Cinco anos após acordo de paz, Colômbia ainda luta por segurança e reparação
Em novembro de 2016, o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) iniciaram um processo de pacificação. Entenda algumas das conquistas e das falhas nesse caminho
Uma guerra de cinco décadas, que deixou mais de 90 mil mortos, 21 mil sequestros investigados, 80 mil desaparecidos, 15 mil vítimas de violência sexual, e outros padecimentos diretos do conflito, como quase 9 milhões de migrações forçadas.
Na tentativa de colocar um ponto final neste cenário de terror, dor, ódio e medo, a Colômbia celebrou, em 24 de novembro de 2016, a assinatura de um Acordo de Paz entre o governo – naquele momento presidido por Juan Manuel Santos – e as ex-Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Apesar do plebiscito realizado em um contexto de forte polarização da sociedade colombiana, em outubro de 2016, e em que o pacto acabou rejeitado pela maioria (50,21% votaram contra, e 49,78% a favor), naquele 24 de novembro, o acordo foi assinado, após a negociação de alguns termos.
Cinco anos depois, o saldo do acordo não é um consenso no país. Há problemas de implementação, como a entrega de terras via uma reforma rural, combate ao narcotráfico, velocidade da aplicação da justiça, assassinato de defensores de direitos humanos e de ex-combatentes e dissidentes que voltam às armas.
A ativista Yolanda Perea Mosquera foi vítima de estupro aos 11 anos de idade por um guerrilheiro, em Riosucio, no departamento de Chocó, em uma zona que era dominada pelas Farc e outros grupos armados, no noroeste do país. A mãe, em uma tentativa de defendê-la, foi assassinada. Ainda assim, Yolada diz preferir “um acordo imperfeito à guerra permanente”.
“Graças ao acordo, já não farão com mais nenhuma menina o que fizeram comigo, com as armas apontadas no momento de me estuprar e para assassinar minha mãe”, diz ela, que combate a agressão sexual na organização “Arropame con tu esperanza” (“Vista-me com sua esperança”, em português). “Tenho filhas e filhos que não merecem passar pelo horror que eu passei”, completa.
Apesar da anistia a ex-combatentes, liberados da prisão após o acordo, crimes de lesa humanidade cometidos durante o conflito armado podem ser punidos e desde a assinatura do acordo, a Jurisdição Especial para a Paz (JEP) abriu 7 “macro casos”, dos que são considerados os mais graves cometidos durante os conflitos armados.
Entre eles estão a retenção ilegal de pessoas, recrutamento e utilização de menores nos conflitos, mortes ilegitimamente apresentadas por agentes do Estado como baixas em combate (chamados no país de “falsos positivos”), e o assassinato sistemático de partidários da União Patriótica, sigla fundada em 1985 após outro acordo de paz entre o Estado colombiano e as Farc.
“O problema não é o acordo de paz, é o seu não cumprimento”, diz Yolanda, mencionando pontos como a lentidão na entrega de terras e “o descuido do governo em setores deixados pelas Farc, onde outros grupos à margem da lei exercem violência contínua”. O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e a Paz (Indepaz) contabiliza 91 chacinas no país somente em 2020 e 88 em 2021.
Ela ressalta, no entanto, que mecanismos como a Comissão da Verdade são “muito importantes e permitiram que familiares de vítimas encontrassem fossas coletivas, e continuar o processo de busca de desaparecidos. “A JEP não me deu respostas, mas por minha conta eu já consegui identificar quem mandou assassinar minha mãe”, diz, pontuando no entanto, que ainda espera conhecer toda a verdade sobre o ocorrido.
A falta de respostas a que ela se refere é o fato de que não há um megaprocesso sobre crimes sexuais – 13% deles foram contra menores negras-, mesmo após organizações terem apresentado mais de 30 informes com registros de milhares de casos perpetrados tanto por atores ilegais como por forças de segurança no marco do conflito armado.
Desarmamento e busca por paz
Jorge Restrepo, diretor do Centro de Investigação e Estudos sobre Conflitos Armados, Violência Armada e Desenvolvimento (Cerac) da Colômbia, ressalta que, apesar dos inúmeros problemas que persistem desde a assinatura do acordo de paz, a guerra civil colombiana terminou, com o desarmamento de mais de 9 mil homens, que entregaram mais de 12 mil armas.
“Construir a paz leva tempo”, ressalta Restrepo, explicando que a Colômbia conseguiu iniciar um processo de incorporação à sociedade civil de cerca de 13.400 ex-combatentes das Farc, incluindo os que estavam na prisão. “Nessa perspectiva, o acordo foi tremendamente exitoso”, diz.
Sobre a JEP, ele explica que é uma justiça transicional inédita no mundo e que, após passar por todas as reformas legais, com a eleição de juízes e o início de suas atividades, opera há pouco mais de dois anos para processar os responsáveis tanto das FARC como do Estado Colombiano.
