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    Aos 30 anos, Nevermind é o álbum pré-internet que não envelhece

    Clássico do Nirvana, o último grande disco de rock segue conquistando novas gerações de fãs e seu legado permanece

    Pablo Miyazawacolaboração para a CNN

    Nevermind, o segundo álbum do Nirvana, completa 30 anos nesta sexta-feira. Foi em 24 de setembro de 1991 que chegou às lojas o famoso “disco do bebê pelado nadando atrás do dólar”.

    A figura é icônica ao ponto de continuar sendo objeto de discussão após três décadas. Recentemente, o bebê da foto, hoje um adulto de 30 anos chamado Spencer Elden, processou a banda, alegando uso indevido de imagem e pornografia infantil. Além de inusitada, a notícia ilustra bem a aura de eternidade do álbum e do conjunto de músicas que sua capa representa.

    A estampa emblemática acaba sendo mero detalhe. Por méritos próprios, Nevermind talvez seja o álbum mais importante do rock das últimas décadas, e provavelmente o último relevante do gênero como um todo.

    Foi um conjunto singular de fatores que levou uma banda desconhecida formada nos arredores de Seattle a ser contratada por uma grande gravadora, rompendo uma hermética bolha de fãs de rock alternativo e atingindo rapidamente o olimpo da música popular.

    Pouco mais de três meses após seu lançamento, Nevermind chegou na liderança das paradas norte-americanas, tirando a posição que era de Michael Jackson. Metallica, Guns N’ Roses, U2 e Van Halen foram outros que lançaram discos na mesma época – todos foram suplantados em algum momento pela ascensão sobrenatural de Nevermind.

    O primeiro single, “Smells Like Teen Spirit”, acompanhado de um videoclipe de apelo niilista, é o hino definitivo da década de 1990.

    Chega a ser curioso que um álbum de um gênero desgastado como o rock continue a ser exaltado atualmente. Mas o fato é que a reputação e popularidade de Nevermind não dão sinais de enfraquecer. Em 2003, a revista Rolling Stone colocou Nevermind na décima-sétima posição entre os 500 maiores álbuns de todos os tempos; na revisão da lista, em 2020, mandou para a sexta posição.

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    Especialistas e testemunhas oculares do sucesso do Nirvana são unânimes a respeito dos principais motivos que levam Nevermind a ainda conquistar novos fãs e resistir ao teste do tempo: é a qualidade das canções, associada à sonoridade convidativa, além de mais alguns elementos transcendentais de difícil definição.

    “As músicas são realmente ótimas”, diz o jornalista norte-americano Michael Azerrad, autor da biografia oficial “Come As You Are: A História do Nirvana”. “Há algo nelas que não pode ser explicado, que toca qualquer alma que esteja aberta para sentir. Essa é a magia da música, e é atemporal. Algumas pessoas querem coisas reais, e a música do Nirvana é inconfundível e poderosamente real.”

    Para Azerrad, que foi amigo íntimo de Cobain – e escreveu sobre a relação em um ensaio recente para a revista New Yorker –, a genialidade do músico estava no fato de “que ele era alguém com quem muitas pessoas podiam se relacionar, e ele traduzia esse sentimento em música.”

    Além disso, o biógrafo ressalta a qualidade da gravação de Nevermind e as performances dos músicos como os elementos indispensáveis de uma combinação certeira: “Não apenas a voz de Kurt, mas as linhas de baixo perfeitas de Krist [Novoselic] e a maneira como Dave [Grohl] toca a bateria com tanta força enquanto também serve completamente a música”.

    “Sonoramente, o Nevermind sobreviveu muito bem. Além de ter boas canções, e diferentes umas das outras, tem ataque e energia”, concorda o jornalista André Forastieri, autor do livro de ensaios “O dia em que o rock morreu”, em que relata a entrevista que fez com Kurt Cobain no Brasil, em 1993.

    Forastieri crê que o Nirvana “foi a última banda de rock que importou, porque foi a última antes da internet. O disco saiu em 1991, e cinco anos depois, o mundo já era completamente diferente. O papel do rock como transmissor de tudo o que é ‘novo’ não foi ocupado por um gênero, mas por uma plataforma digital. E o Nirvana é um divisor de águas disso.”

    ”Não esqueça que Nevermind foi pré-internet!“, faz coro Jack Endino, o produtor de Bleach, álbum de estreia do então desconhecido Nirvana, lançado em 1989. Questionado sobre as razões do estouro inesperado de Nevermind, ele não reluta em enumerar os fatores fundamentais: “São as canções, e as performances dessas canções, especialmente os vocais. E o clipe de ‘Smells Like Teen Spirit’ na MTV foi provavelmente uma grande parcela disso, ainda que eu nunca tenha assistido à MTV”.

