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    Ele frequentou o mundo da QAnon por dois anos; saiba como conseguiu sair

    Entre 2017 e 2019, Jitarth Jadeja viveu mergulhado no culto virtual que espalha teorias da conspiração, em geral, favoráveis ao presidente Donald Trump

    Bronte Lord e Richa Naik, da CNN

    Um dia, em junho de 2019, Jitarth Jadeja saiu para fumar um cigarro. Havia dois anos que ele vivia mergulhado no culto virtual da QAnon.

    Mas, durante aquela parada para o cigarro, ele assistiu de novo a um vídeo no YouTube que tratava do último elemento da teoria em que ele acreditava. Parado ali fumando, ele diria mais tarde, se sentiu “destruído”.

    Ele havia descido nos subterrâneos da QAnon; agora, depois de emergir, não tinha ideia do que fazer a seguir.

    “A QAnon só machuca as pessoas”

    A crença mais básica da QAnon mostra o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, como o herói em uma luta contra o “estado profundo” e uma sinistra conspiração de políticos democratas e celebridades que abusam de crianças. E apresenta uma fonte anônima do governo chamada “Q”, que supostamente compartilha informações secretas sobre essa luta por meio de postagens online secretas.

    Travis View é um pesquisador da teoria da conspiração e co-apresentador do podcast “QAnon Anonymous”.

    Os adeptos da teoria “sempre fantasiam que estão salvando crianças e levando criminosos à justiça”, diz View. “A QAnon só machuca as pessoas. Não ajuda ninguém.”

    Não há estimativas sólidas para o número de seguidores da QAnon em todo o mundo, mas está claro que suas adesões estão crescendo. Uma investigação da CNN analisou as páginas e grupos do Facebook relacionados à QAnon que vivem fora dos EUA e encontrou um total de pelo menos 12,8 milhões de interações entre o início do ano e a última semana de setembro.

    Jitarth Jadeja, de 32 anos, encontrou a QAnon em 2017 e passou 2 anos no culto
    Jitarth Jadeja, de 32 anos, encontrou a QAnon em 2017 e passou dois anos entrincheirado no culto virtual
    Foto: Bill Code / CNN Business

    Lisa Kaplan e Cindy Otis lideram o Alethea Group, uma empresa que monitora a desinformação para proteger as marcas de seus clientes. Elas seguiram falsas afirmações de que a rede de lojas de móveis Wayfair era cúmplice de uma trama de exploração infantil que se espalhou dos nichos do QAnon para a grande mídia neste ano.

    “Não existe uma espécie de doutrina definida ou sistema de crenças. Tem mais a ver com o que viraliza e o que não viraliza”.

    Como muitos grupos de teoria da conspiração anteriores, a QAnon virou tanto uma questão de comunidade como sua própria teoria real. O resultado é uma teia de crenças complicada e em constante mudança que se ramifica da visão central. 

    No caso, ela inclui teses sobre membros de uma suposta conspiração adorando Satanás, e JFK Jr. ter fingido sua morte em 1999 em um acidente de avião para escapar dos conspiradores do estado profundo. 

    A QAnon também começou a assimilar teorias de conspiração não relacionadas, incluindo ideias falsas sobre a natureza supostamente perigosa da infraestrutura 5G e a noção falsa e perigosa de que a pandemia da Covid-19 é uma manobra para monitorar cidadãos.

    Já que não há liderança ou estrutura para a QAnon, seus apoiadores incorporam teorias de conspiração existentes e desenvolvem novas. A QAnon “realmente assume vida própria, o que pode, de fato, torná-la uma ameaça mais significativa”, opinou Kaplan.

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    ‘Impossível desviar o olhar’

    “A política australiana é chata em comparação. A política norte-americana é como se fosse um acidente de carro do qual você não consegue desviar o olhar.”

    Jadeja conta que, durante a eleição presidencial de 2016 nos EUA, ele foi atraído pelo então candidato Bernie Sanders. O australiano gostou do que Sanders tinha a dizer sobre a desigualdade e seu “sentimento anti establishment”.

    Mas então Trump venceu. “Isso realmente foi o pontapé inicial para mim”, contou.

    À época, ele sentiu que o mundo ficara chocado com a vitória de Trump. Como aparentemente ninguém viu o que ia acontecer? E o mais importante, quem foi? “Eu meio que me desliguei de toda a mídia convencional”, disse Jadeja.

    Foi quando ele começou a ouvir o teórico da conspiração Alex Jones e a ler o site Infowars, que o expôs às teorias QAnon pela primeira vez. Em dezembro de 2017, ele se identificou como um seguidor de Q.

    Jitarth Jadeja olha para uma foto sua quando criança ao lado de seu pai
    Jitarth Jadeja olha para uma foto sua quando criança ao lado de seu pai
    Foto: Bill Code / CNN Business

    Nessa fase, Jadeja disse que estava no meio de uma luta de 15 anos para terminar sua graduação. Ele se afastou de amigos e se tornou socialmente isolado. “Eu me senti completamente sobrecarregado… Provavelmente estava em uma depressão profunda quando encontrei Q”, lembrou.

