Imposto sobre grandes fortunas já tem 37 projetos parados no Congresso
Destes, 18 foram apresentados apenas no último ano, após o início da pandemia. Tributo está previsto na Constituição, mas nunca foi criado
Trata-se de um assunto que está há 33 anos – a idade da Constituição Federal – na gaveta, mas que, nos últimos meses, passou a aparecer com frequência cada vez maior no debate nacional: a taxação de grandes fortunas.
O aumento crescente da desigualdade no mundo na última década, coroado por um estrago monstruoso feito nas contas de todos os países pelos gastos vultuosos de socorro à pandemia de coronavírus, é o responsável por reaquecer o assunto tabu, tanto no Brasil quanto no mundo.
Aqui, a implementação de um imposto sobre grandes fortunas, ou IGF, está prevista na Constituição de 1988. Ele é mencionado junto a seis outros tributos que, pela Carta, deveriam ser regulamentados e definidos depois: o imposto sobre importações, exportações, renda (IR), produtos industrializados (IPI), operações financeiras (IOF) e propriedade rural (ITR).
Todos os seis receberam suas próprias regras e estão por aí sendo aplicados – menos o imposto sobre fortunas, que nunca foi regulamentado e, por isso, segue até hoje sem existir no país.
37 projetos parados
Não é, no entanto, por falta de tentativa. Levantamento feito pelo CNN Business contou ao menos 37 projetos sobre o assunto que já foram apresentados na Câmara dos Deputados ou no Senado, propondo os termos para a criação do imposto sobre grandes fortunas no país, desde 2008; nenhum deles com grandes avanços (veja a lista completa ao fim).
Com os estragos da Covid-19, a corrida ficou especialmente aquecida: 18 deles, a metade do total, chegaram aos parlamentares de março do ano passado, primeiro mês completo da pandemia no Brasil, para cá. Os autores vêm de uma miríade de partidos que vai do PSOL e do PT até PSDB, DEM e PSL.
O primeiro desses projetos (PLP 277/2008), apresentado na Câmara ainda em 2008 pela então deputada pelo PSOL Luciana Genro, já passou por todas as comissões necessárias e está pronto há anos para ser votado em Plenário, junto a 30 outros textos sobre o mesmo tema que vieram depois (só na Câmara) e que foram sendo anexados a ele, o que permite que todos sejam apreciados de uma vez. Segue até hoje, porém, sem ter sido colocado em votação.
No Senado, nenhum dos cinco já protocolados desde 2015 saiu ainda das primeiras comissões, que são os grupos temáticos onde os projetos são debatidos e aprimorados antes de seguirem para a votação final.
O Supremo Tribunal Federal (STF) também chegou a prometer que tiraria o pó de uma ação levada à Corte pelo PSOL em 2019, acusando o Congresso de omissão por nunca ter levando adiante a regulamentação do IGF que a Constituição exige. O julgamento chegou a entrar para a pauta do plenário no mês passado, mas foi adiado sem nova previsão de data.
R$ 40 bi e menos de 1% da população
No geral, as proposições falam de alíquotas que variam de 0,3% a 5%, aplicadas progressivamente (ficam maiores conforma a riqueza), e só para patrimônios bem longe da esmagadora maioria dos brasileiros: nas propostas, os pisos em investimentos e bens para começar a ser contribuinte do IGF vão de R$ 2 milhões (caso do PLP 277/2008, do PSOL; ou do PLP 335/2015, do PMDB) até mais de R$ 50 milhões (como no PLS 315/2015, do PT, ou no PLP 190/2020, do PSL). Os recortes propostos não chegariam a 1% da população.
Grande parte das propostas exclui da conta do patrimônio bens como o imóvel de residência da família ou equipamentos e espaços usados para trabalho. Em muitas delas, é considerado também para a aplicação do tributo apenas o patrimônio líquido, isto é, o valor de todos os bens já descontado dos valores das dívidas da pessoa.
Em alguns, em especial os mais recentes, elaborados durante a pandemia, a proposta é de um imposto temporário sobre essas fortunas. Foi o caso do projeto apresentado em março do ano passado (PLC 38/2020) pelo senador José Reguffe (Podemos/DF), que falava em cobrar 0,5% sobre patrimônios superiores a R$ 55 milhões apenas enquanto dure o estado de calamidade pública.
A arrecadação com o novo tributo poderia alcançar até os R$ 40 bilhões anuais – é esta a estimativa, por exemplo, de projeto de abril do ano passado do deputado Celso Sabino (PSDB/PA), que foi baseado em estudos feitos pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco) e outras entidades do setor.