    Endino, que foi um dos produtores que mais vezes trabalhou com o Nirvana e gravou as primeiras demos da banda em 1987, exalta que Nevermind teria soado de outra maneira se passasse por suas mãos, ainda que valorize a produção caprichosa do então novato Butch Vig e a mixagem posterior do experiente Andy Wallace. ”É simplesmente… um trabalho de qualidade”, ele diz. “É quase perfeito. Eu teria o mixado diferente, é claro, mas talvez não tivesse vendido tantas cópias… Não há como saber!”.

    Nevermind foi gravado entre maio e junho de 1991, no estúdio Sound City, em Los Angeles. Bancada pela gravadora DGC (selo da Geffen), a produção comandada por Vig teve um custo de US$ 65 mil – um valor mais de cem vezes maior do que os US$ 600 gastos para a gravação de Bleach, de 1989, lançado pelo selo independente Sub Pop.

    A diferença é percebida mesmo por ouvidos desatentos: Bleach soa cru, barulhento e abafado, o exato oposto da sonoridade límpida e agradável das doze canções de Nevermind, ainda que sejam embaladas por camadas de guitarras distorcidas, bateria pesada e os versos ora sussurrados, ora gritados, de Kurt Cobain.

    A mixagem, que é o trabalho de agrupamento e equalização dos sons dos instrumentos e vozes obtidos na gravação, talvez seja o segredo da sonoridade de Nevermind ser tão acessível a ouvidos diversos – apesar de criticada pelo próprio Cobain na época, que a considerava “polida demais”.

    “A mixagem do Andy Wallace é grandiosa e definiu o que é o rock pop daquela época, além de valorizar o som da bateria do Dave Grohl”, explica Carlos Eduardo Freitas, produtor musical do estúdio paulistano Aurora. “Ele tem uma fórmula que funciona.”

    “As pessoas acham que o Nevermind é mais simples do que ele realmente é. Mas cada faixa tem pelo menos quatro camadas de guitarra, dobras de voz… É um disco que mostrou que dá para fazer rock pop de um jeito agressivo e fofo ao mesmo tempo”, teoriza o produtor. “Parecia um sucesso orgânico inesperado, mas não foi. Foi planejado. Mas foi bem mais longe do que qualquer um pudesse imaginar.”

    “É uma sonoridade muito clean”, acrescenta o jornalista André Barcinski, autor do livro “Barulho”, que retrata a cena musical norte-americana do início dos anos 1990. “A mixagem tem um verniz pop que envelheceu melhor do que os discos do Pearl Jam, que soam muito mais velhos do que o Nevermind. As novas gerações ouvem o disco com o maior prazer.”

    Barcinski fotografou o Nirvana em uma de suas apresentações mais emblemáticas, em Seattle, pouco mais de um mês após o lançamento de Nevermind – show que deu origem ao vídeo Live at the Paramount. “Comecei a fotografar da frente do palco no início do show e ninguém me tirou de lá”, ele lembra. “É incrível que, trinta anos atrás, havia uma banda que estava prestes a se tornar um fenômeno mundial e que era acessível e ainda não estava cercada de assessores.”

    Impacto mundial

    Mesmo que as melodias sejam cantaroláveis e os vocais de Kurt Cobain sejam límpidos, pode ser difícil decifrar o que o cantor queria dizer – suas letras, poéticas e enigmáticas, escritas quase que em um código pessoal, não facilitam muito a compreensão inicial.

    Na época do lançamento de Nevermind, DJs de rádio relutaram em tocar o disco, alegando dificuldades em entender o que a banda cantava. A MTV, ferramenta obrigatória na divulgação de música nova na época, também não apostou de cara que o Nirvana pegaria, renegando o caótico clipe de “Smells Like Teen Spirit” à programação da madrugada.

    Mesmo os executivos da gravadora DGC não tinham confiança em boas vendas – a aposta inicial era de 50 mil cópias, com sorte, o dobro. Três meses após o lançamento, o disco alcançou platina, com um milhão de unidades vendidas, 374 mil delas apenas na semana do Natal. Antes da segunda semana de 1992, Nevermind era o disco número 1 dos EUA.

    Atualmente, os números de Nevermind ultrapassam os 30 milhões de cópias físicas comercializadas (o número provavelmente é muito maior), mais da metade delas fora dos Estados Unidos.

    A influência do álbum atravessou fronteiras e gêneros, atingindo também o Brasil. Canções de Nevermind ganharam versões de nomes variados da música brasileira, como Cássia Eller, Claudia Ohana, Caetano Veloso, Charlie Brown Jr. e Pitty, assim como de artistas do circuito alternativo, para quem Cobain permanece como um ícone máximo.

