Visita do papa ao Iraque dá ânimo à sofrida comunidade cristã do país
Apesar de ser considerada a viagem mais perigosa de Francisco até agora, Vaticano diz que agenda representa 'um ato de amor' do pontífice ao que necessitam dele
Frequentador da igreja de Bagdá onde trabalha como zelador, Natiq Anwar revive a mais terrível experiência de sua vida todos os dias.
Perto do banco onde este homem de 66 anos está sentado, alguns azulejos em vermelho escuro marcam os lugares onde fiéis e clérigos morreram há 10 anos.
A sacristia, a minúscula sala ao lado do altar, está repleta de más lembranças. Dezenas de fiéis buscaram refúgio ali enquanto terroristas sitiavam a igreja. Muitos foram mortos a tiros ou por granadas, deixando marcas de mãos manchadas de sangue nas paredes. Natiq, sua esposa e filho estavam entre os sitiados.
Hoje, a Igreja Nossa Senhora da Salvação está adornada com os nomes gravados daqueles que foram assassinados naquele dia: 51 fiéis e dois padres. O ataque deixou Anwar parcialmente cego, com o braço direito gravemente ferido.
Com os olhos semicerrados, ele olha para uma nova adição à igreja: um trono branco, posicionado abaixo de uma imponente colagem dos mártires da paróquia. O papa Francisco deve fazer um discurso neste local quando chegar ao Iraque na sexta-feira (5).
“Estou absolutamente feliz. Estou muito, muito feliz”, disse Anwar sobre a visita. Apesar de suas palavras efusivas, o zelador parece um pouco perplexo. “Quero dizer a ele para cuidar de nós, porque o estado não cuida da gente.”
Mas Anwar não estará entre a pequena reunião de membros da igreja para saudar o pontífice durante sua visita histórica. Por causa da pandemia, as multidões estão sendo mantidas afastadas.
Em vez disso, a visita papal, uma excursão de quatro dias a seis cidades pelo país, será limitada a um punhado de pequenas reuniões e visitas a locais ligados à Bíblia.
A grande maioria dos cristãos iraquianos assistirá à viagem – a primeira de um pontífice ao Iraque – pela televisão. Um toque de recolher completo será imposto durante a viagem.
As medidas rigorosas foram tomadas para mitigar os riscos da visita, que é considerada a viagem mais perigosa de Francisco até agora, tanto por causa do aumento nacional de casos de coronavírus quanto por causa da escalada da violência no país devastado pela guerra.
“A vinda do papa Francisco ao Iraque destaca a importância de nosso país para os fiéis de todo o mundo”, disse um membro do alto escalão do gabinete do presidente. “É também uma afirmação do apoio do Papa à paz no Iraque, um testemunho da reverência dos cristãos iraquianos.
“Esta visita vem em um momento desafiador para o Iraque, mas estamos tomando todas as precauções necessárias contra o coronavírus”, disse a fonte. Esperava-se que a viagem, anunciada em dezembro passado, fosse cancelada.
No final de janeiro, dois ataques suicidas simultâneos reivindicados pelo Estado Islâmico abalaram um movimentado mercado de Bagdá. Ataques de foguetes de grupos armados apoiados pelo Irã visando posições dos EUA no país tornaram-se mais frequentes. Além disso, apenas três dias antes da chegada do papa, foguetes atingiram uma base aérea que abrigava as tropas norte-americanas.
O aumento da pandemia de Covid-19 no país também continua inabalável: no final de semana passado, o próprio enviado do Vaticano ao Iraque, Mitja Leskovar, testou positivo para o vírus. Mesmo assim, o papa insiste que não decepcionará os iraquianos.
No final de uma audiência geral na quarta-feira (3), o pontífice não fez menção à deterioração da situação de segurança no Iraque, mas disse: “Faz algum tempo que quero encontrar as pessoas que sofreram tanto e encontrar aquela Igreja martirizada. O povo do Iraque está esperando por nós. Eles esperaram por São João Paulo II, que não teve permissão para ir”, disse ele, referindo-se a uma viagem planejada em 2000, que foi cancelada após uma ruptura nas negociações entre o Vaticano e o então presidente iraquiano, Saddam Hussein.
“O povo não pode ser decepcionado uma segunda vez. Rezemos para que esta viagem seja bem realizada”. O Vaticano chamou a viagem de “um ato de amor”.
“Todas as precauções foram tomadas do ponto de vista da saúde”, disse o porta-voz do Vaticano Matteo Bruni a jornalistas em uma entrevista coletiva na terça-feira (2). “A melhor forma de interpretar a viagem é como um ato de amor: é um gesto de amor do papa às pessoas desta terra que precisam recebê-lo.”
A mensagem soa verdadeira para muitos iraquianos.
Além da igreja de Nossa Senhora da Salvação, o papa Francisco deve visitar vários outros locais associados a algumas das piores tragédias do Iraque em suas décadas de turbulência, incluindo Mosul, a maior cidade ocupada e devastada pelo grupo terrorista Estado Islâmico (EI).
