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    Conheça os impactos ocultos da Covid-19 em órgãos como coração e testículos

    Estudos recentes mostram associações da doença causada pelo novo coronavírus com processos inflamatórios que podem atingir o coração, os testículos, os rins e o cérebro

    Lucas Rochada CNN , em São Paulo

    A Covid-19 é uma doença de transmissão respiratória, causada por um vírus chamado tecnicamente de SARS-CoV-2. Com essas características, ela foi inicialmente descrita como uma infecção viral do trato respiratório, com os efeitos esperados da infecção principalmente para órgãos como a traqueia e os pulmões.

    Com o avanço da pandemia, a doença também mostrou sintomas como alterações neurológicas, de comportamento, insônia, dores musculares e nas articulações que podem durar meses, a chamada Covid-19 longa.

    No entanto, a doença ainda se apresenta como um grande quebra-cabeças com várias peças fora do lugar. Estudos recentes mostram uma associação da infecção com processos inflamatórios que podem atingir o coração, os testículos, os rins e o cérebro.

    Entenda o que dizem as pesquisas em andamento sobre o assunto e quais os riscos de complicações pela Covid-19.

    Conhecimento adquirido com o tempo

    O conhecimento científico é construído com o tempo a partir da observação e análise de um conjunto de profissionais. Quando o vírus Zika, transmitido aos humanos pelo mosquito Aedes aegypti, foi introduzido no Brasil em 2014, o conhecimento dos impactos que poderiam ser causados pela infecção eram limitados.

    Em outubro de 2015, a médica da maternidade pública de Campina Grande, na Paraíba, Adriana Melo, identificou o número crescente de crianças nascidas com microcefalia. Para tentar entender o que poderia estar por trás das malformações, a médica enviou para análise no Laboratório de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), no Rio de Janeiro, amostras do líquido amniótico de duas gestantes, que tiveram os fetos diagnosticados com microcefalia através de exames de ultrassonografia.

    Os resultados da análise constataram a presença do genoma do vírus Zika nas amostras, dando início a uma grande investigação pela comunidade científica brasileira e internacional da associação entre o vírus e a malformação de fetos. Hoje, é amplamente conhecido que o vírus é capaz de atravessar a placenta e provocar danos às crianças em desenvolvimento, levando a uma condição chamada Síndrome Congênita do Zika.

    Com a Covid-19, as investigações também são contínuas e incluem um grupo diverso de especialistas, como médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, biólogos, biomédicos e virologistas, dentre outros.

    Entenda o que acontece durante a infecção

    A principal porta de entrada do novo coronavírus no organismo são as vias aéreas. A infecção acontece principalmente quando uma pessoa inala as partículas do vírus eliminadas por alguém contaminado, durante a tosse ou espirro.

    Uma vez dentro do organismo, o vírus invade as células humanas e dá início a um processo de replicação, ou seja, um único vírus passa a produzir milhares de cópias de si mesmo. Nessa etapa, chamada de incubação, as pessoas podem não apresentar sintomas, embora já possam transmitir o vírus.

    O avanço da infecção sinaliza para o sistema imunológico, responsável pela defesa do corpo, a presença de um elemento estranho no organismo.

    Para combater o invasor, o sistema imune conta com dois tipos de defesa. A primeira delas, chamada inata, existe desde o nascimento e atua de forma rápida contra qualquer invasor. No entanto, a resposta inata não é específica e pode ter capacidade limitada.

    Já a resposta imune adquirida consiste primeiramente na identificação do invasor, para o posterior desenvolvimento de uma estratégia de combate mais específica. Por isso, ela demora mais para ser ativada, mas pode ser mais eficaz no enfrentamento ao vírus.

    O mecanismo da resposta imune adquirida é o princípio básico das diferentes tecnologias utilizadas para a formulação das vacinas. Embora os imunizantes possam ser desenvolvidos com metodologias distintas, como as vacinas de vírus inativado, de RNA mensageiro ou de vetor viral recombinante, o objetivo final é o mesmo: oferecer ao sistema imunológico a informação associada ao novo coronavírus para que o próprio corpo desenvolva as defesas específicas contra o microrganismo, como a produção de anticorpos neutralizantes e a indução da resposta celular.

    Com o objetivo de frear a infecção, o vírus desencadeia uma resposta inflamatória no organismo. Quando exacerbada, a inflamação pode danificar as células do próprio corpo, provocando lesões em diferentes órgãos.

    Como a Covid-19 pode afetar o coração

    Quando a inflamação atinge o miocárdio, um músculo do coração, temos uma condição chamada miocardite. Os principais sintomas são dor no peito, falta de ar e palpitações e frequência cardíaca irregular. Pesquisas recentes indicam uma associação entre a Covid-19 e o quadro clínico cardíaco que pode levar à hospitalização, insuficiência e morte súbita.

