Especialistas criticam proibição de linguagem neutra em projetos da Lei Rouanet
Portaria impede o emprego de termos e expressões como "todes" e "amigxs", usados para representar pessoas não binárias
Após a Secretaria Especial de Cultura, vinculada ao Ministério do Turismo, publicar, nesta quinta-feira (28), no Diário Oficial da União, uma portaria que proíbe a utilização da “linguagem neutra” –ou não binária– em iniciativas financiadas pela Lei Rouanet (Lei de Incentivo à Cultura), especialistas em ética e linguística criticam a decisão.
Eles destacam que a nova linguagem tem como proposta ser inclusiva, que a cultura, por natureza, deveria incluir e não excluir e que a “língua muda e não cabe o controle governamental”.
Os especialistas ouvidos pela CNN avaliam que a medida pode não conseguir interromper esse processo já está em curso, assim como aconteceu no passado quando tentou-se barrar o estrangeirismo, mas algumas expressões já eram usadas no dia a dia da população.
Pelo Twitter o Secretário Especial de Cultura, Mario Frias, explicou o motivo da decisão. Para ele, a linguagem neutra é uma “destruição ideológica” “Não há cultura sem comunicação. O que se convencionou chamar de linguagem neutra, na verdade, não é linguagem, é mera destruição ideológica da nossa língua”, escreveu o secretário.
A portaria, já em vigor, do Ministério do Turismo, determina que “fica vedado o uso e/ou utilização, direta ou indiretamente, além da apologia, do que se convencionou chamar de linguagem neutra”.
Na prática, a decisão impede a substituição de artigos masculinos e femininos pela letra “x” ou “e”, que na proposta da linguagem neutra tem como objetivo representar pessoas não binárias (quem não se identifica nem com o gênero masculino nem com o feminino). Assim, “amigo” ou “amiga” virariam “amigue” ou “amigx”. As palavras “todos” ou “todas” seriam substituídas, da mesma forma, por “todes” ou “todxs”.
Para a vice-presidente da Associação Brasileira de Linguística (Abralin), Raquel Freitag, a linguagem neutra precisa ser mais difundida entre os brasileiros e a cultura deveria ter a inclusão como conceito. Freitag defende que “um decreto não consegue interromper a evolução de uma língua”.
“Esse tipo de linguagem fica numa bolha de poucas pessoas ainda e precisa alcançar, incluir, mais pessoas. Já tivemos uma discussão parecida no passado, quando tentavam barrar o estrangeirismo, ou seja, algumas expressões de outros países usados no dia a dia. Obviamente isso não funcionou porque já eram palavras usadas no dia a dia das pessoas”, lembrou.
José Ricardo Cunha, doutor em direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em Ética, lamenta a decisão e argumenta que a portaria estabelecida pela Secretário Especial de Cultura não é bem-vinda.
“A medida tem uma proposta de inclusão, aumentar a representação na própria linguagem. Isso parte de movimentos minoritários, feministas, etc. No ponto de vista dos direitos humanos, essa mudança é bem vista e necessária. Por isso, a determinação que foi colocada pode impedir o processo de ampliação e representatividade, e não é bem-vinda”, afirmou o professor.
Luiz Schiwindt, linguista da Universidade Federal do Rio Grande Do Sul (UFRGS) entende que a medida fora imposta pelo governo e destaca que a “língua muda e não cabe o controle governamental”. No entanto, Schiwindt destaca que ainda não temos garantias que a linguagem não binária será realmente adotada com mais frequência pelos brasileiros.
“Não acredito que deva existir um decreto para determinar o jeito que as pessoas falam. Toda língua muda. Isso é só mais uma mudança e faz parte porque precisa acompanhar a sociedade que fala essa língua. Não tem como legislar sobre língua”, declara Schiwindt.
“Não cabe o controle da norma culta através de decretos governamentais. Mas ainda não sabemos se isso vai ser introduzido na prática. Uma mudança como essa demora muitos anos. E é muito complexo porque precisa concordar com a gramática do Brasil. A mudança só acontece quando naturalizamos esse tipo de vocabulário”, finaliza.