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    Cinemateca em chamas: qual o melhor modelo de gestão na cultura

    Especialistas debatem participação de organizações sociais no comando de equipamentos culturais depois de incêndio no maior acervo de cinema da América Latina 

    João Luiz Sampaio, colaboração para a CNN

    O incêndio que atingiu um galpão da Cinemateca Brasileira na zona oeste de São Paulo na noite de quinta-feira (29) reativou o debate em torno do modelo de gestão da entidade, que guarda o maior acervo da América Latina dedicado ao cinema. Há um ano, ela vinha sendo administrada diretamente pelo governo federal. Na manhã de sexta-feira (30), a Secretaria Especial de Cultura publicou um edital para a escolha de uma organização da sociedade civil que ficará responsável por cuidar do espaço.

    A gestão da Cinemateca era feita pela Associação de Comunicação Recreativa Roquette Pinto (Acerp), organização social baseada no Rio de Janeiro que já fazia a gestão da TV Escola para o governo federal, desde 2018. O contrato se encerrou no final de 2019 e não foi renovado. Em agosto de 2020, todos os funcionários ligados à Acerp foram demitidos e o governo federal retomou a gestão, prometendo o lançamento de um novo edital para escolha de uma nova entidade gestora – o que só aconteceu na manhã seguinte ao incêndio. 

    A demora na publicação das regras para o processo vinha sendo criticada pelo setor audiovisual. Como revelou a CNN, o Ministério Público Federal chegou a questionar o que chamou de “estrangulamento financeiro e abandono administrativo” da instituição e alertou o governo, em audiência no dia 20 de julho, da possibilidade de incêndio nas instalações da Cinemateca.

    Procurados pela reportagem, o Ministério do Turismo e a Secretaria Especial de Cultura não responderam. Em sua página no Twitter, o secretário Mário Frias responsabilizou “a herança petista” pelo incêndio. Em maio do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro anunciou o nome de Regina Duarte para a direção da Cinemateca – ela não assumiu o posto e nenhum outro nome foi indicado para a função.

    Especialistas se dividem sobre qual modelo de gestão é mais eficiente e adequado para a Cinemateca e outros equipamentos culturais. “O modelo de gestão é central no que aconteceu”, diz o pesquisador e professor da Universidade de São Paulo (USP) Carlos Augusto Calil, presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca. “Escolher uma organização social não vai resolver o problema. A Cinemateca precisa ser reestatizada, precisam ser realizados concursos para a contratação de pessoal especializado.”

    O grupo Trabalhadores da Cinemateca Brasileira, que inclui funcionários demitidos pelo governo federal em agosto do ano passado, também questionou o edital. “O incêndio da noite de ontem é mais um motivo pelo qual não podemos esperar para dar um basta à política de terra arrasada e de apagamento da memória nacional”, afirmaram em comunicado divulgado na manhã de sexta-feira, no qual reclamam da “falta de transparência” na condução do processo. “O modelo proposto não dá conta da complexidade de um órgão desse porte”, completa o texto. 

    Professora de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas, Regina Silvia Pacheco discorda. “Em quarenta anos de pesquisas e trabalhos sobre administração pública, eu posso afirmar com toda a certeza que não existe gestão eficiente na cultura por meio de administração direta. Falar em reestatizar é um retrocesso”, diz. 

    Ela lembra que o Museu Nacional, que pegou fogo em 2018 no Rio de Janeiro, é administrado diretamente pelo estado. Outros incidentes, como os incêndios no Teatro Cultura Artística, em 2008; no Museu da Língua Portuguesa, em 2015; e no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2017, aconteceram em instituições com diferentes formas de gestão. “O problema não está no modelo, mas no modo como a gestão é feita, na atenção que de fato se dá a ela.”

    O papel das organizações sociais

    A gestão cultural por meio de organizações sociais é um fenômeno relativamente recente no Brasil. O modelo tornou-se alternativa à gestão por meio de administração direta, no qual os governos federal, estadual e municipal são responsáveis por administrar museus, orquestras, teatros, com funcionários estatutários contratados por meio de concursos públicos. 

    “A administração direta gerava uma série de problemas, que tornava impossível planejar a longo prazo, estabelecer parcerias, solidificar as instituições”, explica Claudia Toni, especialista em políticas públicas, ex-diretora da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo e assessora especial da Reitoria da Universidade de São Paulo.

    Uma das questões era a burocracia para contratar artistas sem a necessidade de uma concorrência pública. “Para você contratar a pianista Magda Tagliaferro, uma das maiores do mundo, para tocar com a orquestra do Teatro Municipal de São Paulo, você precisava de um documento de cem páginas, com um parecer de um promotor autorizando a escolha. Isso valia para cada coreógrafo, regente ou solista que você chamava para a temporada”, conta ela, que trabalhou nos anos 1970 no teatro. “E não havia como montar equipe profissional com vereadores pedindo que se encontrasse um cargo para alguém.”

    O modelo também gerava desvios para o preenchimento de vagas abertas por conta da aposentadoria de artistas estatutários. Sem a realização de novos concursos, contratos provisórios acabavam sendo firmados, gerando problemas legais. O caso mais recente se deu no ano passado em Goiânia, com os artistas da Filarmônica de Goiás, grupo ligado ao governo do estado. A justiça determinou que os contratos provisórios não poderiam ser renovados e a orquestra deixou de existir durante seis meses. No Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2016, mais de 1/3 dos funcionários trabalhavam com contratos provisórios à espera de efetivação. 

