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    Setembro Amarelo: estudos mostram índices de suicídio estáveis na pandemia

    Isolamento teve efeito 'protetivo', segundo especialistas ouvidos pela CNN Brasil

    Mônica Manircolaboração para a CNN , Em São Paulo

    Estudos publicados em 2021 sobre suicídio e coronavírus surpreenderam quem apostava que o primeiro dispararia em função da disseminação do segundo. De acordo com as pesquisas, não foi bem assim. O medo do contágio, o confinamento e as incertezas não levaram necessariamente a um maior número de mortes imputadas a si. Os suicídios, inclusive no Brasil, se mantiveram num patamar estável. Em alguns países, como a Austrália, até caíram.

    Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, divulgado em julho pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelam que o número de suicídios no Brasil em 2020 foi de 12.895, com variação de apenas 0,4% em relação a 2019, quando foram registrados 12.745 casos. Os estados que apresentaram maior número, repetindo o ano anterior, foram São Paulo, Minas Gerais e Porto Alegre, nessa ordem. A tendência no país é de alta: em 2012, foram 6.905 casos.

    “A pessoa numa crise suicida é altamente ambivalente e, em geral, não quer exatamente morrer, mas pôr fim a um sofrimento insuportável”, diz o psiquiatra José Manoel Bertolote. “Ao ser confrontada com uma ameaça concreta de morte, seu instinto de sobrevivência é mobilizado para lutar contra o novo inimigo”, acrescenta.

    No início da pandemia, Bertolote conta que alguns pacientes seus com ideação suicida insistiram no tratamento online porque não queriam se expor ao vírus. Preservaram-se do perigo iminente e desconhecido. Uma primeira questão que fica é o que pode acontecer quando esse inimigo sair do horizonte, mesmo que aos poucos.

    Bertolote, um dos idealizadores do Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio (10/9), que no Brasil deu origem ao Setembro Amarelo, está entre os que apostavam, com base em informações de situações críticas prévias semelhantes, que o aumento das taxas de suicídio no começo da pandemia era improvável. “Mas fiquei pregando no deserto”, afirma. “Mesmo depois de termos os resultados do estudo, várias pessoas resistiram em aceitá-los.”

    Ele se refere à pesquisa feita em 21 países sobre tendências de suicídio nos primeiros meses da pandemia publicada na Lancet Psychiatry em abril deste ano. Professor voluntário na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), coordenador da Rede de Proteção à Vida e responsável pela criação do Programa Global de Prevenção do Suicídio da Organização Mundial da Saúde (OMS), Bertolote se juntou a outros 69 pesquisadores nessa abordagem sobre o número de suicídios em 16 países de alta renda e cinco de renda média alta. Nestes últimos, incluíram o Brasil.

    O grupo de cientistas concluiu que não houve aumento nas taxas de suicídio no espectro estudado, com a ressalva de que não foi possível expandir a análise para países de renda média e baixa, pois a maioria deles não tem sistema de registro de óbitos de boa qualidade nem coleta de dados sobre essas mortes em tempo real.

    No próprio estudo, porém, os pesquisadores avaliam ser preciso atentar para o fator econômico. Lembram que muitos países promulgaram rapidamente iniciativas de apoio para amortecer as consequências econômicas da pandemia, mas que estas estariam sendo reduzidas ou retiradas em certas populações. À medida que o apoio expira, aqueles antes protegidos podem sofrer estresse crescente.

    Não ao reducionismo

    Em março deste ano, o presidente Jair Bolsonaro leu, em sua live semanal, uma carta de um suposto suicida. Queria atacar a indicação de isolamento social como medida de proteção contra o coronavírus. “Estamos tendo aí casos de suicídio pelo Brasil por causa do lockdown”, disse.

    Em seguida, seu filho Eduardo Bolsonaro, deputado federal, publicou nas redes sociais (e depois apagou) a foto do autor da suposta carta, contradizendo ambos as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para não sensacionalizar o tema nem divulgar mensagens de despedida, atitudes que podem levar ao efeito contágio, ou seja, de reprodução do ato.

    No início da pandemia, a suicidologista Karina Okajima Fukumitsu soltou uma nota de recomendação em que buscava desconstruir a associação imediata entre covid e suicídio. “Publicar notícias atrelando a contaminação pela Covid-19 ao suicídio é reducionismo”, escreveu.

    Ela destacava ser possível que algumas pessoas pudessem se sentir sozinhas, enquanto outras entenderiam que o tempo de reclusão era uma oportunidade para se organizarem. Apontava alguns sinais de alerta, como aumento do uso de álcool e outras drogas e tentativas prévias de suicídio, mas deixava explícito que o suicídio é multifatorial e a verdade vai embora com quem se matou. “Infelizmente, nunca saberemos os reais motivos.”