    Assim que Jadeja encontrou a QAnon, foi rapidamente sugado. O australiano gastava um bom tempo em sites que agregavam postagens supostamente do anônimo Q, que geralmente aparecia em cantos mais escuros da internet usando o nome 8kun. Em seguida, ele passou a ler as interpretações dessas mensagens de outros seguidores.

    As interpretações são populares entre a comunidade QAnon porque as postagens de “Q” costumam ser tão vagas que podem ser lidas de várias maneiras. A tática tende a atrair simpatizantes da mesma forma que os paranormais fraudulentos o fazem: há poucas informações sólidas, então quase tudo pode ser tomado como confirmação de um pronunciamento de “Q”.

    “Havia muitas minicelebridades do Youtube e do Reddit dentro da comunidade que seriam como os decifradores ungidos para aquele momento”, observou Jadeja.

    Obcecado, só falava da QAnon. Isso tornou a vida offline cada vez mais difícil para ele, que se afastou dos amigos.

    “Ninguém acredita em você. Ninguém quer falar com você sobre isso…  Daí a gente fica angustiado, rabugento. A gente fica meio que gritando, de forma irracional, parecendo aquele mendigo da rua berrando sobre o dia do Julgamento Final”, comparou.

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    Uma das poucas pessoas em sua vida normal com quem ele conseguiu conversar sobre seu novo interesse foi seu pai. “Costumávamos falar muito sobre isso. A gente só falava disso um com o outro. A gente mostrava as coisas um ao outro, perguntando: ‘você viu isso? Você viu aquilo?’”. 

    “Acho que, superficialmente, pareceu que a QAnon me deu conforto. Eu não percebi o tipo de impacto nefasto que estava tendo sobre mim porque a maneira como isso lentamente me desconectou da realidade foi muito traiçoeira”.

    Encontrando “respostas”

    “Acho que tendemos a subestimar até que ponto esses tipos de narrativas são atraentes”, disse Cindy Otis, do Alethea Group, “especialmente quando estamos em um momento de grande estresse e as emoções estão à flor da pele”.

    A pesquisadora observou que a eleição presidencial dos EUA em 2016 foi um momento assim para muitas pessoas. Agora, a pandemia de coronavírus significa que a incerteza e a ansiedade estão novamente em um ponto alto.

    “É uma narrativa muito convincente dizer que tudo isso é orquestrado. Que há uma conspiração perseguindo você, que estão tentando tornar sua vida uma desgraça. Você quer uma resposta para a razão de as coisas ruins estarem acontecendo? Aqui está ela”.

    View, o pesquisador da teoria da conspiração e podcaster, disse que a QAnon ataca pessoas vulneráveis que, em alguns casos, podem estar sofrendo de problemas de saúde mental.

    Apoiadora do presidente dos EUA, Donald Trump, com blusa do gruo QAnon
    Apoiadora do presidente dos EUA, Donald Trump, com blusa do gruo QAnon
    Foto: Elijah Nouvelage -05.set.2020/Reuters

    “Acho que é um erro dizer que a QAnon é uma teoria da conspiração, porque isso meio que faz soar como a Área 51 ou o Pé-Grande. Trata-se de uma comunidade de pessoas que as radicaliza em uma visão de mundo, que essencialmente as separa da realidade”.

    Para Jadeja, os impulsos que desenvolveu enquanto acreditava na QAnon são uma fonte de vergonha. “Eu teria ficado muito feliz em ver Hillary Clinton arrastada diante de um tribunal militar, embora ela seja uma civil”, contou.

    “Isso ainda me incomoda até hoje, o quão disposto, feliz e alegre eu teria reagido a algo de que normalmente não gostaria de participar… É assim que você consegue que pessoas boas façam coisas ruins.”

    Em um boletim de maio de 2019, o FBI alertou que teorias de conspiração como QAnon poderiam “muito provavelmente” motivar atividades criminosas e às vezes violentas nos Estados Unidos, especialmente por causa do alcance e do volume do conteúdo conspiratório disponível online.

    O problema da plataforma

    “Fica especialmente perigoso quando essas conspirações vão para plataformas como Twitter e Facebook, porque isso aumenta a amplitude do alcance dessas falsas conspirações”, disse ela.

    O Reddit baniu um subfórum popular da QAnon em 2018. Em julho de 2020, o Twitter disse ter removido mais de sete mil contas associadas à QAnon. Na semana passada, o Facebook anunciou que baniria quaisquer páginas, grupos ou contas do Instagram que representassem a QAnon.

    E, na quarta-feira (13), YouTube juntou-se a outras plataformas, dizendo que proibiria o conteúdo da teoria da conspiração que ameaça ou assedia um indivíduo ou grupo, antes de banir completamente a QAnon e outras teorias perigosas.