    “A Covid grave proporciona uma infecção generalizada, uma síndrome infecciosa sistêmica. Esse componente vai levar a inflamações em diversos órgãos e sistemas. Em relação a vírus invasor e resposta do hospedeiro, um desses órgãos acometidos pode ser o coração”, afirma o cardiologista Leandro Costa, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.

    Segundo um estudo conduzido por pesquisadores dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), pacientes com a doença tiveram quase 16 vezes mais risco de miocardite em comparação com pessoas que não foram infectadas com o novo coronavírus. A análise considerou o período de janeiro de 2019 a maio de 2021.

    De acordo com o estudo, os pacientes com miocardite eram ligeiramente mais velhos do que aqueles sem a condição. A inflamação do miocárdio também foi mais comum em homens (59,3% dos casos) do que em mulheres. A análise dos pacientes com a Covid-19 mostrou que eles tiveram 15,7 vezes o risco de miocardite em comparação com os não infectados.

    As taxas de risco variaram de acordo com a idade, mostrando um maior risco para os extremos de faixa etária. Os índices foram de sete vezes para pacientes de 16 a 39 anos para mais de 30 vezes maior entre menores de 16 anos ou mais velhos que 75 anos.

    Segundo o especialista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, pacientes que já apresentam alterações cardíacas estruturais tendem a apresentar um risco aumentado para a formação da miocardite. “Todos temos chances frente a uma infecção. Nós não sabemos como o organismo vai responder frente à invasão do agente agressor, mas quem tem alteração estrutural já tem uma predileção maior para sofrer esse tipo de acometimento”, afirma.

    Os autores do estudo do CDC destacam que o mecanismo exato da infecção pelo novo coronavírus que pode estar relacionado à miocardite permanece desconhecido. No entanto, ressaltam que a associação entre as duas condições clínicas seja provavelmente semelhante à ação de outros vírus.

    A miocardite pode desaparecer com a melhora da infecção, porém alguns pacientes podem desenvolver quadros mais graves com necessidade de internação. O diagnóstico pode ser feito a partir de exames de imagem ou mais específicos, como o eletrocardiograma, que indica alterações no funcionamento do coração.

    O tratamento consiste no cuidado da infecção principal, que levou à miocardite, como a Covid-19, com o uso de medicamentos sob prescrição médica que podem contribuir para a regulação das funções do coração, além do repouso.

    “O processo é aguardar e controlar as lesões de órgão alvo, que podem ser de diversas e contribuem para o prognóstico cardíaco isolado. Dependendo da alteração cardíaca, entrar com as medicações específicas que atuam na redução de mortalidade”, explica Leandro Costa.

    O especialista ressalta que, na maior parte dos casos, os pacientes com a miocardite apresentam uma boa resposta ao tratamento, principalmente quando realizado de forma precoce.

    Danos aos testículos podem ser silenciosos

    A Covid-19 também pode causar alterações hormonais e inflamação nos testículos que podem ser silenciosas, de acordo com estudos conduzidos por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa, publicada no periódico científico Andrology, mostrou que o novo coronavírus é capaz de invadir todos os tipos de células dos testículos, causando lesões que podem prejudicar a função hormonal e a fertilidade masculina.

    Para chegar ao resultado, os especialistas realizaram a autópsia dos tecidos testiculares de 11 pacientes, com idades entre 32 e 88 anos, que morreram devido a complicações da Covid-19. O estudo é coordenado pelos professores Paulo Saldiva e Marisa Dolhnikoff, da Faculdade de Medicina da USP.

    “Vimos por microscopia eletrônica que o coronavírus invadiu todas as células do testículo. O vírus está presente nas células que produzem espermatozoides, chamadas Sertoli, nas células que produzem testosterona, chamadas de Leydig, nos vasos sanguíneos e no arcabouço que dá suporte ao testículo”, explica o pesquisador e médico andrologista Jorge Hallak, professor da Faculdade de Medicina e coordenador do Grupo de Estudos em Saúde do Homem do Instituto de Estudos Avançados da USP.

    As análises mostraram uma série de lesões, que reduzem a produção de espermatozoides e hormônios. De acordo com o estudo, os danos estão possivelmente associados às alterações inflamatórias desencadeadas pela infecção. A queda na atividade pode estar relacionada a lesões e formação de trombose, que reduzem a oxigenação dos tecidos de estruturas onde os espermatozoides são produzidos.

    O médico Jorge Hallak afirma que tem sido observado um aumento na procura por consultas médicas de homens que relatam problemas associados à redução na testosterona, como cansaço, irritabilidade e falta de memória. “O que nós observamos é que muitos pacientes apresentam índices muito baixos de testosterona após a infecção, mesmo em pessoas jovens. A mobilidade de espermatozoides também é muito baixa”, comenta.

    No entanto, o especialista explica que a inflamação dos testículos pode não apresentar sintomas. Por isso, o médico sugere que a atenção aos testículos deve entrar na rotina de cuidados em relação à Covid-19, especialmente de pacientes que desejam ter filhos.

