Entenda por que a Turquia cortou os juros mesmo com a inflação em alta
Especialistas divergem sobre possibilidade de crise no país atingir outros mercados emergentes, como o Brasil
Na última quinta-feira (25), o banco central da Turquia tomou uma decisão que vai contra uma das regras mais tradicionais da economia. Com uma inflação de quase 20% no ano, a taxa de juros foi cortada em um ponto percentual, para 15%, ao invés de ser elevada.
A decisão fez com que os investidores estrangeiros retirassem seus ativos no país, com a moeda local, a lira, caindo quase 19% em relação ao dólar nesta semana com um acumulado de 40% em 2021.
Por outro lado, a resposta negativa dos investidores não afetou o discurso do grande incentivador dos cortes de juros, o presidente do país, Tayyip Erdogan.
O político, que comanda o país desde 2003, afirma que está em “guerra” contra a taxa de juros. Diferentemente da linha de pensamento dos bancos centrais mundiais, inclusive o brasileiro, ele defende que a inflação na Turquia seria contida se os juros caíssem devido ao estímulo à economia.
Interferência no Banco Central
A decisão de cortar a taxa de juros turca ocorreu alguns meses depois de Erdogan interferir no banco central do país e demitir o presidente da instituição em março, o que levou a lira a despencar.
A demissão ocorreu logo após o banco anunciar uma alta da taxa para 19%, a terceira seguida. Também foi o terceiro presidente demitido desde meados de 2019.
Naquele ano, a Turquia passou por uma desvalorização da lira e alta na inflação decorrentes da saída de investimentos estrangeiros e ao endividamento do governo, além de acusações de medidas cada vez mais autoritárias por parte de Erdogan, como a perseguição a opositores.
Desde então, a inflação anual do país segue na casa dos dois dígitos, e as tentativas de contê-la via alta de juros acabam levando à interferência do presidente no banco. A última previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI), de outubro, é que a inflação turca terminará 2021 em 16%.
Ao comparar a inflação nas principais economias do mundo, a Turquia fica atrás apenas da Argentina, que vive uma das piores crises inflacionárias de sua história. O Brasil aparece em terceiro lugar.
“A situação lá é uma total influência no Banco Central. Nenhum dirigente com a inflação nesse patamar teria coragem de jogar essa taxa para os níveis que jogou, e a reação do mercado foi instantânea, com a lira desvalorizando”, diz Mauro Orefice, diretor de investimentos da BS2 Asset.
Livio Ribeiro, pesquisador do Ibre/FGV, afirma que as interferências de Erdogan no Banco Central já ocorriam antes de 2019. Uma das mais lembradas foi em 2007, quando o banco aumentou sua meta de inflação sem dar explicações.
O atual presidente do banco central turco, Sahap Kavcioglu, já foi um parlamentar do partido de Erdogan, o AKP. Erdogan foi primeiro-ministro do país entre 2003 e 2014, quando foi eleito para o cargo de presidente. Após assumir o cargo, a autarquia já tinha realizado outros dois cortes de juros, saindo de 19% para 16%.
Em 2017, um referendo ampliou e concentrou poderes políticos no cargo e extinguiu a figura do primeiro-ministro, o que abre espaço para medidas como as atuais em relação ao Banco Central. Ele foi reeleito para um mandato de cinco anos em 2018.
Queda na taxa de juros
O presidente defende que a queda da taxa de juros ajudaria a estimular a economia. Além disso, ele afirma que quer que o país tenha uma “independência” econômica em relação a outros países, investidores e organizações internacionais.
Historicamente, a economia turca sofre com episódios de retirada de capital estrangeiro quando há dúvidas sobre a capacidade do país de lidar com suas dívidas — hoje em euros– e picos de inflação.
Na década de 1990, ela chegou a mais de 80% em meio a uma crise política, e só arrefeceu nos anos 2000, em parte pela ajuda do FMI em recuperar a credibilidade do país para com investidores.
Para Ribeiro, as ações de Erdogan também geram uma instabilidade política que afasta investidores, ou ao menos os deixa mais cautelosos.
Já Orefice considera que as posições mais autoritárias de Erdogan não são novidade, e que a piora da situação econômica do país está ligada à perspectiva da inflação subir ainda mais.