    Em 2017, a banda Macaco Bong, de Cuiabá (MT), lançou Deixa Quieto, um álbum-tributo a Nevermind formado por pesadas versões instrumentais, com melodias dos vocais recriadas pela guitarra. “É um álbum garageiro e tosco que debocha, como um Nevermind interpretado à moda brasileira, cozido no fogo à lenha”, descreve o guitarrista Bruno Kayapy, fazendo um contraponto ao senso de humor de Kurt Cobain, “mais sombrio e realista”.

    “Aos 7 anos, eu já tinha um Nevermind na mão. Me fechava no quarto, ligava o som no máximo e ouvia, feliz da vida. Era quando a magia acontecia”, lembra Kayapy, que reforça o encantamento causado pelo álbum como difícil de explicar ainda hoje.

    “Eu não entendia nada do ponto de vista poético, o que o Kurt estava dizendo nas letras. O que me pegava era a atitude com os instrumentos, os riffs de guitarra, a imagem carismática dos três caras.”

    A emblemática “união de todas as tribos” alcançada pelo Nirvana (ou “Norvana”) decretada em 2013 por Dinho Ouro Preto, vocalista do Capital Inicial, só foi possível graças à aceitação irrestrita a Nevermind por diferentes tipos de fãs de música – algo que dificilmente irá se repetir.

    “Isso ocorreu em uma época muito específica, quando a indústria estava voltada a um mercado mais alternativo, e a MTV e as rádios estavam dispostas a apostar em um som mais radical”, reflete André Barcinski. “Talvez tenha sido a última banda de rock que foi ouvida por fãs de todos os estilos: quem era do metal, do punk, do pop, todos gostavam do Nirvana. O Nevermind foi uma confluência de estilos e influências que agradou a todo mundo.”

    A mudança na relevância do rock como ponto focal da cultura pop também dificultaria a repetição deste fenômeno nos tempos atuais. “Eu sempre gravei bandas de guitarras e ando quase tão ocupado atualmente quanto em qualquer outro momento da minha carreira”, diz o produtor Jack Endino. “Mesmo assim, eu acho que o ‘rock and roll’ não é mais tão importante para a cultura ocidental como era antes.”

    Apesar de trazer temas e sonoridades universais, há de se lembrar que Nevermind é fruto de condições e acontecimentos bem específicos: as origens humildes de Cobain e do baixista Krist Novoselic, no interior do estado de Washington, longe das grandes cidades; a associação deles a uma cena musical underground fortemente ligada à ética punk; além de fatores ligados à infância e adolescência cheias de dificuldades de Cobain, que durante anos enfrentou problemas com drogas, além de depressão e dores estomacais.

    Michael Azerrad, que prepara uma versão revisada da biografia do Nirvana, tem uma teoria sobre os motivos que fizeram a banda acertar em cheio naquele momento: “O disco chegou no final de 12 anos de uma era conservadora nos Estados Unidos. Havia uma nova geração de jovens surgindo, a Geração X, e eles estavam fartos daquele ambiente social e político, ​​de serem ignorados e menosprezados, do antigo ‘rock clássico’ nas rádios, das boy bands e outras músicas horríveis e manufaturadas que as gravadoras estavam vendendo. Eles queriam uma música que pudessem chamar de sua. E naquele exato momento cultural, o Nirvana lançou Nevermind.”

    Longa vida após a morte

    Como o Nirvana persistiu como banda de rock clássica, tendo durado tão pouco tempo? Vale lembrar que as atividades da banda começaram em 1985, e se encerraram abruptamente com o suicídio de Kurt Cobain, em 5 de abril de 1994.

    Desde então, o líder se tornou um ícone mais recente dentre os artistas que morreram cedo demais – assim como Jimi Hendrix, Jim Morrison e Janis Joplin, ele morreu aos 27 anos, uma idade simbólica para as tragédias da cultura pop. Talvez parte do apelo com fãs jovens demais para terem visto o Nirvana ao vivo seja indissociável da mítica imagem pós-morte de seu carismático líder.

    “Sem dúvidas o suicídio levou a banda para outro nível de popularidade, porque o Kurt virou uma espécie de mártir. A molecada usa camisetas dele até hoje. Mas isso acontece com todas as bandas cujo líder morre”, teoriza André Barcinski. “Dos artistas que partem jovens, a gente só fica com as lembranças boas, não os vemos decadentes. Isso certamente colabora para a perpetuação do culto em torno do Nirvana.” Isso e a sonoridade atual e inabalável de Nevermind.

    Pablo Miyazawa é jornalista e foi editor-chefe da revista Rolling Stone Brasil

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