    “Fizemos exame físico testicular nos pacientes e nenhum deles tinha dor. Todos foram assintomáticos, os que tinham a inflamação e os que não tinham. Não se pode esperar a dor para procurar um médico”, ressalta.

    O tratamento da inflamação e da redução das taxas de testosterona varia de acordo com as condições clínicas de cada paciente.

    “A reposição de testosterona em um paciente já afetado vai inibir ainda mais a função testicular. Os testículos têm mecanismos de reparação para voltar a produzir hormônios e existem tratamentos medicamentosos que aumentam a produção natural dos hormônios esteroidais, restabelecendo progressivamente a função testicular intrínseca do indivíduo. Isso também vai depender se houve lesão às células de Leydig e em qual grau, que é algo que não sabemos ainda”, explica Jorge Hallak.

    Interação do vírus com uma enzima provoca lesão nos rins

    Uma pesquisa conduzida por especialistas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), publicada no periódico Frontiers in Physiology, mostrou que o SARS-CoV-2 também é capaz de provocar danos aos rins. O estudo de revisão fez um apanhado de diversos achados científicos que ajudam a explicar como o vírus pode levar a problemas graves no sistema renal.

    Os pesquisadores estimam que a chave pode estar na interação do vírus com uma importante enzima presente no organismo humano. Quando uma pessoa é infectada, o novo coronavírus precisa interagir com a enzima chamada “conversora de angiotensina 2” (ACE2, na sigla em inglês). Ela permite que o vírus entre nas células humanas e dê início ao processo de replicação, que é fundamental para o processo de infecção.

    “O receptor do vírus é uma proteína chamada ACE2. O vírus se liga nessa proteína para entrar na célula e causar a doença. Ela existe em grande quantidade nos rins, assim como existe em outros órgãos, como o pulmão e o coração. Essa proteína junto com outra enzima, chamada ACE1, agem de forma equilibrada nos rins para manter nossa pressão arterial”, explica a pesquisadora Dulce Elena Casarini, uma das autoras do estudo e professora da Unifesp.

    O que os pesquisadores da Unifesp descobriram é que essa enzima específica também é capaz de induzir um desequilíbrio em outros sistemas do organismo, incluindo o responsável por regular a pressão arterial (chamado renina-angiotensina) e outro que está envolvido em vários processos biológicos (chamado calicreína-cinina).

    Embora os nomes pareçam complicados, o resultado é simples: a enzima influencia nos processos de inflamação, controle da pressão sanguínea e proliferação celular. “O rim não elimina as substâncias que são tóxicas, vai aumentando a vasoconstrição [contração dos vasos sanguíneos] e sobrecarrega a função renal”, observa Dulce.

    Com essa informação, os cientistas compreenderam que o comprometimento das funções da enzima ACE2 pode reduzir o fluxo sanguíneo e a capacidade de filtração dos rins. A alteração da função renal pode dificultar a eliminação de substâncias que, em excesso, podem ser tóxicas para o organismo.

    Vírus invade as células do sistema nervoso

    Os impactos da Covid-19 para o cérebro têm sido amplamente estudados desde o início da pandemia. Estudos revelaram que o coronavírus é capaz de invadir as células do sistema nervoso e provocar danos ao órgão.

    Uma das pesquisas foi conduzida por especialistas brasileiros da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Instituto D’Or (Idor) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A partir da análise do tecido neural de um paciente que morreu de Covid-19, os pesquisadores descobriram que as células dos neurônios permitem a entrada do vírus.

    Embora o vírus consiga produzir o material genético dentro das células, ele não foi capaz de se replicar. Mesmo assim, a presença no tecido nervoso foi capaz de causar danos.

    Pesquisadores da USP vão investigar os possíveis danos do novo coronavírus ao cérebro humano. Para isso, será usada a tecnologia dos “minicérebros”, tecnicamente chamados de organoides cerebrais, que foram essenciais para as descobertas do impacto do vírus Zika nas malformações congênitas.

    Os experimentos serão conduzidos a partir de células-tronco pluripotentes induzidas (iPSC, na sigla em inglês), que podem ser manipuladas em laboratório para criar estruturas com funções semelhantes às do cérebro. A partir dessas estruturas, os pesquisadores vão poder simular o processo de infecção dos tecidos humanos e compreender melhor os mecanismos utilizados pelo vírus que podem ser nocivos.

    A resposta para os danos neurológicos também está na resposta inflamatória exacerbada. Um estudo publicado na revista científica “Cell” indicou a presença de moléculas inflamatórias no líquido cefalorraquidiano, um fluido presente ao redor do cérebro e da medula espinhal.

    As alterações podem estar relacionadas aos sintomas de confusão mental, perda de memória e dificuldades cognitivas vivenciados por pacientes com a Covid-19 longa.

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