‘Fui voluntária nos testes clínicos da Janssen e já estou vacinada’
Jornalista conta como foi participar do ensaio clínico do imunizante que chegou ao Brasil nesta terça-feira (22)
Tenho orgulho de dizer que fiz parte da equipe mundial que ajudou a encontrar uma vacina de dose única com 85,4% de eficácia para casos graves de Covid-19. Tive a sorte de ser selecionada para o Ensaio Clínico Randomizado (ECR) da Janssen no Brasil.
Geralmente, um teste clínico passa por diversas etapas. Uma delas é tentar selecionar uma parcela da população que seja significativa, com o mesmo número de jovens, idosos, pessoas com ou sem comorbidades, homens, mulheres. Quanto mais variados são os grupos, os resultados dos testes darão o número que mais se aproxima da realidade. E é ele que irá definir se vale a pena fabricar o medicamento avaliado.
Após a convocação dos selecionados – foram cerca de 45 mil pessoas em 213 locações (EUA, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru, África do Sul), passamos por uma triagem inicial de quase quatro horas.
É feita uma anamnese, exame clínico que leva em conta todos os sinais vitais de um paciente, em mínimos detalhes. Tiram nosso sangue, nos dão um “kit” contendo termômetro, oxímetro e instrumentos necessários para colher material do nariz, caso sintamos algo como febre ou falta de ar, o que sinaliza a suspeita da doença. Depois disso, vem a injeção.
Nem eu, nem a enfermeira, nem a funcionária que registra tudo no computador sabíamos se aquela injeção era a vacina ou placebo (substância que não tem nenhum efeito). O “cegamento” é um procedimento essencial para um bom ensaio clínico. A maneira de tratar o paciente pode ser diferente se o pesquisador souber se ele foi medicado ou não.
O próprio paciente vai ter um comportamento influenciado pelo fato de saber se tomou ou não determinado remédio para uma dor ou desconforto. No caso da vacina, uma pessoa ciente de que foi imunizada pode ter atitudes que a coloquem em risco bem maior de contrair a doença. E o efeito placebo pode chegar a até 30%, o que significa que o nosso comportamento psicológico diante de uma medicação é fator determinante.
Depois que os voluntários recebem a injeção com vacina ou placebo, entram em cena a ciência e a estatística: a comparação entre dois grupos grandes e heterogêneos, com jovens, velhos, mulheres, homens, hipertensos, diabéticos, para saber em qual dos grupos houve mais gente que contraiu a Covid-19.
Com esses números, calculados em uma amostra significativa da população de várias partes do mundo, será possível estimar o impacto que aquele medicamento terá na população geral. Isso se chama evidência científica. E é a partir daí que tudo começa.
Acompanhamento médico presencial e por aplicativo
Após a picada, os pesquisadores nos instruem a baixar um aplicativo no celular, chamado Study Hub. Toda semana, às segundas e quintas-feiras, o próprio aplicativo manda uma mensagem pedindo para que atualizemos nossos sintomas.
Confesso que no dia seguinte à aplicação tive uma certa indisposição, muito suave, do tipo dor de cabeça e corpo dolorido. Mas eu não podia ter certeza de que tinha tomado vacina ou placebo. Todos sabem que mal-estar e dor de cabeça leve são sintomas quase diários para pessoas que vivem nessa loucura chamada trabalho, casa, filhos e pandemia.
Ao longo dos meses, duas vezes por semana, o aplicativo deve ser acionado. Isso tudo é acompanhado por uma central de informações. Os trabalhadores envolvidos, como enfermeiros, médicos e técnicos de administração de dados, geralmente, estão vinculados a universidades ou centros de pesquisa. No meu caso, a equipe de profissionais é ligada à USCS (Universidade de São Caetano do Sul).
Além de reportar pelo aplicativo o estado de saúde duas vezes por semana, é preciso agendar uma visita com os pesquisadores todos os meses. De novembro de 2020 a abril de 2021, eu ia mensalmente ao Hospital São Caetano, tirava sangue, respondia a um questionário, recebia 50 reais para auxílio-transporte – o que é normal para voluntários de ensaios clínicos – e voltava para casa.
