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    Rabos de cavalo e sorrisos: linguagem difusa mantém sexismo nas Olimpíadas

    Comitê Olímpico Internacional (COI) incentivou emissoras a colocarem igualdade de gênero na cobertura dos Jogos de Tóquio, mas ainda há muito a ser feito

    Kara Fox, da CNN

    Quando Rebecca Smith parou para assistir a Nova Zelândia jogar contra a seleção dos Estados Unidos de futebol feminino durante a Olimpíada de 2020, na semana passada, ela ficou chocada – e não apenas por causa do incrível talento das atletas.

    Em Londres, um comentarista da TV britânica não parava de chamar uma atacante norte-americana pelo nome errado. A cobertura do jogo da Grã-Bretanha contra a Holanda também causou desânimo: um comentarista errou os nomes de duas jogadoras e parecia estar supondo que Phil Neville ainda era o técnico britânico – ele deixou o time em janeiro.

    Para Smith, uma ex-jogadora de futebol que esteve em duas olimpíadas e foi capitã da seleção da Nova Zelândia, ouvir os comentários das Football Ferns (apelido da seleção neozelandesa) jogando contra a USWNT (sigla da seleção dos EUA) foi como entrar em um túnel do tempo. Afinal, isso aconteceu com ela e suas companheiras de time ao longo de toda a sua carreira.

    “Não houve nenhum momento na minha carreira em que eu senti que o esquadrão da mídia estivesse de fato interessado no jogo, acompanhasse o esporte ou soubesse muito sobre ele”, desabafou à CNN.

    Ver que alguns comentaristas ainda não fizeram o “mínimo absoluto” – ou seja, aprender o nome de uma atleta olímpica – “basicamente reforça o estereótipo de que ninguém está assistindo, ninguém se preocupa com o futebol feminino ou com as atletas mulheres”, disse.

    Revirando os olhos

    Acadêmicos que estudam a interseção de gênero e esporte destacam o fato de que os comentaristas continuam a usar a palavra “meninas” para descrever atletas de elite do sexo feminino, independentemente de sua idade, enquanto raramente se referem aos atletas masculinos como “meninos”.

    Janet Fink, especialista em marketing de atletas e esportes femininos e reitora associada da Universidade de Massachusetts Amherst, disse à CNN que era difícil entender como em pleno 2021 alguém “pode chamar uma atleta de renome mundial de menina”.

    “Seria cômico se simplesmente isso fosse invertido e a gente ouvisse um comentarista chamando (um atleta masculino) de menino”, afirmou.

    A professora Fink acrescentou acreditar que esse tipo de linguagem tem um impacto sobre como as pessoas percebem as atletas mulheres, mas que não está claro como essa linguagem afeta a forma como as próprias atletas se veem.

    Ela disse: “Acho que elas provavelmente reviram os olhos muitas vezes ao ouvir alguns desses comentaristas”.

    Ainda assim, a visibilidade e o interesse pelo esporte feminino continuam a crescer, com ex e atuais atletas frequentemente desempenhando um papel significativo na elevação do status da mulher no esporte, de acordo com Smith.

    Um estudo de 2018 da Nielsen Sports descobriu que o volume da cobertura da mídia sobre os esportes femininos na Europa variou de 2% a apenas 12% nos horários de pico; já durante olimpíadas, o quadro é mais equilibrado em termos de competição. 

    O número recorde de atletas do sexo feminino participando da Olimpíada de Tóquio pode sinalizar mais um indicador dessa progressão. Mas a desigualdade de gênero ainda existe nos Jogos, tendo como forças motrizes a infantilização e a sexualização de mulheres atletas.

    Elisabeth Seitz, ginasta alemã
    Elisabeth Seitz, ginasta alemã que participa do movimento pela liberdade de escolha dos uniformes
    Foto: Ezra Shaw/Getty Images

    Smith lembra de outro jogo de futebol olímpico na semana passada, onde o rabo de cavalo “loiro e esvoaçante” de uma atleta do Time da Grã-Bretanha foi o assunto de comentários, ou como um comentarista masculino analisou o “lindo sorriso” de uma jogadora de rúgbi de sete.

    Antes dos Jogos de 2020, o Comitê Olímpico Internacional (COI) divulgou novas diretrizes para a mídia contra essa cobertura, incentivando as emissoras a colocar a igualdade de gênero na vanguarda da cobertura, a evitar a sexualização das mulheres e a tratar todos os atletas com integridade, em vez de se concentrar “desnecessariamente na aparência, roupas ou partes íntimas do corpo”.

    Mas a nova conselheira de igualdade de gênero do COI, a ex-nadadora olímpica Naoko Imoto, disse que o próprio país anfitrião, Japão, estava falhando nesse aspecto.

