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    Como ‘Pátria e Vida’ se tornou o hino dos protestos contra o governo em Cuba

    Canção critica as tentativas do governo cubano de censurar artistas e a crise econômica do país que deixa parte da população sem acesso a itens essenciais

    Manifestantes protestam contra o governo cubano em Havana
    Manifestantes protestam contra o governo cubano em Havana Foto: REUTERS/Alexandre Meneghini

    Scottie Andrew, da CNN

    “Pátria ou Morte”. É uma frase estampada em pesos cubanos, frequentemente invocada pelo antigo líder Fidel Castro no alvorecer da revolução comunista do país.

    Agora, o conhecido ditado tem sido utilizado como hino de protesto “Pátria e Vida” (Patria y Vida), uma canção subversiva de alguns dos músicos mais populares de Cuba que critica a repressão social e uma grave crise econômica no país.

    “Não gritemos mais ‘pátria e morte’, mas sim ‘pátria e vida’”, cantam os artistas Yotuel, Descemer Bueno e a dupla de reggaeton Gente de Zona, entre outros. “Que o sangue não continue a correr por querer pensar diferente . Quem te disse que Cuba te pertence se a minha Cuba pertence a todo o meu povo?”.

    Os manifestantes antigovernamentais cubanos adotaram a canção como seu mantra. A música pode ser uma ferramenta poderosa de protesto, e “Pátria e Vida” é talvez o mais próximo, que nenhuma música na história cubana moderna chegou, de inspirar uma resposta tão massiva.

    A CNN conversou com pesquisadores especializados em história cubana e música de protesto latino-americana sobre o que torna a música tão poderosa e por que os protestos que a têm como trilha sonora são diferentes de tudo que o país viu em décadas.

    Os ingredientes de uma ótima canção de protesto

    Existem alguns ingredientes comuns que os poderosos hinos de protesto compartilham, disse Christina Azahar, etnomusicóloga da Universidade da Califórnia em Berkeley, que estuda música latino-americana.

    Música de protesto significativa denuncia atos injustos. Ela pede uma ação política direta e fornece um relato alternativo da história da perspectiva dos grupos marginalizados, disse. Ajuda se a música usar metáforas e alegorias para espalhar sua mensagem, de modo que não seja censurada ou enterrada, e comove as pessoas de alguma forma. Uma ótima música de protesto cria um senso de comunidade entre seus ouvintes.

    “Pátria e Vida” se encaixa nesses pontos, porque: critica as tentativas do governo cubano de censurar artistas e detratores que se opõem às suas políticas, bem como a crise econômica que está deixando grande parte do país sem um fornecimento constante de alimentos, renda e medicamentos. Isso inspirou manifestantes de todos os cantos da sociedade cubana a se rebelar contra o governo, protestar nas ruas e arriscar a prisão por expressar sua oposição. Também não faz mal o fato de ser uma faixa dançante de reggae, disse Azahar.

    Música e arte permitem que movimentos sociais imaginem o mundo que [os manifestantes] querem viver, seja validando ou desenvolvendo um senso de identidade ou história compartilhada, ou imaginando futuras formas de coexistência, disse Azahar à CNN por e-mail. “Entre os grupos que sofreram constante desumanização e tiveram seus direitos civis básicos negados, encontrar alegria coletiva e dignidade por meio da música é uma forma poderosa de protesto”.

    É uma nova versão de uma conhecida frase cubana

    A frase “pátria ou morte” evoca fortes lembranças nos cubanos que cresceram com ela. Ela se originou na revolução comunista de Cuba em 1959, quando o falecido Castro pediu aos cubanos que “sacrificassem seus meios de subsistência e até suas vidas” a serviço da revolução, disse Azahar. A frase ainda é de uso comum hoje.

    “‘Pátria e Vida’ critica e retrabalha este lema nacional pedindo aos cubanos que imaginem uma forma de autogoverno baseada não na austeridade e homogeneidade, mas na sustentação da vida de todas as pessoas, não apenas da elite política”, afirmou.

    A frase define um período da história cubana que muitos lembram como marcado pelo sofrimento e dificuldades econômicas, contra o qual os manifestantes antigovernamentais continuam a se protestar hoje, disse Lillian Guerra, professora da Universidade da Flórida, que estuda a história de Cuba.

    Ao fazer uma alusão a “pátria ou à morte” em sua canção, disse Guerra, os artistas responsáveis por “Pátria e Vida” “deram forma e paixão ao que os cubanos desejam: a soberania de seu país e sua capacidade de prosperar, crescer, viver”.

    Foi lançada na hora certa

    “Pátria e Vida” foi lançada em fevereiro, poucos meses antes das frustrações com a escassez de alimentos e medicamentos no país, os problemas agravados pela pandemia de Covid-19 e as sanções dos Estados Unidos a Cuba chegarem ao seu apogeu.

    O sentimento de “Pátria e Vida” – de que os artistas amam muito seu país, mas não suportam ver seus compatriotas lutando para comer, trabalhar e sobreviver – atingiu os cubanos. E embora Yotuel Romero, um dos principais artistas da música, tenha dito em uma entrevista à Billboard em fevereiro que a música foi rapidamente criticada pelo governo, ela recebeu mais de 2 milhões de visualizações no mês em que seu vídeo foi lançado. O conteúdo já foi visto mais de 7 milhões de vezes no YouTube.

