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    Após fim da quarentena em Wuhan, residentes finalmente enterram seus mortos

    Cemitérios estavam fechados desde 25 de janeiro na cidade, primeiro epicentro do novo coronavírus

    Homem segura um retrato enquanto espera na entrada no cemitério Biandanshan, em Wuhan
    Homem segura um retrato enquanto espera na entrada no cemitério Biandanshan, em Wuhan Foto: Hector Retamal/AFP/Getty Images

    Nectar Gan, CNN

    Minutos após Wuhan reabrir suas fronteiras nesta quarta-feira (8) após uma quarentena de 76 dias, Zhang Hai entrou no carro e deixou a cidade onde perdeu seu pai para o novo coronavírus.

    “Meu coração foi partido em Wuhan”, ele disse de sua cidade natal, na China central, epicentro original da pandemia. “Estou preenchido por luto e raiva”.

    Menos de três meses atrás, Hai, que tem 50 anos, dirigiu os 1.130 km entre a costa sudeste do país e Wuhan com seu pai, Zhang Lifang, que precisava de tratamento para uma perna quebrada.

    Lifang se aposentou em Wuhan e tinha atendimento médico gratuito na cidade.

    A cirurgia foi um sucesso, mas ele adquiriu a COVID-19 enquanto se recuperava no hospital. Ele foi diagnosticado em 30 de janeiro e morreu dois dias depois, aos 76 anos.

    “Eu não sabia como a epidemia estava ruim em Wuhan, eu levei meu pai até lá — foi basicamente enviá-lo para a morte. Quando penso nisso, sou arrebatado por remorso e raiva”, disse ele na quarta-feira no longo caminho até Shenzhen, onde ele vivia junto do pai.

    Mas Hai terá de retornar a Wuhan — onde as cinzas de seu pai continuam armazenadas em uma casa funerária da cidade.

    Nesta semana, as pessoas em Wuhan estão voltando ao trabalho, o comércio está reabrindo, carros e pedestres estão voltando às ruas, uma vez desertas. No entanto, para muitas pessoas, a cidade nunca mais será a mesma.

    O novo coronavírus vitimou mais de 2.500 pessoas na cidade, o que corresponde a 77% de todas as mortes pela doença em todo o país, de acordo com a Comissão Nacional de Saúde da China.

    Conforme a vida começa a ser retomada, famílias têm de enfrentar uma tarefa que foi adiada por meses: enterrar seus entes queridos.

    Luto em pausa

    O cemitério Biandanshan, em Wuhan, China
    O cemitério Biandanshan, em Wuhan, China
    Foto: Hector Retamal/AFP/Getty Images

    Em 25 de janeiro, o governo de Wuhan suspendeu todos os funerais da cidade, como parte das medidas para conter o surto de COVID-19. Cemitérios foram fechados também.

    Com a maior parte dos residentes impedidos de deixar suas casas, transporte fechado e funerais cancelados, os restos mortais de milhares de vítimas, que morreram tanto pela nova doença como de outras causas, ficaram armazenados em casas funerárias. As famílias foram orientadas a esperarem que o governo dissesse quando poderiam ser recolhidos.

    Muitos não puderam ver os corpos de seus entes queridos antes da cremação. Para conter a transmissão, as autoridades decretaram que todos os mortos com diagnóstico confirmado ou suspeito de coronavírus deveriam ser levados diretamente para a cremação.

    Como tudo na cidade, o processo normal de lidar com o luto foi posto em pausa.

    No fim de março, com o número de novas infecções chegando a zero, residentes de Wuhan finalmente puderam recuperar as cinzas de seus parentes e dar a elas seu destino final.

    Desde então, fotografias de longas filas desembocando em casas funerárias circularam pela internet, destacando a tragédia de tantas famílias na cidade. As cenas foram censuradas nas redes sociais chinesas e receberam pouca cobertura na mídia local.