    Um ano e meio depois, ela avalia que alguns aspectos do confinamento em família, por exemplo, mostraram certo efeito protetivo. “Os processos autolesivos também não tiveram aumento nesse tempo, talvez porque os parentes e os pais estivessem mais presentes”.

    Autolesão ou automutilação, conhecidas por “cutting”, é uma prática de agredir o próprio corpo com cortes, batidas ou queimaduras em áreas nas quais as marcas podem ficar escondidas pela roupa ou por adereços, como braço, perna e abdômen. “Mesmo com brigas, houve mais vigília”, ressalta Fukumitsu, autora e organizadora de livros sobre o tema, entre eles “Sobreviventes Enlutados por Suicídio: Cuidados e Intervenções”, e coordenadora da pós-graduação em Suicidologia na Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Tentativas de suicídio, continua a psicóloga, também podem ter diminuído devido a esse cerceamento da intimidade.

    Ela se preocupa, porém, com a falsa calmaria do momento, e alerta para os que podem ter adoecido profundamente, mas permanecem em silêncio. “Uma pessoa que está em sofrimento intenso, se não explode em doença, pode implodir”, diz. Fukumitsu sugere uma ampliação dos cuidados e indicação de psicoterapia e psiquiatria inclusive no sentido da prevenção.

    CNN

    Ato radical

    A psicanalista Margareth Arilha, pesquisadora no Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (NEPO), na Unicamp, defende que o suicídio, além do aspecto psicopatológico ou de doença mental, próprio do universo médico, é um fenômeno social. “É um ato radical que expressa a impossibilidade de manutenção de uma vida de exclusão, seja do afeto na vida familiar, seja do convívio na vida social.”

    Arilha lembra que, se no início se tratava de uma crise sanitária de contenção, agora existem lutos para se lidar, seja pela perda de um ou mais integrantes da família, seja pela demolição de projetos de vida. Arilha pensa nos jovens, em suas carreiras indefinidas e em suas convivências presenciais interrompidas abruptamente: “Eles dizem ‘Minha vida só aconteceu em tela’”.

    A psicanalista critica ainda certa naturalização do sofrimento psíquico já antes da Covid-19, sofrimento que foi incrementado pela pandemia. E lança holofote sobre as mulheres: “Elas são gestoras da vida produtiva e reprodutiva em casa, cuidadoras de suas famílias e comunidades, atuantes em linhas de frente na educação e na saúde e vêm se deparando com uma carga adicional de angústias, muitas vezes sem espaço para serem expressadas.”

    Profissionais de saúde no limite

    No dia 26 de junho de 2020, última sexta-feira do mês, uma enfermeira do Quarteirão da Saúde, unidade hospitalar localizada em Diadema, na Grande São Paulo, foi encontrada morta no banheiro feminino da instituição. Ela tinha 37 anos e teria se suicidado com uma injeção intravenosa de medicamentos.

    A pediatra Mônica Guarnieri Machado, então diretora do centro de referência IST/HIV Hepatites Virais na unidade, estava no segundo andar do prédio e foi das primeiras a chegar ao local, guiada pelos gritos dos colegas. Acompanhou a impossibilidade de reanimação da enfermeira, mas também identificou de imediato a necessidade da posvenção, como é chamado o atendimento aos sobreviventes, aqueles que enfrentam o suicídio de uma pessoa próxima.

    Criou-se então um Comitê de Cuidado para essa acolhida, e 20 funcionários dos cerca de 300 que ali trabalham acorreram espontaneamente. “A primeira coisa que vem é a culpa”, diz Machado. A ideia era tentar minimizar o impacto, mas também prevenir outra tentativa ou ato extremo. Houve quem se afirmasse inclusive com ideação suicida há algum tempo.

    Nos dias seguintes, além de suporte espiritual ecumênico, instituíram-se rodas de conversa por grupos profissionais, que culminaram em um relatório entregue à gestão com a demanda de uma psicóloga institucional para ações preventivas, que foi incorporada à equipe. Juntaram-se a ela práticas integrativas, como meditação, ginástica laboral e prevenção de dores crônicas.

    “Os profissionais da linha de frente estão exauridos, sob um cansaço físico e mental enorme, alguns com o peso de ter levado o vírus para casa e contaminado familiares”, afirma Machado, recém-aposentada do serviço público e decidida a levar a prevenção ao suicídio nas escolas. “Trabalhei na Médicos sem Fronteiras e sei que, depois da guerra, aumenta a crise social. Temo que a pandemia seja parecida com a guerra. A gente precisa se antecipar para minimizar esse sofrimento.”

    Caso precise de ajuda ou informações, procure o Centro de Valorização da Vida (CVV), que dá apoio emocional e preventivo ao suicídio. Ligue para 188 (número gratuito) ou acesse www.cvv.org.br.

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