Em melhor cenário, temperatura global pode subir 1,5°C em duas décadas, diz IPCC
Especialistas ouvidos pela CNN concordam que o relatório do IPCC subiu o tom na atual edição com relação à gravidade da questão climática
Frio recorde no Brasil — e uma estiagem que já ameaça o fornecimento de energia elétrica. Inundações históricas em regiões da Europa. Incêndios florestais nos Estados Unidos. Onda de calor sem precedentes no Canadá. O relatório divulgado nesta segunda-feira (9) pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) é alarmante e traz o embasamento científico para os problemas ambientais cujos sintomas têm sido vistos, com cada vez mais recorrência, na prática: por conta da atividade humana, o mundo está a um passo de entrar em um colapso climático.
A temperatura média do planeta subiu 1,1 grau desde a segunda metade do século 19, com o advento da Revolução Industrial. E, no melhor dos cenários, deve alcançar 1,5 grau de aquecimento nas próximas duas décadas, apresenta o relatório.
O relatório do IPCC desenha 5 possíveis cenários para o futuro. São eles: SSP3 – 7,0 e SSP 5 – 8,5, cenários com altas emissões de gases de efeito estufa e CO2; SSP 2 – 4,5, cenário intermediário de emissões; e SSP 1 – 1,9 e SSP1 – 2,6, cenários com baixa emissão de gases de efeito estufa e CO2.
Na tabela abaixo, é possível ver as estimativas de aumento de temperatura de acordo com cada cenário.
Assim, nos cenários mais pessimistas (SSP3 – 7,0 e SSP 5 – 8,5), o aquecimento global no século 21 superaria 2°C em relação ao período de 1850-1900. No cenário intermediário (SSP 2 – 4,5), seria extremamente provável um aquecimento global de 2°C e, nos cenários otimistas (SSP 1 – 1,9 e SSP 1 – 2,6), seria improvável um aquecimento global de 2°C.
Tal projeção carrega várias consequências: com temperaturas mais altas, o ciclo da água ocorre de maneira mais intensa; assim, o tempo fica desregulado, com cada vez maior ocorrência dos chamados eventos adversos — de longas secas a enchentes pontuais, passando por temperaturas elevadas que trazem danos para a produção de alimentos e até mesmo para saúde humana.
Especialistas ouvidos pela CNN concordam que o relatório subiu o tom na atual edição com relação à gravidade da questão. A explicação principal é que, com o passar do tempo, a crise climática se torna cada vez mais severa, exigindo, portanto, uma linguagem mais direta e alarmista. Mas também pesaram outros dois fatores, um científico e um político.
“O texto é muito mais direto porque há maior certeza sobre a contribuição antropogênica sobre o aquecimento global. O relatório reflete a evolução dos modelos climáticos e o melhor histórico dos dados”, comenta Natalie Unterstell, presidente do think thank Talanoa, dedicado à política climática, e mestre em políticas públicas pela Universidade de Harvard.
Pesquisador no Instituto Ambiental de Estocolmo, o biólogo Mairon Bastos Lima atenta para o fato de que a palavra “human” aparece 42 vezes no texto divulgado pelo IPCC, “mais que o triplo do relatório anterior (12 vezes)”, dando uma amostra que o texto é muito mais categórico sobre a responsabilidade humana pelas mudanças climáticas.
“A ciência avançou muito nestes últimos sete anos [quando foi divulgado o relatório anterior]. 2013 parece quase a pré-história em termos de modelagem, computação de dados etc, que permitem associar a ação humana a uma apreciação cada vez mais detalhada nas mudanças do clima”, diz ele.
O aspecto político, segundo os especialistas, tem a ver com o negacionismo climático, ampliado com a ascensão ao poder de políticos considerados negacionistas, como o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e o atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. “Pode haver uma clareza no painel de que, diante de tanto negacionismo de lá para cá, é preciso ser nítido e categórico acerca de qual é a situação em que estamos”, pontua Lima.
“Os sinais [da crise climática] já tinham sido alertados no relatório anterior, mas parece que não foi suficiente. Este novo, reforça mensagem: não há mais espaço para o negacionismo”, define o engenheiro florestal Argemiro Teixeira Leite Filho, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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Ação humana
Para o diretor executivo do WWF-Brasil, o engenheiro florestal Mauricio Voivodic, o tom mais elevado se justifica porque “a janela de oportunidade para limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C [cenário otimista] está se fechando”. “Os alarmes já tocam há muito tempo e este relatório é um megafone”, ressalta ele. “Não há mais dúvidas de que o clima está mundo por conta da ação humana. Nós alteramos irreversivelmente o planeta.”
O relatório aponta, por exemplo, que em 2019 as concentrações de dióxido de carbono na atmosfera estiveram mais altas do que em qualquer momento dos últimos 2 milhões de anos. Considerando que o planeta — e os próprios seres vivos que nele habitam — passaram por muitas transformações no período, é inevitável concluir que esse tipo de cenário coloca em risco às próprias sobrevivências das espécies.
“Estamos caminhando para uma temperatura média que corresponde à que a Terra tinha há 3 milhões de anos — antes do australopiteco”, ilustra Lima. “Um ambiente muito diferente daquele em que a espécie humana surgiu, para não falar daquele em que as culturas humanas, os padrões de habitação, produção de alimentos se organizaram.”