    Na semana passada, ela criticou a cobertura de seu país natal, dizendo que as emissoras japonesas continuam a usar a palavra “meninas”, “esposas” ou “mães” ao descrever as atletas, em vez de se concentrar neles como “somente atletas”.

    “Mais rápido x grávida”

    Essa é uma linguagem que os pesquisadores da Universidade de Cambridge identificaram como consistente com o jornalismo esportivo.

    Em um estudo de 2016, os pesquisadores descobriram que os homens são mencionados quase três vezes mais frequentemente do que as mulheres em reportagens esportivas em geral, com a linguagem em torno das atletas focando desproporcionalmente na estética e na vida pessoal.

    Com base em um banco de dados de vários bilhões de palavras em inglês escritas e faladas de uma ampla gama de fontes de mídia, o estudo descobriu que os homens são vistos como tendo uma vantagem competitiva no esporte, com atletas do sexo masculino associados às palavras “mais rápido”, “forte”, “vencer”, “derrotar” e “dominar”.

    Enquanto isso, as atletas femininas foram associadas às palavras “idosa”, “grávida”, “casada”, “competir”, “participar” e “empenhar-se”. Os pesquisadores se basearam nos mesmos dados para analisar como essas associações de palavras aconteceram nas Olimpíadas do Rio, em 2016.

    Embora tenham descoberto uma certa melhora na linguagem, com o uso do termo neutro de gênero “esportista” usado com maior frequência em comparação com a linguagem dos esportes em geral, os esportes masculinos ainda recebiam 20% a mais de tempo de transmissão nos Jogos.

    A cultura desempenha um papel.

    A professora Toni Bruce, especialista em sociologia do esporte da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, disse à CNN: “Acho que a mídia esportiva reflete a sociedade. Assim, à medida que a sociedade muda, a mídia esportiva o faz também, mas muitas vezes ela está atrás da mudança, e não necessariamente liderando”.

    A Nova Zelândia é um bom exemplo de mudança social abrindo caminho para a cobertura do esporte, explicou a professora, observando que os 12 canais que fazem a cobertura olímpica em 2021 são geralmente bons com a terminologia de gênero neutro – com comentaristas usando palavras como “força” e “habilidade” ao falar sobre as mulheres.

    O compromisso estrutural da Nova Zelândia com a paridade de gênero apoia a mudança da linguagem, já que o país ocupa o quarto lugar em igualdade de gênero, de acordo com o Índice do Fórum Econômico Mundial de 2021.

    “Hoje sentimos que há uma espécie de energia na Nova Zelândia em torno da igualdade de gênero e de garantir que façamos o melhor trabalho e não caiamos nessa velha linguagem ao falar sobre atletas mulheres”, afirmou a professora Bruce.

    Um progresso significativo pode surgir quando há um compromisso real com a igualdade de gênero e o crescimento do esporte feminino, juntamente com o aumento da diversidade de pessoas que comentam, escrevem ou são responsáveis pela cobertura de notícias.

    Ainda assim, ela reconheceu que a Nova Zelândia provavelmente está em um “lugar diferente como nação em comparação com alguns dos outros países”.

    A ex-jogadora Rebecca Smith, que atuou 74 vezes pela Nova Zelândia e cuja carreira internacional de futebol de dez anos a levou a clubes nos Estados Unidos, Alemanha, Suécia e Suíça, concorda plenamente.

    Segundo ela, na Alemanha, a mídia continuou a perpetuar estereótipos prejudiciais das jogadoras de futebol, mesmo depois de a seleção do país conquistar três vezes o campeonato europeu.

    Mas, em lugares como os EUA (onde o Título IX, a lei histórica de igualdade de gênero aprovada como parte das Emendas de Educação de 1972 proibiu a discriminação sexual em programas de educação financiados pelo governo federal) ou na Suécia (onde a igualdade de gênero em cenários sócio-políticos e econômicos é robusta), a linguagem em torno das mulheres no esporte parece estar muito mais concentrada em termos como “capacidade atlética” e “força”.

    A ex-jogadora analisa a difícil história da Inglaterra com o futebol feminino, explicando que, embora afirme ser o berço do esporte, o país proibiu as mulheres de jogar em 1921 – uma medida que durou 50 anos.

    “Acho que isso realmente as deixou para trás, tanto no desempenho quanto na quantidade de atletas”, disse Smith. “Assim como nos comentários e em como eles olham para as atletas e mulheres.”