A economia da Turquia
A Turquia faz parte do G20, grupo que reúne as 20 maiores economias do mundo, sendo considerada um país emergente, ou em desenvolvimento. Apesar das críticas às ações políticas de Erdogan, parte da popularidade do político está ligada ao grande crescimento econômico que o país teve, em especial na segunda metade dos anos 2000.
Segundo o pesquisador da FGV, o país teve um período longo de crescimento, por dois grandes fatores. O primeiro foi a abertura da economia para o setor de serviços, em especial o turismo. O segundo foi o ensaio de uma aproximação comercial e diplomática com a União Europeia, com a possibilidade de o país ingressar no bloco.
As conversas de adesão, porém, acabaram paralisadas após acusações de violações de direitos humanos e políticos por parte de Erdogan. Mas o país e o bloco ainda são grandes parceiros comerciais. Houve, ainda, um aumento na produção manufatureira em alguns setores.
Entretanto, a Turquia também foi afetada pela pandemia de Covid-19. Antes da pandemia, o turismo correspondia a mais de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional.
“O balanço de pagamentos turco tem dois choques a partir de 2020. O país é muito dependente de serviços de turismo, e a Turquia importa muito petróleo, cujo preço aumentou, então são dois problemas para a economia do país”, diz Ribeiro.
Esses dois fatores, misturados aos efeitos da crise em 2019, pioraram o cenário econômico da Turquia. A resposta, segundo Erdogan, seria estimular a atividade com juros menores.
“Acho muito improvável dar certo. Pode ter uma melhora pontual, de curto prazo, mas isso não se sustenta no médio e longo prazo e tem uma piora ainda maior, porque o poder de compra da população já está tendo uma perda com a desvalorização da moeda”, afirma Orefice.
Quando o banco central começa a cortar juros, com interferências, inflação frágil e posição fraca na balança de pagamentos, tem tudo para a lira cair
Livio Ribeiro, pesquisador do Ibre-FGV
Ribeiro afirma que Erdogan modificou a estrutura do Banco Central para facilitar as interferências, e seus planos se baseiam também em uma possível retomada do turismo no país, o que pode não ocorrer pensando em cenários como a volta de restrições na Europa.
Além dos riscos econômicos, Orefice aponta que o aumento da inflação com a desvalorização da lira piorará as condições de vida da população, o que levar a protestos e um aumento da oposição ao presidente.
Há efeitos para o Brasil?
Os grandes investidores estrangeiros não costumam concentrar a maior parte dos seus investimentos nos chamados países emergentes, mas a quantidade investida é importante para essas nações.
Não é incomum que, vendo um certo grau de incerteza econômica em um ou mais países desse grupo, os investidores optem por retirar os seus investimentos dos considerados mais arriscados. Em alguns casos, isso pode acabar respingando também no Brasil.
Entretanto, ainda não há um consenso sobre a possibilidade da situação econômica da Turquia levar a uma fuga de capitais de outros emergentes, como o Brasil. Nesses casos, a saída de moeda estrangeira leva a uma desvalorização cambial.
Para Mauro Orefice, os emergentes não seriam alvo de desinvestimento porque a maioria dos bancos centrais têm seguido o esperado dentro da política monetária: aumentar os juros enquanto a inflação sobe.
A Turquia é um país relevante entre os emergentes. O mercado acompanha, até pela importância geopolítica, mas eu acho que é difícil ter um respingo para os outros emergentes. O investidor consegue separar bem
Mauro Orefice, diretor de investimentos da BS2 Asset
Já Livio Ribeiro afirma que há sim possibilidade do cenário turco levar os investidores a ter mais cautela, e reduzir investimentos em emergentes com moedas mais instáveis, caso do real brasileiro. Ele também cita a África do Sul, Polônia, Hungria, México e Tailândia como possíveis afetados.
“A Turquia é um nicho mas afeta a classe pelo tamanho no mercado emergente, tem muitas operações. [A desvalorização] não é na mesma magnitude, mas aumenta o mau humor em um momento de preocupações com novos choques logísticos, sanitários e inflação global”, diz.
Ele afirma, porém, que a situação no país apenas “torna o caldo mais grosso”, já que existem outros fatores que pesam mais na pressão cambial, em especial possíveis surtos de Covid-19 e a chance de os Estados Unidos acelerarem a retirada de estímulos à economia.