Tanto organizações não-governamentais quanto cientistas da área concordam que esta década de 2020 será crucial para conter a crise climática. Em comunicado divulgado à imprensa, a diretora de Clima da WRI Brasil, Carolina Genin, ressaltou que “temos 10 anos críticos diante de nós para conter o aumento da temperatura média da Terra” e lembrou que o Brasil tem papel importante esse contexto e precisa “acelerar a transição de sua economia para um modelo bem menos dependente de combustíveis fósseis”.
Referência mundial no tema, o físico Paulo Artaxo, pesquisador na Universidade de São Paulo, ressalta que, ao quantificar os eventos climáticos extremos, o relatório “coloca de maneira mais forte a urgência de reduzir emissões se não quisermos atingir pontos de não retorno, irreversíveis, no sistema climático global.”
O fenômeno tende a se tornar mais nocivo para quem vive nas grandes cidades. “O aquecimento induzido pelo homem e pela urbanização provoca ondas de calor mais frequentes, o que pode superlotar hospitais, por exemplo”, pontua Leite Filho. Estudo recém-publicado mostra que o aquecimento global já causa 37% das mortes por calor no planeta.
Um outro problema a ser enfrentado será a produção de alimentos. O relatório indica que as regiões tropicais, onde é produzida a maior parte das commodities alimentícias globais são as mais suscetíveis aos efeitos do desarranjo climático, enfrentando estiagens e oscilações bruscas de temperatura, além de maior incidência de fenômenos como ciclones. “O relatório é democrático: mostra que não se trata de um problema isolado, de um só país, mas sim que todos nós iremos sofrer por conta dos eventos extremos”, pontua Leite Filho.
COP 26 em novembro
Os pontos trazidos pelo IPCC devem nortear os debates e as conclusões da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021, a COP 26, que acontece em Glasgow de 31 de outubro a 12 de novembro.
“O IPCC manda uma mensagem muito clara para a COP 26: temos de reduzir emissões da maneira mais forte e mais rápida possível, não podemos mais atrasar a implementação de políticas públicas urgentes de redução de emissões. Os países desenvolvidos vão ter de reduzir sua queima de combustíveis fósseis e o Brasil vai ter de implementar políticas de redução de desmatamento, já que esses dois fatores são os dois maiores impactantes do sistema climático global”, afirma Artaxo.
Nesse sentido, apesar do viés alarmista e, em muitos aspectos, desalentador do relatório, o IPCC cumpre o papel de apresentar perspectivas. “Cada ação que fizermos pode implicar em diferença para o futuro. E um futuro com 1,5°C a mais será melhor do que um futuro com 2°C a mais”, afirma a engenheira ambiental Rafaela Flach, pesquisadora da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, comparando os cenários otimista e pessimista. “Nunca é tarde. Tudo o que fizermos importa.”
Finalizado em reunião on-line ocorrida na última sexta-feira (6), este é o sexto relatório do IPCC, organismo criado em 1988 pela Organização Meteorológica Mundial em conjunto com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. O IPCC não produz ciência — sua função é consolidar o conhecimento científico recentemente produzido, em um só documento. Participaram da elaboração do relatório divulgado hoje, de 42 páginas, 234 cientistas de 66 países — que também receberam contribuições de 517 outros pesquisadores. No total, mais de 14 mil referências acadêmicas foram citadas.
Em nota enviada à CNN, o Ministério de Minas e Energia informou que “as instituições do setor energético continuam trabalhando, incessantemente, para o provimento da segurança energética no ano que se deflagrou a pior hidrologia de toda a série histórica de 91 anos.”
“Não obstante, considerando que a questão hidrológica afeta outros usos dos recursos hídricos, assim como o meio ambiente, foi criada a Câmara de Regras Excepcionais de Gestão hidroenergética – CREG onde são discutidas as medidas e ações a serem tomadas, em especial aquelas que visam à melhor gestão dos recursos hídricos, têm sido também discutidas na Sala de Situação do Governo Federal com os diversos órgãos da administração pública. Isso é importante para que haja sinergia, tempestividade e segurança jurídica nas respostas”, diz trecho da nota.
Segundo a pasta, as medidas adotadas pelo setor elétrico visam “passar o período seco de 2021 sem impor aos brasileiros um programa de racionamento de energia elétrica”. “O MME reitera, desta forma, com transparência, que este é o momento em que cada um tem que fazer a sua parte, governo e sociedade, buscando o uso racional dos recursos hídricos e da energia elétrica, permitindo que todos nós passemos por esta conjuntura crítica com serenidade e sem alarmismos”, diz a pasta.
Em nota sobre o relatório do IPCC divulgado nesta segunda-feira (09/08), o Ministério do Meio Ambiente (MMA) informou que: “O compromisso brasileiro é uma meta percentual de redução de emissões frente ao ano base de 2005 e, por ser de longo prazo, não foi e não deve ser alterada a cada revisão metodológica. Ela é uma das mais ambiciosas entre os países em desenvolvimento, por abarcar a economia como um todo e apresentar metas intermediárias”.