Kamala Harris consolida seu lugar ao lado de Biden em semana importante
Vice-presidente destacou sua presença no governo ao comentar condenação de Derek Chauvin
A vice-presidente Kamala Harris estava reunida com outras autoridades da Casa Branca na sala de jantar privada do presidente Joe Biden na semana passada quando todos soltaram um “suspiro de alívio coletivo”. Um júri no estado de Minnesota havia acabado de decretar o veredito de culpado para o policial pelo assassinato de George Floyd.
Enquanto a televisão de tela plana na sala exibia os três vereditos de “culpado”, a sala foi tomada por uma “sensação de alívio”, disse um assessor. Harris se juntou ao presidente Joe Biden e a primeira-dama Jill momentos depois no Salão Oval, onde a família de Floyd foi conectada em uma chamada colocada no viva-voz.
“Ela quer dizer algo”, disse Biden ao grupo de Floyd, reunido em um corredor do tribunal de Minneapolis, antes de ceder a linha para sua vice-presidente.
“Sou muito grata a toda a família. A coragem, o comprometimento, a força de vocês tem sido uma força [para todos]. Este é um dia de justiça nos Estados Unidos”, disse Harris ao grupo. “Em nome e memória de George, vamos garantir que seu legado esteja intacto e que a história olhe para trás neste momento e saiba que é um momento de virada”.
Para Harris, foi também um momento que destacou sua presença marcante no jovem governo. Ela sempre disse que nunca havia conhecido um homem negro na região onde cresceu (Oakland, Califórnia) que não tivesse enfrentado discriminação e checagem de seu perfil. Falando à família Floyd, Harris teve a oportunidade de explorar seu luto coletivo de uma forma que nenhum vice-presidente antes dela poderia.
Após quase 100 dias de mandato, Biden e Harris trabalharam para aprofundar seu relacionamento, passando cinco horas ou mais juntos por dia em reuniões na Casa Branca, de acordo com assessores. Biden e Harris evitaram viagens de trabalho nos primeiros dias de governo para dar o exemplo durante a pandemia – forçando-os a ficarem mais próximos do que seus antecessores.
A vice-presidente começou sua gestão participando de quase todos os eventos de Biden, proporcionando seu próprio espaço para falar e estando sempre visível enquanto o presidente fazia os comentários, num nível inevitável (e intencional) de destaque.
Como Harris disse em entrevista na semana passada, sua posição como a mulher não branca no posto mais alto possível traz consigo um grande peso.
“Eu carrego um grande senso de responsabilidade, e a seriedade da responsabilidade, de estar nesta posição e ser uma voz para aqueles que não estão tradicionalmente à mesa”, disse Harris a Dana Bash da CNN em uma entrevista exclusiva.
Um relacionamento aprofundado
A presença de Harris ao lado de Biden enquanto o veredito era lido, e, mais tarde, no Grand Foyer, quando os dois deram declarações sobre o tema, foi o ápice de semanas de conversas privadas entre Biden e Harris sobre o julgamento. Fontes próximas disseram que o caso era motivo de preocupação crescente para o presidente, que avaliava os resultados potenciais e a perspectiva de novos distúrbios em todo o país.
Mais do que em qualquer momento anterior na presidência de Biden até agora, as questões raciais e policiais que concentraram a atenção na campanha presidencial estavam emergindo novamente. O presidente, seus assessores e até a primeira-dama observaram os desdobramentos com intenso interesse, cientes de um teste de liderança que aguardava a conclusão.
Biden consultou várias vozes sobre como responder a um veredito no julgamento de Chauvin e a novos incidentes de violência policial contra negros norte-americanos. Entre os consultados estão membros do Congressional Black Caucus (a frente parlamente negra) e de sua equipe sênior, incluindo o conselheiro Cedric Richmond e Susan Rice, diretora do conselho de Políticas Domésticas.
O presidente também falou muito com a vice. Ao longo de várias reuniões em grupo e em seus almoços privados semanais – realizados sempre na mesma sala de jantar, que exibe uma pintura do presidente Abraham Lincoln se reunindo com generais separatistas do sul durante a Guerra Civil –, os dois discutiram longamente a situação, de acordo com pessoas familiarizadas com o assunto.
Foi o tipo de momento que Biden parecia antecipar quando, após a morte de Floyd no meio do ano passado e os protestos que se seguiram, ele escolheu Harris como sua companheira de chapa. Mais do que alcançar qualquer objetivo político, Biden parecia reconhecer a importância de ter uma voz com autoridade sobre questões de racismo sistêmico e aplicação da lei no mais alto nível dentro da Casa Branca.
