Por que há desigualdade de vacinas no mundo e o que isso tem a ver com a Ômicron
De acordo com cientistas, imunização é essencial para conter surgimento de versões mais perigosas do coronavírus
Na última terça-feira (30), a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo confirmou os dois primeiros casos no Brasil de Covid-19 causados pela nova variante do Sars-CoV-2, a Ômicron.
No mundo, a nova variante já foi encontrada em diversos países, como é possível visualizar no mapa abaixo:
A detecção dos casos, também os primeiros na América Latina, colocou as autoridades de saúde em alerta, uma vez que o novo tipo do vírus foi classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “variante de preocupação”. As outras versões do patógeno anteriormente classificadas dessa forma são a Delta, a Alpha, a Beta e a Gama.
A Ômicron, cujo nome técnico é B.1.1.529, foi sequenciada pela primeira vez a partir de um banco de dados de Botsuana e se destaca pelas mais de 30 mutações encontradas na proteína spike.
Esse é um ponto fundamental, pois, além de ser o principal alvo das respostas imunológicas do corpo e da proteção induzida pelas vacinas, é graças a essa proteína que o Sars-CoV-2 se conecta às células humanas.
Muitas das mudanças encontradas na nova versão do patógeno já haviam sido observadas em variantes como Delta e Alpha, e, segundo os especialistas, estão relacionadas a infecciosidade elevada e a capacidade de evitar anticorpos bloqueadores de infecção.
“Pode ser que, por conta dessas alterações, as vacinas não funcionem tão bem contra a Ômicron”, afirma à CNN Willem Hanekom, diretor do Instituto de Pesquisa em Saúde da África (Ahri) e um dos principais responsáveis pelo sequenciamento da nova variante.
Essa, entretanto, é apenas uma especulação e não significa que as pessoas devem deixar de se imunizar. “Mesmo se esse for o caso [a vacina não ser tão efetiva contra a infecção], o imunizante ainda protegerá contra casos graves e mortes por Covid-19”, prevê.
Compreender como e quando a Ômicron e outras variantes surgiram não é tarefa fácil. Muitas vezes, os estudiosos comparam a estrutura do RNA viral da nova cepa a outras já conhecidas em busca de “pistas”, mas o que leva à aparição do novo tipo de patógeno permanece um mistério. “Honestamente, não sabemos como essas novas variantes surgem”, conta Hanekom.
Os cientistas, contudo, têm teorias.
Por que o vírus sofre mutações
Uma das principais ideias da comunidade científica sugere que as mutações ocorrem quando o vírus se hospeda em pessoas com sistemas imunológicos comprometidos e que, por isso, levam mais tempo ou não conseguem eliminar a infecção.
Nesse ínterim, uma “pressão imunológica” é criada no patógeno, pois, embora não seja eliminado do corpo completamente, precisa se adaptar ao ambiente hostil em que está. Assim, esse fenômeno cria as condições ideais para o aparecimento de novos tipos do vírus.
Para exemplificar, Hanekom relata um dos casos que acompanhou durante a pandemia. “Um paciente com HIV permaneceu doente [Covid-19] por semanas até descobrirmos um tratamento alternativo [para fortalecer seu sistema imunológico] que o curasse”, conta.
Ao analisar o surgimento de novas variantes também é preciso considerar que, em algumas partes do planeta, o Sars-CoV-2 ainda circula livremente. “A evolução é uma função dos ciclos de replicação, tempo, seleção e aleatoriedade”, pontua Alex Greninger, professor no Departamento de Medicina Laboratorial e Patologia, na Universidade de Washington, Estados Unidos.
Por isso, os estudiosos acreditam na possibilidade de que a demora na imunização esteja relacionada ao aparecimento de novas variantes virais. “Se você não estiver vacinado, terá uma chance muito maior de ser infectado e transmitir o vírus”, detalha Hanekom. “Com mais vírus por aí, há mais chances de que eles se modifiquem.”
Desigualdades nas vacinas
Dessa forma, a vacinação se mostra uma ferramenta fundamental para desacelerar e até barrar grandes alterações no código genético do vírus. Esse fenômeno já foi testemunhado na prática pela humanidade: desde que a varíola foi erradicada, em 1980, graças à imunização em massa, o microrganismo causador da doença não evoluiu.
Tal panorama, porém, permanece distante. Em declaração realizada na última segunda-feira (29), a OMS revelou que 103 países ainda não atingiram a meta de ter 40% da população vacinada e, segundo projeções da instituição, isso deve acontecer apenas em 2023.
O motivo dessa demora é a desigualdade na distribuição de vacinas ao redor do globo. A OMS estima que, de todos os imunizantes produzidos até agora, 80% foram recebidos por países membros do G20 — nas nações mais pobres, essa taxa é de somente 0,6%.
Uma das principais causas de tamanho contraste na divisão de doses remonta a acontecimentos do início da pandemia, no início de 2020. À época, quando os imunizantes começavam a ser desenvolvidos, países ricos, como Estados Unidos e Reino Unido, realizaram acordos com várias das principais indústrias farmacêuticas.
A proposta era: em troca de dinheiro para financiar sua busca pela vacina, determinada empresa daria prioridade de compra para o governo patrocinador uma vez que os imunizantes estivessem prontos. Como o investimento não era garantido, as nações mais ricas realizaram o acordo com diversas indústrias. Então, à medida em que foram sendo aprovadas, as doses foram sendo enviadas para os países conforme o tamanho do investimento realizado. Consequentemente, governos que esperaram para financiar pesquisas já nas etapas mais avançadas ou que investiram menos nas companhias ficaram no fim da fila para receber as vacinas.