O pontífice também terá uma reunião em uma catedral na cidade de Qaraqosh, no norte do país, de maioria cristã. O EI converteu o pátio da Igreja da Imaculada Conceição em um campo de tiro, incendiando a igreja, escurecendo o interior e destruindo suas estátuas.
Além disso, os terroristas empilharam as Bíblias, livros e cadernos de orações da igreja e os incendiaram. Uma grande mancha escura no pátio ainda é visível, marcando o local onde tudo foi queimado.
Os cristãos do Iraque desejam que o pontífice cuide de suas feridas. Mas eles também esperam que a viagem destaque a situação de sua comunidade cada vez menor. Antes da invasão dos Estados Unidos em 2003, havia 1,5 milhão de cristãos no país. Desde então, cerca de 80% deles fugiram do Iraque, de acordo com os principais clérigos cristãos de lá.
Outras minorias que contribuíram para a diversidade outrora deslumbrante do Iraque também estão desaparecendo rapidamente, incluindo mandeístas (seguidores de crenças monoteístas pré-islâmicas) e iazidis, que suportaram o peso dos horrores do EI durante o reinado de terror do grupo extremista durante anos no norte do Iraque.
“O que me assusta é que durante este período ninguém perguntou o que nós perdemos”, disse à CNN Bashar Warda, arcebispo caldeu da cidade de Erbil, no norte do país. “Temos um número decrescente de mandeístas e agora os iazidis, os cristãos. Eles não se importam com isso”, afirmou, referindo-se à elite política em Bagdá. “Como eles não se importaram quando perdemos a comunidade judaica nos anos 40, 50 e 60. E este ciclo continua.”
Sabah Zeitoun mudou-se para a Suécia, hoje lar de uma grande comunidade cristã árabe, cerca de 21 anos atrás. De volta a Erbil para uma visita, ele estendeu sua estada para estar aqui para a passagem do papa.
Para Zeitoun, de 65 anos, aqueles que deixam o país não voltam mais. “Acho que ninguém vai voltar da Europa”, disse. “Isso seria difícil.”
Zeitoun serviu como soldado por oito anos durante a guerra Irã-Iraque na década de 1980. Ele foi enviado ao Kuwait durante a invasão do país pelo ex-presidente iraquiano Saddam Hussein.
Ao voltar, abriu uma loja de bebidas em Mosul. Em 2000, ele disse que foi preso e detido por três dias porque manteve sua loja aberta cinco minutos além do horário de fechamento legalmente sancionado pelo país. Foi nesse momento que ele decidiu deixar o Iraque.
“Uma missão de paz”
Em um café movimentado de Bagdá, um jovem engenheiro e um cientista político estão envolvidos em uma discussão séria sobre a visita do papa. A conversa entre os dois jovens muçulmanos xiitas começou como uma piada sobre o bloqueio de três dias, mas rapidamente evoluiu para um debate sobre as implicações regionais da viagem.
“As pessoas, tanto cristãos quanto muçulmanos, olham para o papa como um homem de paz”, disse o cientista político Mumen Tariq, de 30 anos. “Esta visita dá ao Iraque um novo papel no cenário mundial”.
Há uma esperança surpreendente em sua visão da situação política do Iraque. “A visita do papa ocorre em um momento muito importante”, afirmou o engenheiro Mohammed Al-Khadayyar. “Ele vem sobre o túmulo do EI, e esperamos que isso marque o início da página da paz. Ele vai nos empurrar para nos afastarmos das falhas regionais e para um lugar de moderação.”
Estamos prontos para passar três dias, uma semana, dez dias ou mesmo um mês em confinamento se a missão do papa for de paz
Mumen Tariq, cientista político iraquiano
De volta à Igreja da Salvação, um pequeno grupo de fiéis decora a manjedoura do pátio em preparação para a visita. Duas mulheres xiitas com véu pedem para entrar na igreja, mas são impedidas por motivos de segurança. O diácono Louis Climis explica que os muçulmanos vêm regularmente aqui para orar.
Uma freira lamenta que o papa não esteja programado para visitar um pequeno museu montado nos aposentos da igreja para lembrar o massacre, mas o restante dos fiéis tem esperança de uma próxima visita.
“Nós, cristãos iraquianos, queremos dizer ao papa que estamos doentes e precisamos de remédios”, explicou o diácono Climis, que também sobreviveu ao massacre. “Precisamos de orientação porque estamos em uma selva, um bosque governado por monstros políticos.”
O massacre aprofundou a fé cristã do zelador Anwar, mas corroeu aquela que depositava nas autoridades iraquianas.
Durante anos, ele compilou documentos solicitando indenização do governo por seus ferimentos, já que teve que desistir de sua carreira como carpinteiro após o ataque. Até que um dia desistiu de buscar a reparação do governo.
“Juntei os papéis em uma pilha e os mergulhei com álcool”, disse Anwar, reencenando a cena com as mãos. “E então coloquei fogo.”
Delia Gallagher, Arwa Damon e Aqeel Najm, da CNN, contribuíram para esta reportagem.
(Texto traduzido; leia o original em inglês)