Os questionários são muito complexos: o voluntário precisa reportar todos os meses absolutamente tudo: se mudou de emprego, se está trabalhando presencialmente, se foi ao cinema no último mês, se mudou de casa, com quantas pessoas mora, se usa transporte coletivo, se convive mais com jovens ou idosos e até com quantas pessoas interage diariamente.
Tudo isso conta para cada paciente na hora de transformar informações em números e fazer um cálculo de relação de causa e efeito entre os dados fornecidos e os resultados encontrados.
Intercorrência incomum
No meio do caminho, aconteceu comigo uma intercorrência pouco comum. Levei um tombo cinematográfico da escada da minha casa, quebrei 4 vértebras, bati a cabeça e abri um rasgo de 10 pontos na parte de trás do crânio. Em atendimento no hospital, um dos exames de tomografia detectou um aneurisma na parte esquerda do cérebro.
Pelo tamanho e formato do edema, o neurocirurgião recomendou cirurgia imediata. Tudo transcorreu perfeitamente, e depois de 14 dias de internação meu cérebro já estava novo em folha. Resta somente uma pequena paralisia na parte esquerda do rosto, que vai se normalizando ao longo do tempo.
O fato é que essa intercorrência, como qualquer outra, tem de ser avisada para os pesquisadores. Por conta da cirurgia e do aneurisma, os médicos responsáveis e o hospital onde fiquei internada foram obrigados a mandar absolutamente todas as informações sobre minha estadia no hospital: desde o tombo, passando pela morfina que tomei, os medicamentos administrados e suas respectivas doses, resultados de exames etc.
Todas as pesquisas de ensaios clínicos sérios devem “anotar” tudo o que acontece com os pacientes. Caso os números – e somente eles – demonstrem associações significativas (existe um cálculo matemático para isso) entre o medicamento e as intercorrências, pode haver a suspeita sobre uma possível associação entre a substância testada e a possibilidade da existência de um fator de causa e efeito, o tal “efeito colateral”.
Nesse caso, é normal que o ensaio tenha uma pausa para que os pesquisadores façam contas. Quando a suspeita é descartada, geralmente o trabalho é reiniciado em alguns dias. Caso essa relação de causa e efeito tenha um número e um peso que possam interferir na segurança dos pacientes, o estudo é interrompido.
E ainda: caso os resultados entre o grupo “intervenção” (que tomou o medicamento) e o grupo “controle” (que tomou placebo) tenham números muito parecidos, ou “perto da linha de nulidade”, o estudo é interrompido, simplesmente porque não vale mais a pena investir para que seja estudado com mais profundidade.
Tudo isso para dizer que o aneurisma não teve nada a ver com a vacina. Foi, provavelmente, causado pela queda ou simplesmente já estava lá para ser descoberto a tempo de não romper.
Mistério esclarecido
Em março deste ano, ao fim dos estudos, o mistério da dose que recebi em novembro de 2020 foi desvendado. Em mais uma visita ao território Janssen, soube que havia tomado a vacina mesmo. E ganhei de brinde uma sacolinha e uma carteirinha de vacinação que só ganha quem participou do consórcio “Ensemble”, responsável pela pesquisa em todo o mundo.
Quem recebeu placebo lá no início dos testes tomou a vacina assim que os computadores revelaram em qual dos grupos eles estavam.
Muita gente me chamou de “corajosa”, “heroína”, “mulher maravilha” por ter entrado como voluntária em um ensaio clínico. Que nada. Quanto mais gente participar desses testes e levá-los a sério (sem abandoná-los, por exemplo), mais a ciência conseguirá probabilidades positivas da eficácia e eficiência de remédios, vacinas, intervenções não invasivas e, acima de tudo, melhorar da qualidade de vida.
Seja bem-vinda ao Brasil, Janssen. Sejam bem-vindas todas as vacinas bem elaboradas, bem testadas e principalmente aprovadas por órgãos competentes de avaliação clínica em todo o mundo. Elas representam um alento para barrar várias doenças. E a Covid-19 é, sem dúvida, a que mais nos preocupa no momento.