O texto (PLP 88/2020) estipula cobranças de 1% a 3% aplicadas sobre patrimônios superiores a R$ 20 milhões, o que, de acordo com os autores, corresponderia a 0,1% dos brasileiros.
A fuga de Depardieu e uma polêmica histórica
Sendo um imposto que mais de 99% das pessoas não pagariam, não é difícil encontrar apoiadores para ele. Uma pesquisa encomendada em 2019 pelo jornal The New York Times mostrou que 66% dos americanos apoiavam criar uma taxação sobre a fortuna dos ultra-ricos. No Reino Unido, pesquisa do ano passado mostrou que o tributo nas fortunas era o favorito de 54% dos britânicos no caso de um aumento de impostos no país.
Mesmo assim, não é só no Brasil que a ideia tem dificuldade em virar realidade. Na OCDE, o grupo das economias mais desenvolvidos, a aplicação de um imposto sobre as grandes fortunas perde espaço há décadas: ele chegou a existir em 12 países do bloco nos anos de 1990, mas, em 2018, esse número tinha caído para quatro: Suíça, Espanha, França e Noruega.
O principal argumento contra a taxação é que, apesar de bem intencionado, o imposto é muito pouco efetivo: os ricos vão embora com o que podem para outros países. O argumento ganhou uma ilustração definitiva depois que o ator francês Gérard Depardieu mudou sua residência para a Bélgica para fugir do aumento de imposto sobre os mais ricos feito na França em 2012.
A pessoa não consegue levar a mansão, mas consegue transferir para outro país os chamados ativos móveis, em geral os investimentos financeiros e que são uma parte grande desses patrimônios.
Manoel Pires, pesquisador associado em economia aplicada da Fundação Getulio Vargas
Além disso, trata-se também de um processo custoso para o Fisco – já que a tarefa de atualizar e fiscalizar anualmente o valor de todos os bens é complexa – e que dá um retorno relativamente pequeno para o calvário que cria.
“Em geral, os países que adotam um imposto sobre fortuna arrecadam de 0,4% a 0,5% do PIB”, disse Manoel Pires, que já fez dois estudos sobre os impactos do IGF no mundo desde que o tema voltou à tona no ano passado. “Não é um potencial alto, mas ajuda.”
Conta da pandemia e imposto temporário
A pandemia, porém, causou uma grande reviravolta no debate global sobre tributação e, em especial, sobre a tributação dos ultra-ricos, cujos bilhões cresceram ainda mais durante esta que foi uma das piores recessões globais desde o pós-guerra dos anos de 1940.
O resultado é que o debate sobre o imposto sobre fortunas saiu da dormência em que estava acomodado e voltou com fôlego em vários lugares do mundo. “Os governos gastaram muito com a pandemia e a discussão sobre como financiar todo esse endividamento obviamente veio junto”, conta Pires.
Na América do Sul, Argentina e Bolívia abriram os trabalhos ao aprovarem, no final do ano passado, a tributação dos multimilionários de seu país. No Reino Unido, foi criada também em 2020 uma comissão formada por algumas das principais universidades do país (Wealth Tax Comission) para investigar os possíveis efeitos de um imposto sobre as grandes fortunas para cobrir o rombo deixado pelos gastos com a Covid-19.
A conclusão foi que um imposto temporário, cobrado das pessoas do topo uma única vez, em parcelas fracionadas ao longo de cinco anos, seria mais eficiente do que tornar a tributação anual.
“Diferentemente de aumentar impostos no trabalho ou no consumo, uma cobrança única de imposto sobre fortunas não desestimula a atividade econômica”, disseram os autores do estudo. “Uma cobrança única também não pode ser burlada por emigração ou transferência de capital para o exterior.”
Imposto global
Em outra seara, foi também a pandemia que precipitou em poucos meses uma medida quase utópica que se arrastava há anos: a criação de um imposto global mínimo para as multinacionais gigantes, que passaram as últimas décadas se aproveitando de paraísos fiscais para mudar suas sedes de lugar e pagar menos impostos.
Isto, diz Pires, abre um novo compartimento de debate aos argumentos já sacramentados contra a implementação do imposto sobre as fortunas pessoais.
Se foi possível criar um imposto global para evitar o planejamento tributário das empresas, pode também começar a haver uma discussão coordenada sobre as fortunas: à medida que todos os países tenham algum imposto para elas, não sobraria mais nenhuma opção de para onde fugir.
Manoel Pires, da FGV