As implicações do primeiro chip implantado em humano da Neuralink
Estimulação elétrica cerebral acontece desde o século XIX, quando cientistas abriram a caixa craniana de animais e faziam eles se movimentarem involuntariamente
Todos vocês já devem ter acompanhado em notícias que a Neuralink, empresa de Elon Musk, realizou o primeiro implante cerebral no domingo passado, dia 28/01, meses depois de ter conseguido a autorização do procedimento pela Food and Drug Administration (FDA) dos EUA, em maio do ano passado. Inicialmente, o primeiro chip a ser testado era para controle de movimento e teve recrutamento de voluntários iniciado em setembro de 2023.
Segundo Elon Musk, “o paciente está se recuperando bem, e os exames iniciais mostram uma detecção de picos de neurônios promissora, o que indica que o aparelho consegue captar a atividade cerebral”. O anúncio foi feito no X, e em outra publicação, ele revela que o primeiro produto da Neuralink será chamado Telepathy (telepatia), nome que já indica alguns objetivos.
The first human received an implant from @Neuralink yesterday and is recovering well.
Initial results show promising neuron spike detection.
— Elon Musk (@elonmusk) January 29, 2024
Objetivo da Neuralink é que pacientes com paralisia consigam controlar aparelhos, como um mouse ou um teclado, usando apenas sinais cerebrais. E isso já é possível faz tempo, eu mesma já fiz experimentos de controlar muita coisa com a “mente”. De jogos a outros objetos, mas usando uma interface cérebro-computador (BCI, ou brain-computer interface) externa, não implantável, como o Emotiv, que já testei no Leandro Karnal durante o programa que fazíamos junto na CNN, o CNN Tonight.
Aliás, a título de curiosidade, a estimulação elétrica cerebral acontece desde o século XIX, no qual cientistas abriram a caixa craniana de animais e faziam eles se movimentarem involuntariamente.
De lá pra cá muita coisa aconteceu, e um dos dispositivos mais conhecido, a matriz de Utah, da empresa Blackrock Neurotech, foi demonstrado pela primeira vez em um ser humano em 2004. Ano passado mesmo, dois grandes experimentos foram realizados para auxiliar pessoas com paralisia a voltarem a falar.
Mas eu queria aproveitar essa notícia e trazer pontos para que a gente possa discutir até onde pode ir a ambição humana.
Em 16 de julho de 2019, quando Elon Musk revelou um novo tipo de interface cérebro-máquina (BMI), também revelou uma de suas principais ambições: conectar cérebros humanos diretamente a máquinas. Não que isso seja uma novidade, afinal implantes neurais e outros chips já estão no nosso corpo faz tempo.
A grande diferença de Musk dos outros experimentos e avanços científicos na área de interfaces cérebro-computador é que para ele, se o ser humano não entrar em simbiose com a inteligência artificial, certamente a humanidade ficará pra trás. E claro, conseguindo essa proeza, Musk seria o grande salvador da humanidade, além de possibilitar “imortalidade” com a “clonagem do cérebro” em máquinas.
Isso já coloca a Neuralink como uma empresa que não tem como objetivo final fazer com que pessoas cegas voltem a enxergar ou pessoas que perderem os movimentos da perna voltem a andar, entre outras possibilidades absolutamente incríveis. A questão que sempre me chamou atenção nessa história é que Elon Musk quer implantar chips em pessoas perfeitamente saudáveis, simplesmente com o intuito de aumentar as nossas capacidades cognitivas, “melhorar” a raça humana para que ela possa acompanhar a inteligência artificial e seus avanços inimagináveis. Acontece que Elon Musk é um dos caras mais ricos do mundo e um dos mais ambiciosos também.
Como Musk chegou até aqui?
Esse é um ponto que quero chamar atenção. Apesar de ter sido a primeira cirurgia realizada em humanos, isso já aconteceu centenas de vezes em animais, levando a maioria deles a grande sofrimento e até a morte.
Até um macaco ter conseguido jogar com o cérebro, outros deles foram sacrificados em testes e procedimentos que claramente ainda não estavam adequados para serem testados. A Neuralink já foi muito criticada no passado por ter realizado testes que resultaram na morte de aproximadamente 1.500 animais, incluindo ovelhas, macacos e porcos, desde 2018.
Por mais que Musk já tenha alegado que os macacos que morreram durante os testes na empresa estavam com doenças terminais e não morreram como resultado do implantes Neuralink, as investigações ainda continuam, já que existem documentos que incluem registros veterinários que comprovam o sofrimento terrível passado por esses animais até serem sacrificados. Eu fiquei horrorizada, porque muito disso poderia ter sido evitado. Foi um completo descaso.
