O papel dos EUA como líder global quase chegou ao fim no mandato de Trump
Por mais de sete décadas, os americanos agiram como a polícia do mundo e como campeões morais. Mas a administração de Trump desafiou o espírito de cooperação
Ninguém esperava que os Estados Unidos durassem tanto tempo como líderes mundiais. Por mais de sete décadas, os americanos apoiaram a “ordem baseada em regras”, agindo como a polícia do mundo e como o campeão moral.
Até que, nos últimos quatro anos, a administração de Donald Trump — sob o lema “América Primeiro” — de forma mais agressiva do que qualquer presidente antes dele. Um por um, ele abandonou acordos e instituições multilaterais criados por seus antecessores. Seu namoro com líderes fortes permitiu que os autocratas explorassem este momento extraordinário para promover seus próprios interesses e reverter as liberdades democráticas em seus países.
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O que se viu, no entanto, é que os instrumentos globais abandonados por Trump não desmoronaram. Os líderes que ganharam força também receberam mais contestações. E os velhos aliados dos EUA não caíram nos braços da China, como temiam muitos analistas.
Em vez disso, o mundo está se adaptando a essa nova configuração, remodelando suas instituições. Quanto à China, a maioria dos países está encontrando maneiras de equilibrar suas relações com Pequim, tanto como aliados quanto como opositores.
Essa mudança demorou muito para acontecer. Enquanto estrategistas dos EUA acreditam que a liderança americana poderia se manter indefinidamente, a maioria dos especialistas em relações internacionais concorda que modelos unipolares inevitavelmente chegam ao fim, à medida que outras potências se erguem e desafiam sua primazia.
Os EUA provaram seu domínio com a vitória na Guerra Fria, uma consolidação de poder que os especialistas descreveram como “momento unipolar” — momento esse que já dura 30 anos.
Houve sinais claros nas últimas duas décadas, no entanto, de que os americanos estão cansados ??de desempenhar esse papel, ao mesmo tempo que grande parte do mundo está ansioso para entrar em seu lugar.
A Alemanha, por exemplo, está se lançando como líder global em saúde. Mesmo antes da pandemia, a chanceler alemã, Angela Merkel, já tinha colocado o tema na agenda das reuniões do G20, quando o governo Trump deu sinais de recuo da cooperação internacional. A Alemanha aumentou o financiamento em pesquisa e desenvolvimento em saúde e até estendeu o tratamento contra Covid-19 a pacientes de países vizinhos, no início do surto europeu. Isso foi possível, porque seus hospitais são muito bem equipados para enfrentar momentos de crise.
Enquanto os Estados Unidos tentavam liderar reformas na Organização Mundial da Saúde — antes de abandonar de vez o organismo internacional –, Merkel e o presidente francês Emmanuel Macron propunham um plano alternativo. A Alemanha prometeu uma contribuição extra de 200 milhões de euros (ou US$ 234,1 milhões) à OMS neste ano, perfazendo um total de 500 milhões de euros, para ajudar a preencher a lacuna deixada pelos EUA, tradicionalmente o maior doador da organização.
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Não é o único. No mês passado, o Reino Unido anunciou que aumentaria o financiamento à OMS em 30% nos próximos quatro anos, o que o tornaria o maior doador, caso os EUA decidisse realmente ficar de fora. Até a China sucumbiu à pressão internacional para fornecer recursos à resposta global e prometeu financiamento adicional, assim como França, Finlândia e Irlanda, entre outros.
Não está claro se esses países serão capazes de compensar o déficit provocado pela saída dos EUA, mas é um bom começo.
Merkel — frequentemente descrita como a “anti-Trump” do mundo — disse em maio que queria que a União Europeia assumisse mais responsabilidade global pela pandemia e que o bloco tivesse uma voz mais poderosa em geral sobre os valores da “democracia, liberdade e a proteção da dignidade humana “, descrevendo a cooperação com os EUA como” mais difícil do que gostaríamos “. Ela disse ainda que viu a liderança de seu país como uma oportunidade para ser uma “âncora de estabilidade” no mundo que poderia moldar mudanças e assumir a responsabilidade pela paz global e segurança.
“Sendo um projeto entre Estados individuais, a União Europeia é inerentemente um defensor da cooperação multilateral baseada em regras. Isso é mais verdadeiro do que nunca na crise”, disse Merkel.
Macron também tentou se apresentar como o próximo líder do mundo livre nos primeiros dias da presidência de Trump. Sua campanha perdeu força, mas ele ainda costuma bancar o defensor democrático no vácuo dos EUA, ao confrontar o presidente da Rússia, Vladimir Putin, sobre o seu papel no conflito sírio e nas mortes de LGBTSQ+ em seu país.
