‘Isso nunca deveria ter acontecido’: por dentro do ‘passeio’ de carro de Trump
Especialistas classificam a atitude de Trump, ainda internado com Covid-19, como 'irresponsável'
Caminhando pela bem equipada suíte presidencial do Centro Médico Militar Nacional Walter Reed, entre doses intravenosas de remdesivir e exames vitais sendo feitos quase de hora em hora, o presidente Donald Trump disse a mais de um simpatizante que estava desesperado para dar uma escapada.
Daí, no domingo (4), ele conseguiu. Pouco depois das 17 horas no horário local, uma combinação de tédio, agitação e desejo de adulação durante a convalescença pelo coronavírus levou o presidente ao banco traseiro de um Chevy Suburban preto, acenando freneticamente ao passar devagar pela Rockville Pike, a avenida na frente do hospital. Enquanto isso, dois agentes do Serviço Secreto dos EUA, vestidos com aventais médicos, máscaras respiratórias e proteção para os olhos, olhavam estoicamente para a frente.
De acordo com uma fonte próxima, foi uma imagem inventada pelo próprio presidente e pelo grupo muito restrito de assessores que o acompanharam até o hospital Walter Reed, incluindo o chefe de gabinete Mark Meadows e o assessor de mídias sociais Dan Scavino. Eles esperavam que isso pudesse tranquilizar os norte-americanos de que Trump permanece são e no comando após o que ele considerou uma cobertura exagerada de notícias de seu estado de saúde e (em especial) dos prognósticos exagerados para os quais ele planejava transferir o poder ao vice-presidente Mike Pence.
No entanto, seu passeio de carro de alguns segundos apenas ressaltou a atitude relaxada do presidente em relação à transmissão do vírus, a mesma atitude que parece tê-lo levado ao hospital. O espaço contido dentro da limusine presidencial dificilmente permite o distanciamento social entre o presidente, o motorista e o agente. Embora Trump usasse uma máscara, seu status de paciente internado com Covid-19 o impedia de se enquadrar nas recomendações de alguém que pode fazer uma aparição pública.
Foi uma imagem marcante para um presidente que afirma agora “entender” o vírus depois de contraí-lo.
“Eu aprendi realmente indo para a escola. Esta é a verdadeira escola”, disse Trump em um vídeo postado segundos antes de fazer o passeio, com a voz soando um pouco rouca, mas entusiasmada. “Isso não se aprende só nos livros, e eu entendo.”
Posteriormente, os membros do Serviço Secreto expressaram crescente preocupação com o que muitos funcionários da agência determinaram ser o desprezo total pelo bem-estar deles em meio a uma pandemia mortal e altamente contagiosa. Agentes tiveram testes positivos para o vírus durante viagens para os comícios políticos do presidente, que ele insistiu em manter, mesmo contra as diretrizes federais de saúde. À medida que os funcionários ficam em quarentena ou se isolam em casa, outros são forçados a trabalhar mais horas para preencher o vazio.
É uma situação que tem gerado uma preocupação crescente e mais evidente.
Leia também:
CNN vai transmitir debate entre candidatos a vice-presidente dos EUA no dia 7
Ainda internado, Trump usa conta no Twitter para pedir votos e atacar democratas
Remdesivir, anticorpos, oxigênio e mais: o que se sabe do tratamento de Trump
Mundo ultrapassa marca de 35 milhões de casos de Covid-19
“Isso nunca deveria ter acontecido”, disse um agente da ativa do Serviço Secreto que trabalha no destacamento presidencial e da primeira família. Ele acrescentou que os agentes que acompanharam o passeio agora serão colocados em quarentena.
“Sabe, eu não gostaria de ficar perto deles”, confessou o agente, externando uma opinião que várias pessoas no Serviço Secreto também expressaram após a aparição de domingo (4). “A frustração com a forma como somos tratados quando se trata de decisões sobre esta doença vem de antes disso. Não somos descartáveis”.
Outro agente veterano do Serviço Secreto também revelou um profundo receio com a o passeio do lado de fora do hospital Walter Reed, embora tenha simpatizado com os que estavam ao redor do presidente, dada a dificuldade de resistir ao comandante-em-chefe.
“Você não pode dizer não”, contou o agente.
Embora os agentes do Serviço Secreto tenham o poder de dizer não a atividades que possam colocar um presidente em perigo, eles não podem se negar a entrar em situações que possam trazer risco para eles próprios.
Um terceiro agente disse à CNN: “Foi simplesmente imprudente”. Mas outro procurou minimizar a preocupação.
“Assisti a algumas notícias de hoje e é ridículo dizer que o presidente está tentando matar seu destacamento”, afirmou outro agente da ativa. “Ele não é convencional, mas fazemos nosso trabalho”.
Em um comunicado, a Casa Branca insistiu que medidas foram tomadas para proteger as outras pessoas que estavam no carro com Trump.
“Os devidos cuidados foram tomados na execução deste movimento para proteger o presidente e todos aqueles que o apoiam, incluindo (uso de equipamento de proteção individual). O movimento foi considerado seguro pela equipe médica”, disse o vice-secretário de imprensa, Judd Deere.
Especialistas médicos e de saúde disseram que o episódio pareceu tudo, menos seguro.