De acordo com a Universidade Duke, nos Estados Unidos, esses acordos fizeram com que 16% da população mundial possuísse metade de todas as doses de imunizantes produzidas até janeiro de 2021. Em maio, a taxa de vacina per capta no Canadá era de 10,4, enquanto na África do Sul era de 0,73.
Hoje, para evitar o agravamento desse cenário, a iniciativa Covax da OMS, da Aliança Gavi e da Coalizão para Inovações de Preparação para Epidemias (Cepi) adquire e distribui doses de vacinas para nações de média e baixa renda. O projeto é financiado por doações, majoritariamente realizadas por países ricos em que a imunização está avançada.
Dados divulgados em 8 de novembro pela iniciativa mostram que, até a data, os Estados Unidos e a União Europeia haviam doado 120 milhões e 47,2 milhões de doses, respectivamente.
Enquanto isso, o monitoramento da OMS mostra que, na África Subsaariana, 116 milhões de doses de vacina foram administradas, em comparação com 611 milhões na União Europeia, que tem uma população com menos da metade do tamanho.
A grande questão é que doar doses para outras nações não basta, conforme explica Adam Wheatley, pesquisador do Departamento de Microbiologia e Imunologia da Universidade de Melbourne, na Austrália.
“Para resolver o problema [de desigualdade na distribuição de imunizantes] não basta simplesmente enviar as doses de um lugar para o outro”, pontua.
Para ele, ao menos três outros tópicos que tangem a questão devem ser considerados: o abastecimento e capacidade de manufatura global de vacinas; os desafios logísticos; e o espalhamento de desinformação generalizada.
“Esse desafio é mais que científico”, afirma Wheatley. “É político.”
Como mudar o cenário
Vale lembrar que a desigualdade no acesso à saúde não é nenhuma novidade. Assim, uma mudança na lógica de como se dá a colaboração entre diferentes países é essencial, conforme argumenta Hani Kim, cientistas do Fundo de Investimento em Pesquisa para Fundação de Tecnologia para Saúde Global, em artigo publicado em julho de 2021 no British Medical Journal.
“Resolver a desigualdade vacinal requer o aumento do controle coletivo e da propriedade da produção e distribuição do imunizante para garantir o acesso equitativo com base na definição de uma agenda coordenada, mas independente, pelos países em níveis nacional e regional”, escreve Kim.
“Requer uma estrutura de governança que permita que os países com recursos e poder limitados representem seus próprios interesses, em vez de depender de um grupo de atores poderosos para defendê-los.”
Ao considerar todos os aspectos que enredam a chegada de imunizantes em países de média e baixa renda, circunstâncias estruturais que transcendem a capacidade das pessoas, isoladamente, alterarem esse cenário são reveladas. Os especialistas vêm destacando esse ponto nos últimos meses porque algumas pessoas têm relatado se sentirem culpadas e até negado tomar doses de reforço da vacina por conta do cenário atual.
No entanto, Owen Schaefer, professor assistente na Escola de Medicina Yong Loo Lin da Universidade Nacional de Cingapura, explica que recusar a terceira dose do imunizante contra a Covid-19 não ajuda em nada na resolução do problema.
“As doses de reforço são adquiridas a granel pelos países, de forma independente da demanda individual”, diz. “Uma dose recusada não será enviada ao exterior, onde é mais necessária. Em vez disso, será mantida armazenada, podendo até expirar e ser desperdiçada.”
Embora defina a equidade na distribuição de vacinas como um “imperativo moral”, Schaefer observa ser natural que os governos priorizem proteger a própria população. Afinal, a função do Estado é proteger os interesses daqueles sob sua jurisdição.
Essa filosofia, entretanto, não deve dar lugar à lógica nacionalista — até porque, para o estudioso, isso não faz sentido no contexto pandêmico. “Isso porque a distribuição equitativa de vacinas, por exemplo, minimizaria a probabilidade do surgimento de uma nova variante perigosa que pode, por sua vez, ameaçar a população daquele país, sem mencionar a economia global”, aponta Schaefer.
O argumento é corroborado por uma estimativa realizada pelo Economist Intelligence Unit e divulgada em agosto de 2021. De acordo com a análise, os atrasos na vacinação custarão US$ 2,3 trilhões a economia global — e as nações emergentes arcarão com dois terços dessas perdas, atrasando ainda mais o seu avanço econômico.
A aparição da variante Ômicron, inclusive, já impacta a economia de vários países do sul da África, pois a nova versão do coronavírus fez com que mais de 30 governos proibissem viagens para essas regiões. A medida afeta principalmente o ganho que as nações têm com o turismo, cujo papel econômico é notável nessas comunidades.
Schaefer descreve as proibições como método de controle da pandemia duplamente punitivo. “Primeiro, deixa-se de apoiar adequadamente a distribuição equitativa de vacinas naquela região. Depois, quando uma nova variante potencialmente perigosa surge, as viagens que apoiam o comércio, o investimento e o fluxo de capital humano são interrompidas”, alega.
Além disso, não há indicação científica de que os embargos realmente funcionam para a conter a Covid-19. Um artigo publicado no início da pandemia no periódico Journal of Emergency Management concluiu que há poucas evidências de que banir viagens internacionais controlem a propagação de doenças infecciosas.
Ademais, a medida pode até ser prejudicial, pois o estigma associado à proibição de viagens potencialmente gera xenofobia e racismo. Posto isto, os autores do estudo argumentam que tais providências só devem ser tomadas se recomendadas pela OMS — e, no caso da variante Ômicron, a entidade já se posicionou contra os embargos.
“Colocar em prática proibições de viagens que visam a África ataca a solidariedade global. A Covid-19 constantemente explora o que nos separa. Só tiraremos o melhor desse vírus se trabalharmos juntos para encontrar soluções”, disse Matshidiso Moeti, Diretor Regional da OMS para a África, em declaração realizada no domingo (30).