“Também é muito importante destacar que as extintas Farc, hoje em dia organizadas no partido Comunes, adiantaram um processo de participação política que está longe de ser bem-sucedido, mas que mostra a aplicação do acordo de deixar a violência armada e passar para a ação política e participar da política institucional”, diz.
Restrepo afirma, no entanto, que os avanços em termos de infraestrutura rural ainda é insuficiente diante das necessidades desse setor, em um país que teve quase 90% do seu território afetado pela insegurança derivada do conflito armado.
“Apesar de a segurança ter melhorado, há muitas zonas do país onde novas formas de insegurança surgiram, com a disputa de grupos armados que impedem chegar a essa promessa de desenvolvimento e paz”, explica.
Dos cerca de 500 municípios do país antes afetados pela violência, hoje ao menos 110 têm conflitos entre grupos armados, o que representa um “enorme avanço” em direção à paz, diz o pesquisador.
Ele também ressalta a organização de cerimônias de reconciliação territorial – públicas e privadas – ao longo dos últimos anos, das quais vítimas e vitimadores do conflito armado se veem cara a cara e falam das suas experiências.
E muitas vítimas do conflito não se sentem amparadas pelos mecanismos de reparação. O general Luis Mendieta, então tenente coronel da Polícia Nacional, foi sequestrado em uma operação das ex-Farc em 1998 e só foi resgatado em 2010.
Ele afirma que os ex-guerrilheiros “obtiveram toda classe de benefícios e privilégios”, como as cotas no congresso do país, “e até o momento não contribuíram com a verdade, e a justiça não foi aplicada”.
Para Mendieta, muitas vítimas foram excluídas da comissão da verdade e da participação na Unidade de Busca de Desaparecidos, também criada após o acordo.
“O acordo foi benéfico somente para os vitimadores, em detrimento das vítimas que eles deixaram”, queixa-se. “Além disso, toda a ajuda internacional sempre foi direcionada para desarmamento e reinserção [dos ex-combatentes à sociedade civil], enquanto poderia haver programas de benefício das vítimas que essa organização terrorista ocasionou.”
Em 2008, Jacqueline Castillo começou uma busca desesperada pelo irmão Jaime, de 42 anos, que desapareceu em Bogotá. Ambos eram moradores de um setor de baixa renda da capital colombiana, e Jaime não tinha emprego fixo – fazia bicos lavando carros.
Dois meses depois, ela identificou o irmão entre vítimas de uma chacina em Soacha, município vizinho da capital, que não era frequentado por Jaime.
Na ocasião foi informada que ele estava registrado como um “guerrilheiro morto em combate”, quando na verdade, soube-se depois, que ele era um dos mais de 6 mil casos documentados como “falso positivos”: pessoas assassinadas pelas forças de segurança como se fossem guerrilheiros, durante a presidência de Álvaro Uribe.
“Pelo menos a Comissão da Verdade de Juan Manuel Santos, ex-ministro de Uribe, já reconheceu que esses jovens não eram guerrilheiros. Mas Uribe disse que foi enganado pelos soldados, e não aceita esses crimes cometidos pelo exército”, diz ela, explicando que mais tarde se soube que jovens eram iludidos com promessas de trabalho e acabavam assassinados para engrossar as cifras de guerrilheiros mortos.
Para Castillo, a Comissão da Verdade abriu caminhos para que os crimes do período fossem esclarecidos, mas o país não obteve o que se esperava do acordo de paz: a “verdade plena”.
Impacto eleitoral
Santos, que foi presidente da Colombia entre 2010 e 2018, e selou o acordo com o grupo guerrilheiro de ideologia comunista, em 2006, antes tinha sido ministro da defesa de Álvaro Uribe e candidato por sua sigla à presidência. Mas, quando no poder, divergências levaram à ruptura entre eles.
Ferrenho opositor ao acordo de paz, Uribe levantou bandeiras contra a negociação entre o governo de Santos e combatentes das Farc em Havana. Recentemente, na véspera da assinatura do acordo, ele afirmou que “não houve acordo de paz”.
Chefe da sigla Centro Democrático, o ex-presidente expressou, em uma carta dirigida ao secretário geral da ONU, Antonio Guterres, críticas à elegibilidade de ex-combatentes e, entre outros pontos, afirmou que há “impunidade total” a “responsáveis por crimes atrozes, por exemplo, sequestro e estupro de menores.”
Já Santos afirmou ver com satisfação que pessoas antes contrárias ao acordo mudem sua percepção quanto ao pacto, e afirmou que o próprio presidenrw Iván Duque – apadrinhado de Uribe – esteja “se transformando em um grande promotor da implementação dos acordos de paz”.
Apesar da polarização em torno do acordo durante as negociações e nos últimos anos, Restrepo acredita que o assunto “não será, como já foi, decisivo ou influente no resultado eleitoral” do pleito presidencial de maio do ano que vem. “Estamos virando, lentamente, a página do conflito”.