“Aquele SUV presidencial não é apenas à prova de balas, mas hermeticamente selado contra ataques químicos”, postou o doutor James P. Phillips, médico afiliado do hospital Walter Reed. “O risco de transmissão de Covid-19 no interior é muito alto pois ele deixa os procedimentos médicos de fora. A irresponsabilidade é surpreendente. Estou com meus pensamentos voltados para os membros Serviço Secreto forçados a participar”.
A doutora Leana Wen, uma médica de emergência e analista médica da CNN, tuitou que, se Trump fosse seu paciente, “em condição instável + doença contagiosa e de repente deixa o hospital para dar um passeio de carro que colocaria em risco a si mesmo e aos outros: eu chamaria a segurança para contê-lo, em seguida, realizaria uma avaliação psiquiátrica para examinar sua capacidade de tomada de decisão”.
Um fim de semana no hospital
Na tarde de domingo (4), a multidão de apoiadores reunida do lado de fora da entrada do hospital havia crescido da meia dúzia de quando Trump chegou na sexta-feira à noite para várias dezenas de pessoas.
Dentro do hospital, Trump foi alertado da presença da multidão por membros de sua equipe, e viu imagens da reunião nas telas de televisão pendurados na suíte onde está sendo tratado.
Desde que chegou ao hospital, Trump passou horas consumindo imagens de TV sobre seu quadro de saúde. Nada muito diferente de sua rotina na Casa Branca, embora agora seu regime seja interrompido pelo monitoramento constante de médicos e doses de remédios administrados por via intravenosa e, de acordo com seu médico, doutor Sean Conley, os “altos e baixos” do coronavírus que incluem quedas preocupantes em seu nível de oxigênio no sangue.
Ainda assim, o presidente tem feito uma tentativa de seguir em frente, principalmente por meio de seus longos telefonemas para familiares e aliados.
“Ele está trabalhando da mesma maneira que o faz na Casa Branca ou do mesmo jeito que funciona 24 horas por dia”, disse seu advogado pessoal Rudy Giuliani à Fox News.
Durante o fim de semana, Trump pressionou para fazer algum tipo de aparição pública para demonstrar sua saúde, embora tenha encontrado alguma resistência da equipe médica, de acordo com uma pessoa a par do assunto.
Seu desejo de ser visto aumentou na tarde de sábado e domingo, conforme ele ficava frustrado com o que considerava uma cobertura excessivamente fatalista de sua condição. Donald Trump ficou furioso quando surgiu uma citação de uma pessoa familiarizada com sua saúde (mais tarde identificado como o chefe de gabinete Meadows) sugerindo que seus sinais vitais estavam “preocupantes” na sexta-feira.
Em vez de aparecer em público no sábado, Trump gravou um vídeo de quatro minutos agradecendo a seus partidários e posou para um conjunto de fotos em uma mesa redonda de madeira e em uma sala de conferências, parecendo revisar documentos. A Casa Branca divulgou outra série de fotos no domingo, desta vez retratando o presidente sentado em sua sala de conferências revestida de madeira enquanto falava por telefone com Pence, com o secretário de Estado Mike Pompeo e com o chefe do Estado Maior Conjunto dos EUA, general Mark Milley.
Tanto no vídeo quanto nas fotos, Trump não estava usando máscara; não ficou claro quais medidas foram tomadas para proteger os fotógrafos que capturaram as imagens.
A decisão
Ao contrário do que ocorre na Casa Branca, onde Trump é cercado por uma ampla rede de assessores, no hospital ele está acompanhado apenas por um número mínimo de assessores. Meadows passou a noite no hospital na sexta e no sábado. Mais recentemente, Scavino se juntou a ele, que escreveu no Twitter que, após uma série de testes negativos, planejava trabalhar no hospital até Trump retornar à Casa Branca.
Scavino postou uma sequência de fotos que pareciam ter sido tiradas de dentro do passeio do presidente no domingo, enquanto eles passavam pelo grupo de apoiadores, que agitavam bandeiras com o nome de Trump e gritavam contra os adversários do presidente. Dezenas de outros apoiadores passaram em seus carros, agitando bandeiras dos EUA e produzindo uma cacofonia de apoio ao presidente em convalescença, buzinando sem parar.
Por volta das 17h15, horário local, os policiais começaram a bloquear o movimentado cruzamento em frente ao Centro Médico Walter Reed, onde os apoiadores estavam amontoados na calçada. Minutos depois, o cortejo presidencial começou a circular no sentido norte da Rockville Pike, diminuindo a velocidade para que o presidente pudesse mostrar o rosto.
Trump acenou e ergueu o punho enquanto os apoiadores aplaudiam ruidosamente, a maioria deles sem máscaras.
Ao fazer o retorno de volta para o outro lado da avenida, passando por mais apoiadores e tendas cheias de câmeras e repórteres de televisão, o presidente acenou com o polegar para cima.
Minutos depois, a comitiva para o hospital. A Casa Branca alertou os repórteres que ele estava de volta à suíte do Centro Médico Walter Reed.
Jeremy Diamond, Kate Bennett, Jamie Gangel, Josh Campbell e Betsy Klein da CNN contribuíram nesta reportagem.
(Texto traduzido, clique aqui para ler o original em inglês).