Embora haja interesse dos líderes da União Europeia em substituir os Estados Unidos, a falta de progresso nas áreas que Macron tentou abordar são um lembrete preocupante do poder limitado que o mundo possui para defender os valores democráticos sem os Estados Unidos no comando.
Putin levou um puxão de orelha, mas o abuso contra os homossexuais continua. A União Europeia também está perdendo sua batalha contra o aumento das autocracias nos países do Leste Europeu, como Hungria e Polônia, ou contra a influência russa nessa parte de seu bloco.
Membros da aliança de defesa transatlântica, a Otan, também tiveram que se adaptar a um EUA menos presente. O organismo tem planos de aumentar o financiamento desde a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, um movimento audacioso sobre o qual o governo Obama fez pouco. Já Trump tem criticado os demais países membros de não contribuírem com a Otan.
Muito tempo vindo
Pode não haver uma substituição fácil para a liderança dos EUA, mas Scott Lucas, professor de política internacional da Universidade de Birmingham, ressalta que Washington também não alcançou muitos de seus objetivos recentes de segurança internacional. “Ásia, Oriente Médio, África, em muitas partes, a desordem continua em grande medida”, disse ele.
A lista de falhas dos Estados Unidos em segurança internacional é longa. Os EUA não conseguiram construir estados legítimos no Iraque e no Afeganistão. Israelenses e palestinos não estão mais perto de um acordo de paz. Tanto o Irã quanto a Coreia do Norte desenvolveram armas nucleares. Os EUA não impediram a Rússia de exercer influência na Europa Oriental. Não convenceram a China a encerrar suas agressões militares na Ásia. Tudo isso era verdade antes da ascensão de Trump.
Segundo Lucas, a presidência de Trump não foi realmente o momento decisivo nessa mudança. Na verdade, a invasão do Iraque pelo presidente George W. Bush foi o “momento crítico”.
“Muitos países — como França, Alemanha, Austrália — ficaram desconfortáveis, para dizer o mínimo. Eles sentiram que a guerra não se justificava”, disse Lucas.
Alguns especialistas dizem que a China é o único concorrente real, e que um mundo bipolar no qual os EUA e a China competiriam é inevitável. Assim, em algum momento, os outros países serão forçados a escolher um lado.
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Nesse sentido, a China não está parada. Na Assembleia Geral da ONU em setembro, o presidente chinês Xi Jinping pediu ao mundo que “dê as mãos para defender os valores de paz, desenvolvimento, equidade, justiça, democracia e liberdade compartilhados por todos nós”. Em contraste, Trump dedicou muito de seu discurso a atacar a China por causa do coronavírus, de olho em sua base eleitoral.
No entanto, os comentários de Xi devem ser encarados com cautela: Pequim também pontuou elementos da presidência de Trump para justificar medidas em Hong Kong, com sua lei draconiana de segurança nacional. Mas Xi tem um apetite genuíno de ser bem-vindo como líder mundial, uma função que exigirá que ele se conforme de certa forma com a ordem baseada em regras.
No mesmo discurso de setembro, Xi fez uma promessa de que a China se tornará neutra em emissões de carbono até 2060, uma meta ambiciosa que foi recebida com entusiasmo e ceticismo.
Shaun Breslin, professor de política e estudos internacionais da Universidade de Warwick, discorda que o futuro de longo prazo é necessariamente bipolar, em que os países devem escolher entre a China e os Estados Unidos. Em vez disso, ele acha que a transição de um mundo unipolar será “confusa” e mais provavelmente dará lugar a grupos de poder.
“Meu problema com os polos é que estamos tentando usar uma linguagem de uma época diferente e moldar à era atual. O que acho que veremos são constelações mais soltas de poder e interesses dependentes de áreas específicas”, disse ele.
Os países continuarão a se relacionar com a China em áreas como comércio e tecnologia, mas não devem necessariamente substituir Washington por Pequim em questões como segurança ou liderança moral.
O candidato democrata Joe Biden está entre aqueles que acreditam que os EUA deveriam continuar a liderar. Embora ele tenha prometido voltar a se engajar em instituições como a OMS e no acordo climático de Paris, caso vença na terça-feira (3), ele não será capaz de reverter todas as decisões de política externa de Trump.
Por exemplo, será difícil para Biden investir em tropas e armas para recuperar a influência que os EUA um dia tiveram na Síria. Os comentários de Biden durante um debate na semana passada sobre a Coreia do Norte sugerem que ele pode ter uma política parecida com a do Obama, o que fez pouco para deter o estado pária.
Independentemente de quem ganhe as eleições, o papel dos EUA no mundo mudou profundamente. Retornar à liderança do pós-Guerra Fria é quase impossível.
(Tradução do inglês. Para ler o original, clique aqui.)