    Mas a tarefa de identificar e fiscalizar esses tipos de contas é enorme. O Facebook, por exemplo, já havia feito promessas de banir certos grupos ou tipos de conteúdo no passado, mas às vezes o resultado prático é lento ou inconsistente.

    “Não é algo para o qual existe uma solução que irá remover o grupo de sua plataforma por toda a eternidade. Vai ser um problema contínuo e dinâmico”, analisou Otis.

    View acredita que essas ações podem ter vindo tarde demais. “Esse é um grupo altamente motivado que acredita que está travando essencialmente uma guerra de informação”.

    Saindo da Q

    Jadeja se perguntou: se Trump estava tentando derrubar a grande conspiração, como poderia deixar Assange enfrentar a extradição para os EUA por acusações relacionadas à publicação de documentos militares e diplomáticos secretos? Além disso, ele estava percebendo mais inconsistências lógicas nas teorias da QAnon.

    Mas havia uma “prova” em particular na qual ele ainda se apegava. Era assim: um seguidor da QAnon supostamente pediu a Q para dizer ao presidente Trump para usar a frase “top top” em um discurso. E Trump usou.

    Para Jadeja, aquela havia sido a prova de que Q existia e era ouvido pelo presidente. Mas, à medida que suas dúvidas aumentavam, ele decidiu pesquisar mais e se deparou com um vídeo do YouTube que mostrava outras vezes que Trump havia dito a frase ou algo semelhante. De repente, “top top” não era mais uma prova irrefutável, provavelmente era apenas coincidência.

    Para outros, isso poderia ter sido facilmente encoberto, um pontinho facilmente descartado em sua crença. Mas, para Jadeja, que estava se aproximando do rompimento com a QAnon, foi um ponto de virada.

    “Foi a pior sensação que tive na minha vida”, lembrou. Foi quando ele saiu para fumar.

    ‘Tudo começa com empatia e compreensão’

    É para onde Jadeja se voltou quando parou de acreditar na conspiração. Ele escreveu uma postagem de 659 palavras que começava com as palavras “Q me enganou”.

    Ele pensou que o grupo iria ridicularizá-lo por acreditar na teoria da conspiração. “Eu esperava ser destroçado por todos”.

    Em vez disso, aconteceu o oposto. De acordo com Jadeja, ele recebeu mais de uma centena de respostas à sua postagem – e quase todas o apoiaram. “Esses caras me colocaram de volta no lugar”.

    O australiano agora acha que um dos desafios mais difíceis na tentativa de desradicalizar um seguidor da QAnon é que eles veem a oposição como “o puro mal”.

    “Este é um grande problema, não apenas porque as pessoas estão sendo acolhidas e suas famílias estão sendo destruídas. Essas pessoas pensam que estão lutando uma batalha existencial entre o bem e o mal”. O ex-seguidor diz que costumava pensar a mesma coisa.

    Outra comunidade Reddit chamada QAnonCasualties funciona como um grupo de apoio para amigos e familiares de seguidores QAnon. Tem mais de 28 mil membros. Existem centenas de histórias de entes queridos “perdidos” para a QAnon. Amizades arruinadas. Relacionamentos terminados. Famílias sofrendo.

    Olhando para trás, Jadeja disse que não acha que haja um único relacionamento em sua vida que não tenha sido afetado pelo tempo que passou acreditando na QAnon. “Ele destruiu alguns deles até hoje, eles ainda estão desgastados”.

    Mas há uma coisa em particular que ele mais lamenta: compartilhar a QAnon com seu pai. A CNN entrou em contato com o pai de Jadeja várias vezes para comentar, mas ele não respondeu.

    Jadeja acha que é possível que mais seguidores da QAnon possam seguir seu caminho.

    “Tem que começar com empatia e compreensão”, disse Jadeja. Isso é o que a comunidade QultHeadquarters no Reddit deu a ele.

    Na opinião de View, confrontar os crentes na QAnon com fatos não é a melhor maneira de desradicalização.

    Segundo o estudioso, a melhor maneira de ajudar os seguidores é lembrá-los de sua vida antes de Q. Eles precisam ser encorajados a se perguntar “se esta nova vida que construíram para si mesmos é realmente produtiva, se está realmente construindo para algo bom ou se é apenas uma perda de tempo e está preenchendo algum tipo de vazio emocional”.

    Ser sempre conhecido como “o cara da QAnon” entre seus amigos é a última coisa que Jadeja deseja. Mas ele teme que a comunidade continue a crescer. É por isso que decidiu compartilhar sua história, na esperança de que outros seguidores possam ver que existe vida após a QAnon e reavaliar sua escolha de apoiá-la.

    No final das contas, ele disse, ele está feliz por ter entrado no submundo da QAnon. Segundo o australiano, viver nesse mundo o ensinou muito sobre arrogância. “Isso me permitiu realmente confrontar a escuridão que está em meu próprio coração.”

    Reportagem adicional de Sofia Barrett

    (Texto traduzido; leia o original em inglês)