidos”, lembra André Braz, economista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Com o avanço da vacinação e a reabertura da economia, a pressão de custos, antes concentrada em gêneros de primeira necessidade, deixou de atingir somente os mais pobres para fazer estrago também na classe média.
“A minha reeducação alimentar veio com a falta de dinheiro que a inflação trouxe”, conta a paulistana Silmara Almeida, dona da sorveteria Sabor da Cor.
“O que eu comprava só de vez em quando, tipo pizza, agora é de vez em nunca. As carnes todas eu substitui por legumes.”
Funcionária pública, ela fechou sua sorveteria em 2020 e só reabriu agora. “Fiquei só com o meu salário. Ou seja, a renda caiu e os custos aumentaram”, diz.
Mas foi quando ela religou as máquinas para voltar a fazer seus sorvetes que Silmara levou o maior susto. “Para um dia de produção, antes da pandemia, eu pagava R$ 170 de energia. Agora, chega a R$ 500, R$ 600.”
A mesma coisa aconteceu com os ingredientes que usa: a castanha do Pará, por exemplo, ela comprava por R$ 35 reais o quilo. Agora, são R$ 96. “Tive de mudar os sabores dos sorvetes e fazer uma nova faixa de preços. Antes, todos custavam a mesma coisa. Agora tem uma linha mais cara”, explica.
Foi o que também fez a chef de cozinha Talitha Barros, dona do restaurante Conceição Discos, em São Paulo. “Feijoada, agora, só por encomenda”, diz ela, que precisou subir os preços.
“Não repassei tudo que precisava, tive que encolher a margem, se não eu espantaria todos os clientes”, diz.
Essa cascata não é fruto apenas de uma impressão. Sempre que o preço de uma mercadoria sobre 1%, as vendas caem 0,64%, de acordo com Fabio Bentes, economista sênior da Confederação Nacional do Comércio (CNC).
“Esse é o grande efeito perverso da inflação: ela se alastra”, afirma ele. As pessoas sentem em várias escalas e tentam reduzir os gastos onde dá. No Conceição Discos, o tíquete médio, que era de R$ 80 antes da pandemia, agora é de R$ 60.
Em casa, Talitha teve que mudar hábitos para viver com menos: lava roupa somente uma vez por semana, não usa mais a secadora e utiliza bem menos a fritadeira para economizar energia.
Tempestade perfeita
Há um consenso entre economistas no sentido de que, mesmo antes da pandemia, já havia uma pressão de preços no Brasil, provocada principalmente pelos gastos do governo.
Quando o coronavírus chegou e boa parte da economia mundial parou, a inflação se tornou um problema global.
A quebra nas cadeias de produção provocou um aumento de preços generalizado no planeta. Principalmente no preço dos combustíveis. Em 2021, o preço internacional do barril de petróleo subiu 60% – e bateu o maior valor desde 2014.
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No Brasil, porém, como já tínhamos um cenário de aumento de preços – não tão agressivo, é bom dizer –, as coisas foram se encavalando.
“Foi uma tempestade perfeita”, diz André Braz. “Juntamos no mesmo caldeirão a crise hídrica (que aumenta o preço da energia elétrica), a quebra nas safras (também provocada pela falta de chuva), a desvalorização cambial (que vem da fuga de investimentos estrangeiros) – tudo isso com os já tradicionais problemas fiscais, agravados ainda mais pelo furo no teto de gastos anunciado pelo governo em outubro”, diz ele.
Com isso, chegamos a uma inflação de 10,74% acumulados nos últimos 12 meses até novembro, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial, o IPCA do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Perspectivas para 2022
“Nada do que causa a inflação está sendo resolvido”, diz Bentes, da CNC. “Então, a perspectiva não é boa.”
O único fator, segundo os economistas, que pode ser parcialmente revertido é a escassez hídrica. Com um fim de ano mais chuvoso, devemos – pelo menos momentaneamente – deixar a bandeira mais rigorosa da conta de luz. E isso pode aliviar um pouquinho a alta dos preços.
Nada, porém, que dure muito. Com o segundo ano seguido de La Niña, os serviços de meteorologia dizem que teremos chuva acima da média nas regiões Norte e Nordeste.
Mas a região Sul e os estados de São Paulo e de Mato Grosso do Sul receberão menos precipitação que o normal, com chance de algumas estiagens regionalizadas.
Sem atacar as causas
“Já tivemos a crise do apagão, no começo dos anos 2000 e resolvemos como? Com termoelétricas, que usam petróleo para produzir energia. Acabamos criando um duplo gatilho para a inflação naquele momento. Agora, poderíamos investir em energia eólica, em geração solar, mas nada disso está acontecendo”, diz Bentes.
“O Brasil tem a chance de transformar seus problemas em oportunidades”, diz Hélio Zylberstajn, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP). O país, segundo ele, poderia atrair investimento estrangeiro para atuar nessa área de geração de energia limpa. Melhoraria dois problemas de uma tacada só: o da energia e o do câmbio – dois grandes gatilhos da inflação.
“Mesmo aumentando os juros, não estamos atraindo investimentos porque, para o investidor internacional, o Brasil não tem uma estratégia crível para promover crescimento econômico. E com medo do que pode acontecer, ninguém vem”, acrescenta Braz.
Ou seja, mesmo com auxílios econômicos para os mais pobres, as causas da inflação continuam. “E como no ano que vem ainda teremos inflação, que pressiona ainda mais o câmbio, as expectativas não são das melhores”, diz o economista da CNC.
Preços represados
Na indústria de peças que Klaus Hepp dirige, na sorveteria de Silmara ou no restaurante de Talitha, o que está segurando os preços é a diminuição do poder de compra dos clientes.
“Se tive um aumento de custos de 10% e consegui repassar 3% ou 4% para o cliente, posso me dar por feliz. Já é muito”, afirma Hepp.
Mas, se o real continua se desvalorizando, até quando esse represamento de reajustes vai durar? “Estamos cortando gastos, procurando mais eficiência por meio de softwares de gestão – tudo para não ter que repassar o aumento de custos na íntegra para o consumidor. Mas chega uma hora que se a pressão de preços continua, a criatividade acaba e não vamos ter outra saída”, afirma Marcelo Giovani Guimarães, diretor de planejamento industrial, da fábrica de calçados Usafllex. Ou seja, uma hora a corda arrebenta. Quando isso acontecer, teremos recessão.
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