E agora?
No recente experimento muita coisa não foi esclarecida, desde a real condição do paciente até detalhes técnicos. O tweet de Musk foi bastante singelo, o que indica que a empresa realmente não quer esclarecer as dúvidas que lhe foram enviadas por diversos veículos, jornalistas e especialistas da área, como também não quer deixar pistas para a concorrência.
E olha que ela é grande. Inclusive tudo isso faz parte de mais uma corrida dos grandes bilionários. Zuckerberg, Gates, Bezos, entre outros, estão nessa disputa também, já que investem nas empresas concorrentes.
Tudo isso indica que o importante aqui é cautela, afinal Musk é conhecido por mudar a realidade das coisas em suas declarações e ser um grande marqueteiro das suas iniciativas em redes sociais. O sucesso real do implante só pode ser avaliado a longo prazo, não é mesmo? Quem não se lembra que, em 2017, ele escreveu no Twitter que sua empresa de túneis, a The Boring Company, recebeu “aprovação verbal do governo” para Hyperloop subterrâneo de Nova York a Washington? Não houve confirmação alguma, tanto que nada caminhou. Existem inúmeras fake news profetizadas por Musk, então prefiro aguardar.
Mas só pra vocês terem uma ideia, existem cerca de 40 ensaios de interface cérebro-computador em andamento, de acordo com um banco de dados online de ensaios clínicos ativos, só nos Estados Unidos. A China também é uma grande concorrente.
As mais conhecidas são a Blackrock Neurotech, que eu já citei, Synchron, Precision Neuroscience e Paradromics. Todas estão avançando, e não necessariamente com implantes invasivos.
O neurocientista Miguel Nicolelis, que já tive a honra de entrevistar, fez isso há anos (alguns de seus alunos ajudaram a fundar a Neuralink). A diferença é que tudo ocorreu por meio de exoesqueletos, ou seja, nada de cirurgias. Claro que não precisar de exoesqueleto pra andar, por exemplo, é incrível. Mas nem todo mundo vai encarar os riscos de uma cirurgia como essa e também não devemos tirar do horizonte os desejos de Musk, que não são nada ocultos. Por isso mesmo, a abordagem de Musk em relação aos BCIs, acaba sendo diferente se comparada com a das outras empresas, já que se concentraram principalmente na utilização dos seus dispositivos para tratar condições médicas específicas.
Outra diferença de Musk, e aqui está seu avanço, é a miniaturização do chip, que por possuir 1.024 eletrodos, enquanto a maioria não passa de 200. Além disso, o robô que realizou a cirurgia é um dos grandes diferenciais.
Apesar de Musk estar atrás nessa corrida, ele tem pisado no acelerador na tentativa de evitar que ocorra o mesmo que aconteceu com seus investimentos em inteligência artificial, lembrando que ele foi um dos investidores da OpenAI, criadora do ChatGPT, que hoje está nas mãos de Bill Gates.
Ética no horizonte
Claro que serão necessários anos de pesquisa e demonstrações bem sucedidas antes que o objetivo final Musk seja possível, mas não deixa de ser um avanço no desenvolvimento científico-tecnológico da área.
Por mais que os objetivos finais de Musk sejam bastante questionáveis, principalmente por questões éticas, todo esse processo acaba por trazer esperança a milhares de pessoas com condições neurológicas debilitantes das mais diversas, assim como uma possibilidade real para tratar outras condições mentais como transtorno do espectro autista, depressão e esquizofrenia.
O que se torna imprescindível agora é o estabelecimento de diretrizes éticas para que os envolvidos nesta área garantam seu compromisso com práticas responsáveis. Geralmente os avanços na tecnologia são mais rápidos, mas nesse caso, os padrões éticos devem acompanhar este progresso.
Desde 2017 acompanhamos a saída dos principais cientistas da equipe fundadora da Neuralink, muito por conta de um cronograma acelerado para o desenvolvimento de novos produtos, impostos por Musk. Tudo isso só aumenta as preocupações éticas em torno dos testes em humanos da Neuralink.
E os desafios éticos aqui são complexos, como o direito à liberdade cognitiva, o direito à privacidade mental, o direito à integridade mental e o direito à continuidade psicológica. Aqui, a proteção das informações médicas extremamente sensíveis assume um papel central. Além disso, no meio do caminho, certamente a empresa de Musk terá que lidar com questões críticas relativas à proteção dos dados sensíveis dos pacientes, como também a garantia de bem-estar dos participantes nos ensaios e na continuidade de experimentos com animais. Seguiremos acompanhando, afinal, essa discussão junto com o avanço dos modelos de inteligência artificial, se tornam prioritários no mundo da tecnologia.