Ele escolheu Harris, uma ex-procuradora-geral da Califórnia com quem havia lutado em questões raciais quando eles eram rivais políticos no partido, e declarou que ela atuaria como sua parceira mais próxima na tentativa de reparar um país dividido por divisões raciais e políticas.
“Você deve se lembrar que quando Joe Biden me pediu para acompanhá-lo na chapa, ele mostrou um senso de intencionalidade, de propósito, sabendo que ele e eu podemos ter experiências de vida muito diferentes, mas também temos os mesmos valores e operamos partindo dos mesmos princípios”, afirmou Harris na entrevista. “Sei que foi muito intencional para ele me pedir para concorrer e servir ao seu lado, pois eu traria uma nova perspectiva para as decisões gerais que tomamos”.
Harris se recusou a dizer exatamente o que havia discutido com Biden nos preparativos para a conclusão do julgamento – “não vou falar sobre conversas privadas, é claro” – mas deu um vislumbre de seu relacionamento com um presidente com quem ela passa horas todos os dias.
“Ele e eu estamos em quase todas as reuniões juntos, tomamos quase todas as decisões juntos”, contou, acrescentando: “Com bastante frequência, acontece de eu pedir a opinião dele sobre as coisas, ele pede a minha opinião e através desse processo penso que chegamos a um resultado. E, em última análise, é claro, ele é o presidente e toma a decisão final”.
Ela disse que continua sendo a última pessoa a sair da sala quando grandes decisões são tomadas – incluindo quando Biden decidiu no início deste mês retirar todas as tropas norte-americanas do Afeganistão até o 20º aniversário dos ataques terroristas de 11 de setembro.
Embora compartilhe poucos traços políticos com seu antecessor imediato, Mike Pence, a vice-presidente Harris também é rápida em elogiar o homem a quem serve, como o ex-vice fazia.
“[Biden] é um presidente com uma coragem extraordinária”, disse, referindo-se especificamente à decisão da saída do Afeganistão. “Eu gostaria que o povo norte-americano pudesse ver às vezes o que eu vejo, porque no final das contas – e a decisão sempre cabe a ele – eu o vi tomar decisões baseadas exatamente no que ele acredita ser certo. Independentemente do que talvez os políticos digam a ele, a decisão é do interesse dele”.
Uma tarefa difícil
Até agora, Biden atribuiu à vice uma missão importante: tentar conter o fluxo de migrantes da América Central chegando à fronteira sul por meio do envolvimento diplomático com líderes da região. Era uma tarefa que alguns de seus conselheiros pareciam temerosos de assumir, disseram pessoas familiarizadas com o assunto, devido às armadilhas políticas. Uma fonte próxima à equipe de Harris disse que alguns assessores achavam que a missão “não era a ideal”.
Mas Harris deixou claro que era um pedido de Biden, não uma ordem: “Ele me pediu para fazer isso. Assim como ele foi convidado a fazer isso”.
Duas fontes familiarizadas com o assunto disseram que ela não fez uma pausa ou recuou antes de aceitar a missão.
“Quando o presidente Joe Biden perguntou a ela, ela não hesitou”, contou uma dessas fontes, que pediu anonimato para discutir conversas internas.
Dentro da Casa Branca, a questão da imigração causou profunda ansiedade, já que os conselheiros de Biden temem que a situação possa piorar nos próximos meses, potencialmente torpedeando o bom momento com o legislativo. Recentemente, um vaivém confuso sobre o número de refugiados permitidos nos Estados Unidos ressaltou os perigos da questão e mostrou a luta que o governo está enfrentando para se firmar.
Os republicanos já usaram o caso para pintar Harris como a face do problema, questionando por que ela ainda não visitou a fronteira. Parte da reação levou a Casa Branca a deixar claro várias vezes que seu papel se limita aos esforços diplomáticos para conter o fluxo de migrantes – e não a totalidade do problema.
Pessoas próximas a Harris reconhecem que ela queria ter uma tarefa na política externa. Apesar de todos os perigos políticos que isso possa acarretar, ela vê isso como uma oportunidade de fortalecer sua política externa de boa-fé.
Harris planeja viajar para a América Central em junho e se encontrará virtualmente com líderes da Guatemala esta semana. “Não consigo ir para lá logo”, disse Harris a Bash.
Enquanto os detalhes da viagem ainda estão sendo configurados, uma fonte familiarizada com as discussões disse que ela foi instada a não apenas se reunir com autoridades dos governos na região, mas também se envolver com organizações da sociedade civil, organizações anticorrupção e grupos de mulheres, com destaque para as questões de afrodescendentes e indígenas.
“Houve uma percepção de que, quando ela for até lá, fará a curadoria dessas visitas de maneiras muito diferentes de seus predecessores”, disse a fonte.