    Hai estava esperando ansiosamente para enterrar seu pai, mas foi avisado que não poderia fazê-lo sem o acompanhamento de um funcionário do comitê local.

    Na China, toda comunidade residencial é gerenciada por um comitê, um braço local do Partido Comunista Chinês. Desde o início da epidemia, essas organizações foram responsabilizadas pela articulação com hospitais e autoridades dos centros de controle de doenças.

    Hai disse que sentiu repulsa pela ideia de estranhos invadirem seus últimos momentos junto de seu pai. “Cuidar dos últimos negócios de meu pai —mesmo que seja coletar e enterrar suas cinzas — é algo que queria fazer sozinho, porque é um assunto particular. Essas pessoas não são minha família”, disse.

    No fim, ele recusou a escolta obrigatória e não coletou as cinzas do pai.

    O acompanhamento para recuperar os restos mortais foi reportado por várias outras pessoas nas redes sociais chinesas. O procedimento também enraiveceu outros moradores de Wuhan.

    “Depois de ler sobre o que está acontecendo nas casas funerárias, me sinto muito triste como cidadão de Wuhan. Por que não estamos sendo autorizados a lamentar? Só temos permissão para celebrar vitórias”, escreveu um usuário do Weibo, principal rede social da China, se referindo ao trabalho bem-sucedido do país em conter a epidemia.

    O governo de Wuhan não respondeu ao pedido de comentário da reportagem da CNN.

    Enterros silenciosos

    Pessoas com trajes protetores aguardam na entrada do cemitério Biandanshan
    Pessoas com trajes protetores aguardam na entrada do cemitério Biandanshan, em Wuhan, China
    Foto: Hector Retamal/AFP/Getty Images

    Outros falaram de uma atmosfera estranhamente quieta nas casas funerárias e cemitérios locais.

    Peng Yating, consultora educacional de 34 anos, correu para o cemitério Biandanshan em Wuhan no primeiro minuto após a suspensão das restrições.

    Toda primavera, Peng e sua mãe visitavam os túmulos de seus antepassados nesse cemitério durante o Festival Qingming —tradição ancestral chinesa em que se lava os jazigos dos familiares.

    Mas neste ano, ela foi ao cemitério por um motivo diferente.

    Peng foi até lá selecionar um local para enterrar sua mãe, que morreu no fim de janeiro —pico das infecções do coronavírus em Wuhan.

    Quando Peng chegou ao Biandanshan, antes das 6h30 da manhã, já havia uma longa fila. Sua senha dizia que ela era a 71ª a ser atendida.

    “Talvez porque ainda era cedo, mas o cemitério estava estranhamente quieto. Muitos familiares vieram, mas não fizeram barulho, choraram ou demonstraram seu luto. Eles só estavam silenciosamente esperando que seu número fosse chamado”, escreveu em uma publicação no Weibo. “Os mortos não podem falar, mas tampouco queriam os vivos”.

    Funerais ainda não são permitidos. Uma mãe enlutada em Wuhan, que prefere não revelar seu nome, disse que enterraria sua filha em um cemitério na quinta-feira (9), ao lado de seu marido e uma sobrinha. “Não haverá cerimônias. Não há como fazer uma. Só podemos enterrá-la silenciosamente”, disse.

    A milhares de quilômetros dali, em Shenzhen, Zhang Hai chegou em casa após passar por um exame —todos os que voltam de Wuhan têm de ser testados por requerimento dos governos locais.

    Em seu apartamento, não conseguia parar de pensar em seu pai e de se culpar por levá-lo a Wuhan em 17 de janeiro.

    À época, as autoridades de saúde insistiam que não havia “evidência óbvia de transmissão comunitária” e que o coronavírus era “evitável e controlável”.

    Hai diz que ainda espera um pedido de desculpas oficial da cidade. “Aqueles que não tornaram as informações públicas devem ser punidos”, disse.