    Segundo Pacheco, uma mudança significativa se deu no final dos anos 1980. “Na Inglaterra, surgiu a noção de gestão pública de desempenho, com foco nos resultados. A ideia era a de que não cabe ao Estado apenas impor e garantir o cumprimento das leis, mas também entregar à sociedade, ao público, resultados eficientes”, explica.

    Em 1998, a Lei Federal 9.637 instituiu no Brasil o modelo de gestão por meio de parcerias entre o poder público e organizações sociais. No mesmo ano, o estado de São Paulo regulamentou a prática; o mesmo fez a prefeitura, em 2006. Em 2004, a Pinacoteca do Estado de São Paulo foi a primeira instituição cultural a ser gerida a partir do novo modelo, seguida pelo Projeto Guri e pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. 

    Hoje, ele é utilizado em diversas entidades: a Escola de Música do Estado de São Paulo, o Festival de Inverno de Campos do Jordão, o Teatro Sérgio Cardoso, o Conservatório de Tatuí e a São Paulo Companhia de Dança. 

    O modelo de organizações sociais prevê um contrato de gestão entre o poder público e uma organização da sociedade civil. “O Estado determina as diretrizes do trabalho, estabelece conjuntos de metas e resultados de acordo com a sua política cultural. E a organização social coloca o trabalho em prática. O contrato prevê claramente as obrigações de ambas as partes”, explica Paulo Zuben, presidente da Abraosc, associação que une as organizações que trabalham com cultura no Brasil.

    Para Zuben, as organizações sociais oferecem maior agilidade ao trabalho. “A organização social tem mais agilidade, eficiência, seja na condução do dia a dia do trabalho como na contratação de artistas. E a autonomia de gestão impede que escolhas políticas interfiram no processo. Você consegue, com a OS, mais resultados com o mesmo investimento e tem a possibilidade de obter recursos complementares por meio de patrocínio, o que seria impossível na administração direta.”

    Não se trata, porém, de um modelo unânime. Fora de São Paulo, ele está presente em algumas instituições em estados como Minas Gerais (Filarmônica de Minas), Rio de Janeiro (Museu de Arte do Rio), Ceará (Centro Cultural Dragão do Mar), mas ainda é pouco utilizado. Há dois anos, professores das escolas municipais de música e bailado da cidade de São Paulo reagiram à tentativa implementação desta forma de gestão. Eles se colocaram contra o que chamaram de privatização das escolas e, na Câmara Municipal, conseguiram barrar a extinção da fundação pública que hoje faz a gestão.

    Museu de Arte do Rio
    Museu de Arte do Rio também usa o modelo de gestão com organização social
    Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

     “A ideia de que o modelo de organizações sociais significa privatização ou terceirização precisa ser deixada de lado de uma vez por todas”, diz Zuben. “Uma OS é uma instituição sem fins lucrativos. E nada pertence a ela. Se você faz a gestão de um museu, esse museu não passa a ser seu, ele continua pertencendo ao estado. E, além disso, o estado tem sobre a organização social uma série de mecanismos de controle para fiscalizar e gerenciar os resultados do trabalho.”

    Claudia Toni acredita que a resistência tem a ver também com corporativismo. “É um período que pode ser traumático, doloroso, quando você transforma por exemplo os contratos de artistas ou funcionários estatutários em contratos via CLT. É preciso que o gestor tenha coragem para enfrentar esse desafio.”

    Os riscos de ingerência política

    Calil afirma que, desde 2013, a Cinemateca Brasileira tornou-se palco para disputas políticas de grupos ligados às gestões no governo federal, com interferências no conselho de administração. “A Cinemateca não existe para produzir, mas para preservar. Ela tem que estar ligada ao Instituo Brasileiro de Museus ou a Instituto de Patrimônio Histórico Nacional. Com a devolução dela ao estado poderão ser contratados funcionários especializados, que possam trabalhar com estabilidade, longe de interferências políticas”, afirma.

    Para Toni, a estrutura das secretarias de cultura deve ser composta de funcionários públicos, pois a elas cabem a formulação de políticas públicas. “Mas a execução das políticas pode ser feita por profissionais do ramo, contratados pelas organizações sociais. Essa tem sido a grande contribuição do modelo de OSs, permitir a profissionalização do setor cultural, evidente nos últimos anos.”

    Pacheco concorda. E vai além.  Para a professora, é justamente o modelo proposto por Calil que pode levar a interferências políticas. “Não há como manter um trabalho estável de longo prazo com mudanças políticas que acontecem o tempo todo”, diz. “A estabilidade se dá por meio de um contrato de gestão transparente, com durações de quatro, cinco anos e que sobrevivem às alternâncias no poder”, afirma. 

    O edital lançado na sexta-feira afirma que a nova gestora será escolhida até o final de outubro e terá como responsabilidades cuidar da “preservação, documentação e difusão do acervo audiovisual da produção nacional por meio da gestão, operação e manutenção da Cinemateca Brasileira.” Contará para isso com uma verba de R$ 10 milhões, valor cerca de 20% menor do que os R$ 12,2 milhões previstos para 2021.

    Mariana Chiesa, doutora em direito pela USP, sócia da Manesco Advocacia e especialista em gestão pública explica que o edital lançado pelo governo federal na sexta-feira terá que ser repensado. “Não há como manter o que ali está colocado após o incêndio. O edital prevê as verbas que serão repassadas, que precisam dar conta da manutenção da instituição. E, agora, no mínimo será preciso considerar o custo que a reforma do prédio, o resgate e recuperação do acervo e sua catalogação vão ter, o que não estava previsto anteriormente.”

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