    “Os cubanos têm uma visão política clara do que está errado e nunca tiveram como fazer nada a respeito. Eles ainda não têm. Por isso foram às ruas”, disse Guerra. “Eles perderam o medo que os dominava, que dizia a cada um deles que não podiam desafiar o sistema porque o fariam sozinhos e pagariam o preço. Agora eles veem que não estão sozinhos e sentem o poder dessa solidariedade, aquele orgulho de ser a verdadeira nação”.

    “Pátria e Vida” colocou essas queixas e demandas na música.

    Os cantores pertencem a um movimento de artistas e ativistas

    Romero, Bueno e os cantores do Gente de Zona, Alexander Delgado e Randy Malcom, são membros do Movimento San Isidro, um coletivo de artistas criado em 2018 para protestar contra a crescente censura cultural do regime, disse Azahar.

    Sua participação no Movimento San Isidro “quase certamente ajudou a dar autenticidade à mensagem de ‘Pátria e Vida'”, disse Azahar.

    O movimento surgiu em oposição ao Decreto 349, lei que proíbe os artistas de se apresentarem em espaços públicos ou privados sem a aprovação do Ministério da Cultura do governo cubano, segundo a Anistia Internacional, organização que luta contra as violações dos direitos humanos.

    “Esses músicos-intelectuais deram voz aos sentimentos da maioria dos cubanos”, disse Guerra.

    A Anistia Internacional, juntamente com os artistas que integram o Movimento San Isidro, afirmam que o decreto pode limitar a liberdade artística dos artistas cubanos e a possibilidade das pessoas participarem na troca de ideias.

    Em “Pátria e Vida”, os artistas criticam as tentativas do governo cubano de limitar a expressão artística, disse Azahar.

    “Somos a dignidade de todo um povo pisoteado”, canta Bueno, “sob a mira de uma arma e de palavras que ainda não são nada.

    Também é importante notar, disse Azahar, que o Movimento San Isidro e a popularidade dos artistas envolvidos ajudaram a canção a disparar nas redes sociais, o que por sua vez ajudou a amplificar as vozes dos manifestantes em todo o país e no mundo.

    Os intérpretes são cubanos negros

    Também é significativo que a canção tocada pelos manifestantes antigovernamentais seja executada por um grupo que inclui homens afro-cubanos.

    Durante anos, Cuba foi considerada “uma aliada dos direitos dos negros em todo o mundo”, observou Azahar, desde o envio de tropas para ajudar várias nações africanas em conflitos nas décadas de 1960 e 1970 até a concessão de asilo aos radicais negros dos Estados Unidos, a era dos direitos civis. Mas os cubanos negros continuam enfrentando racismo e assédio moral em seu país, inclusive de seu governo, disse Azahar.

    Enquanto os artistas por trás de “Pátria e Vida” cantam sobre experiências com as quais esperam que a maioria dos cubanos possa se identificar, eles sabiam desde cedo como os recursos escassos podem devastar comunidades. Os artistas cresceram em bairros de baixa renda em todo o país, relatou o Miami Herald em fevereiro.

    Bueno disse ao Miami Herald em fevereiro que “sempre pensou que o impulso [para mudanças em Cuba] viria das pessoas mais ressentidas. Sempre se soube que nos bairros pobres vivemos com o mínimo”.

    “Pátria e Vida” foi adotada por manifestantes antigovernamentais de diferentes origens raciais e socioeconômicas em Cuba. Sua popularidade revela um “senso de solidariedade entre os ouvintes que se identificam com as críticas da música à hipocrisia do governo em relação à igualdade racial e socioeconômica”, disse Azahar.

    Os protestos em Cuba são os maiores em décadas

    Guerra disse que os protestos mais recentes são eventos “históricos sem precedentes” devido à sua escala, impulso sustentado e a atenção que atraíram internacionalmente. Alguns manifestantes estão se protestando contra as recentes dificuldades econômicas, mas outros estão usando os protestos para pedir mais liberdade.

    “Os cubanos estão cansados de não poder mudar seus caminhos, de não poder dizer que nada no Estado está funcionando, de não poder controlar nenhum aspecto de suas vidas”, disse.

    Bueno repetiu essa afirmação em sua entrevista ao Miami Herald, chamando a miríade de crises que o país enfrenta em 2021 de “o momento que muitas pessoas como eu sempre esperaram”, o momento em que saíram às ruas para fazer ouvir suas vozes.

    Guerra disse acreditar que “o movimento vai ganhar em número e credibilidade, mesmo que seja reprimido por meio de prisões e repressão”.

    Resta saber se “Pátria e Vida” continuará a ser a trilha sonora de futuras manifestações, mas fala tanto a décadas de oposição a um governo que os manifestantes consideram opressor quanto aos acontecimentos específicos de 2021 que levaram os cubanos às ruas em grande escala.

    Texto traduzido, leia o original em espanhol.