    Ela acrescentou que essas práticas ainda prevalecem, apontando para o fato de que as estudantes ainda não conseguem jogar ou ter as mesmas oportunidades de jogar futebol que os alunos do sexo masculino – sendo que muitas são incentivadas a jogar netball, um esporte parecido com o basquete que é mais popular entre mulheres na Europa e Oceania. 

    A natureza segregada do esporte foi observada no estudo de Cambridge de 2016, que descobriu que o único contexto em que as mulheres são mais mencionadas nas reportagens é para delinear seus esportes como “outros” – o que significa que o esporte masculino costuma ser considerado a norma.

    Basquete, golfe, futebol e ciclismo costumam ser chamados apenas por seus nomes, enquanto as equipes femininas serão marcadas como “basquete feminino, golfe feminino, futebol feminino”.

    Kyoung-yim Kim, professora assistente de Prática de Ciências Sociais no Boston College, nos EUA, explica que, em última análise, esses problemas derivam de uma “estrutura segregada por sexo” que é “baseada na compreensão sexista das diferenças de gênero”.

    “É essa compreensão de gênero que causa essa cobertura problemática da mídia tratando as mulheres como meninas”, disse Kim, acrescentando que a infantilização e “enquadramento ambivalente das conquistas das mulheres” no esporte deriva de nossa compreensão social de gênero.

    Segundo ela, para mudar essa linguagem, todo o sistema deve ser contestado. Os jogos de Tóquio 2020 incluíram 18 eventos mistos.

    Jogos de 2020 incluíram 18 provas mistas, como o revezamento 4x400m
    Olimpíadas 2020 incluíram 18 provas mistas, como o revezamento 4x400m, vencido pela equipe da Polônia
    Foto: Charlie Riedel – 30.jun.2021/AP

    Mas Kim sugere que o COI tem mais trabalho a fazer. Ela lembra que não há uma delegação de terceiro gênero ou intersexo e menciona também a regulamentação contínua da participação das mulheres no esporte por meio de “testes sexuais” – práticas que os defensores dos direitos humanos, incluindo a Human Rights Watch, dizem violar os direitos fundamentais à privacidade e à dignidade.

    “O COI e toda a sua estrutura esportiva, basicamente, reproduz e incorpora as formas binarizadas e hierárquicas de gênero”, pontuou a professora.

    “Se eles querem contestar esta linguagem sexista e hierárquica, então deveria se discutir, pelo menos, como o COI pode ser uma instituição de linha de frente no pensamento crítico do binarismo na estrutura do esporte como um todo.”

    O COI disse à CNN que está “comprometido com a inclusão em todo o Movimento Olímpico e reconhece que todos os atletas, independentemente de sua identidade de gênero ou características sexuais, devem se engajar em uma competição segura e justa”, e que a orientação atual sobre a qualificação para competição do sexo masculino e feminino (lançada em 2015) está atualmente em revisão.

    “Reconhecendo que há uma tensão percebida entre justiça/segurança e inclusão/não discriminação, e em consideração aos últimos desenvolvimentos em muitas frentes, o COI decidiu em outubro de 2019 trabalhar em uma nova abordagem abrangente e respeitadora de direitos para abordar a complexidade desta questão”.

    “Atualmente, o COI está desenvolvendo novas orientações para ajudar a garantir que atletas – independentemente de sua identidade de gênero e/ou características sexuais – possam participar de uma competição segura e justa”, disse a organização.

    muito debate no momento sobre a inclusão de atletas transgêneros nos Jogos, com o COI dizendo que revisará as diretrizes para atletas trans após os Jogos de Tóquio.

    “Não estou totalmente alheia à polêmica que cerca minha participação nesses Jogos”, disse a halterofilista neozelandesa Laurel Hubbard, que se tornou a primeira mulher transgênero a competir nos 125 anos de história das Olimpíadas na segunda-feira (2).

    “E, como tal, gostaria de agradecer particularmente ao COI por realmente afirmar seu compromisso com os princípios do Olimpismo e estabelecer que o esporte é algo para todas as pessoas. É inclusivo, acessível”.

    Para a ex-jogadora de futebol Smith, que agora trabalha como consultora, existem passos claros que podemos seguir para impulsionar essa mudança, incluindo incentivar ex-atletas que podem usar sua experiência e autoridade para funções de comentarista, bem como investir em mais mulheres (e diversificação de talentos) no nível executivo.

    Sem esse compromisso, o ciclo continuará, com a próxima geração não atingindo todo o seu potencial.

    “Se estamos constantemente transmitindo mensagens que não são iguais em gênero, que são racistas ou homofóbicas ou não inclusivas, então estamos criando uma geração que será ignorante e não inclusiva – e não seremos a melhor forma da raça humana que podemos ser”, disse Smith.

    (Texto traduzido; leia o original em inglês)

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