Antes tabu, debate sobre saúde mental ganha força no futebol: “Os clubes não se preocupavam”
Casos como o de Richarlison, da Seleção Brasileira, e de Alisson, do São Paulo, ajudam a naturalizar o tema
Quando o atacante Richarlison revelou, em setembro, que buscaria ajuda psicológica após enfrentar problemas pessoais que estavam afetando seu desempenho, a declaração do jogador do Tottenham repercutiu no mundo do futebol.
Difícil imaginar que, em outros tempos, o dono da camisa 9 da Seleção Brasileira pudesse falar tão abertamente sobre saúde mental. Mas mesmo o futebol, reacionário ao debate sobre os cuidados e armadilhas da mente, tem hoje um ambiente mais propício para as discussões a respeito desse tema do que em décadas anteriores.
Um dos jogadores que contribuiu para naturalizar essa questão foi o ex-atacante Nilmar, com passagens de sucesso por Internacional e Corinthians. Em 2017, o paranaense estava no Santos quando decidiu tornar público o diagnóstico de depressão, recebido enquanto tentava retomar a carreira no clube da Vila Belmiro.
De acordo com Nilmar, o Peixe, a princípio, não pretendia tornar o caso público, mas a decisão de exteriorizar a situação partiu do próprio atacante.
“Isso se iniciou lá no mundo árabe, quando eu estava no meu último ano [no Al-Nasr, dos Emirados Árabes Unidos], que eu comecei a não ter mais vontade de treinar. Aí eu fui para o Santos, e no dia a dia eu estava sentindo muito desgaste físico, cansaço, sem aquela empolgação de jogar. Mas isso eu guardei para mim, por achar que era uma fase”, conta Nilmar, em entrevista à CNN Brasil.
Mas depois de um jogo eu tive paralisia em todo o lado direito do corpo. Fui para o hospital, fiz exames e não encontravam nada. Até que procurei uma psicóloga e tive o diagnóstico de depressão. O copo transbordou, eu deixei chegar no limite
Nilmar, à CNN Brasil
Contratado em julho de 2017, Nilmar rescindiu com o Santos em dezembro, com mais um ano de contrato pela frente. O tratamento contra a depressão, razão pela qual deixou o clube em comum acordo, fez com que o jogador decidisse pela aposentadoria, aos 33 anos.
“O assunto foi se tornando um pouco mais natural, graças também a vocês [jornalistas], que falam mais sobre isso. O futebol, dos esportes, é um dos mais machistas que existe. A gente está muito longe distante de naturalizar o tema, mas acredito que o mais importante é falar a respeito e os próprios clubes também saberem a importância de ter um atleta mentalmente bem. Antes, infelizmente, era uma das últimas coisas com as quais se preocupavam”, afirma o ex-atacante.
Recentemente, depois de Richarlison exteriorizar sua busca por ajuda psicológica, um outro caso na elite do futebol brasileiro ajudou a manter aceso o debate sobre saúde mental.
O meio-campista Alisson, campeão da Copa do Brasil com o São Paulo, havia sido afastado no início da temporada para tratar a depressão. Nesse período, na relação de atletas relacionados para as partidas, o camisa 25 constava como desfalque por “problemas pessoais”, mas clube e jogador preferiram não exteriorizar a situação.
Foi somente após a conquista nacional sobre o Flamengo que Alisson decidiu falar abertamente a respeito do tratamento. “Muito obrigado pelo que fizeram e fazem por mim até hoje, sou muito grato a vocês. Vocês fazem parte dessa conquista”, postou o são-paulino nas redes sociais, em uma foto com as psicólogas do Tricolor.
O Alisson buscou ajuda. Ele disse: ‘Eu preciso de ajuda’. A partir do momento em que ele compartilhou isso com a gente, a diretoria ofereceu total respaldo para que a gente trabalhasse da melhor maneira possível
Anahy Couto, psicóloga do São Paulo
Esportes olímpicos são mais abertos ao tema
Ainda que o futebol tenha mostrado, nos últimos anos, estar mais aberto às discussões sobre saúde mental, nos esportes olímpicos o tema encontra menos resistência.
Especialista em psicologia do esporte, Carla Di Pierro trabalha desde 2012 como psicóloga no Comitê Olímpico do Brasil e faz o acompanhamento de centenas de atletas. Recentemente, ela passou a atender um número cada vez maior de jogadores de futebol, mas ainda crê que o ambiente futebolístico não dá a devida atenção ao cuidado mental.
“É muito mais aceito dentro do ambiente olímpico o trabalho da preparação mental. Talvez porque é um ambiente em que todas as ciências do esporte estão muito mais presentes, é tudo muito mais científico, muito mais cronometrado. A psicologia entra como ciência, a medicina entra como ciência, o treinamento entra como ciência. Dentro do futebol existe, talvez, uma cultura que ainda enxerga o trabalho da psicologia como algo supérfluo”, afirma Di Pierro, em entrevista à CNN Brasil.
O futebol é o grande esporte do nosso país, os atletas de futebol têm mais exposição, mais tempo na mídia, eles podem sofrer uma pressão diferente do atleta olímpico, que está mais exposto a cada quatro anos
Carla Di Pierro, psicóloga do COB
Di Pierro destaca a importância de, no futebol, clubes estarem preparados para oferecer não só ajuda em momentos delicados, mas acompanhamento contínuo e ferramentas para que os jogadores possam lidar com a frequente pressão por resultados e desempenho.
“Temos um caminho a percorrer para estar dentro de todos os clubes, para termos acesso à comissão técnica, fazer parte da comissão técnica do futebol. Mas a gente já sabe que tem vários bons trabalhos, inclusive em clubes grandes de São Paulo e Rio de Janeiro, que dão esse suporte para os atletas”, completa Carla Di Pierro.