Ainda assim, na entrevista, até Harris reconheceu que o problema não era algo que ela seria capaz de resolver no curto prazo.
“Estamos fazendo progresso, mas isso não vai ficar evidente da noite para o dia. Não vai. Mas como valerá a pena.”
O modelo do chefe
Ainda assim, mesmo com toda a atenção dada à atribuição de Harris na questão dos imigrantes, é seu papel mais amplo como parceira de Biden que está em alta na Ala Oeste.
Harris enxergou a própria vice-presidência de Biden (nos governos Obama) como um modelo. Biden determinou no início de sua própria vice-presidência que ter acesso regular ao presidente Barack Obama (por meio de seus almoços semanais e participação em todas as reuniões de que ele achava necessário comparecer) ajudaria a definir seu papel e fortalecer sua relação de trabalho.
E Harris trabalhou para imitar o relacionamento deles em cada etapa.
A vice comparece regularmente às reuniões matinais de atualizações dos serviços de inteligência ao lado de Biden no Salão Oval, lendo os comunicados diários em um iPad seguro. Em reuniões com membros de suas equipes de Covid-19 e da economia, Harris pressionou conselheiros seniores por relatórios de progresso sobre vacinações e alívio econômico para comunidades vulneráveis, disse um funcionário da Casa Branca.
Mas ela também começou a trabalhar por conta própria, incluindo uma programação de viagens domésticas que a levou ao estado de New Hampshire na sexta-feira (23). Lá, ela divulgou os esforços do governo para expandir a internet de banda larga, falando na frente de grandes carretéis de cabo de fibra ótica e fileiras de transformadores elétricos.
Harris também fez rodadas de telefonemas solo com líderes estrangeiros e se encontrou individualmente com o primeiro-ministro do Japão quando ele visitou a Casa Branca no início de abril. O conselheiro de segurança nacional de Biden, Jake Sullivan, a informou separadamente em seu escritório antes de ligações e reuniões, além de fornecer os comunicados conjuntos com Biden.
No início deste mês, Harris saiu da casa de hóspedes presidencial na Avenida Pensilvânia e se mudou para residência da vice-presidência no Observatório Naval depois de um atraso prolongado na reforma – o que significa que ela e Biden não são mais vizinhos.
Em sua viagem para New Hampshire, ela parou em uma livraria local e comprou dois livros: “Of Women and Salt” (“De Mulheres e Sal”, sem edição no Brasil), de Gabriela Garcia, cujos temas de migração e família poderiam ajudar em seu novo papel político; e o “Complete Mediterranean Cookbook” (“Livro completo de receitas mediterrâneas”, sem edição no Brasil), que pode inspirar refeições em sua nova residência mais privada, onde (em tese) ela pode convidar pessoas para seus famosos antares de domingo.
Assim que Biden e seus redatores de discursos começaram a escrever as declarações ditas ao final do julgamento de Chauvin nos dias que antecederam o veredito, a equipe de Harris começou a trabalhar na preparação de sua própria declaração, reconhecendo que sua voz seria crítica, independentemente do resultado.
“Aqui está a verdade sobre a injustiça racial”, disse Harris, falando à frente de Biden no mesmo púlpito após o veredito. “Não é apenas um problema da América negra ou um problema de pessoas de cor. É um problema para todo norte-americano. Está nos impedindo de cumprir a promessa de liberdade e justiça para todos. E está impedindo nossa nação de realizar todo o nosso potencial”.
Como senadora, Harris copatrocinou a legislação de reforma do policiamento com o nome de Floyd e liderou a campanha da Casa Branca para que ela fosse aprovada. As conversas entre republicanos e democratas se intensificaram na semana passada, embora não esteja claro o tamanho do envolvimento de Harris nas discussões.
A deputada Karen Bass, uma democrata da Califórnia que é a principal proponente do projeto de lei, disse na semana passada que a Casa Branca está sendo mantida informada à medida que as coisas avançam. Membros do Escritório de Assuntos Legislativos, junto com Rice e Richmond, estão acompanhando os acontecimentos.
Quando Harris foi questionada se estava aberta a fazer concessões sobre a questão da imunidade qualificada para policiais – um ponto chave nas negociações – ela objetou.
“Eu preciso ser totalmente informada sobre isso”, disse ela ao deixar o plenário do Senado na semana passada depois de lançar um voto de desempate. “Não me decidi sobre isso. Mas, como você sabe, eu fazia parte da linguagem – ajudei a escrever o texto”.
Não está necessariamente claro onde o projeto de lei, que suplantou a promessa de campanha de Biden de convocar uma comissão de policiamento na Casa Branca, se encaixa nas prioridades legislativas gerais do governo. O presidente está tentando aprovar um grande pacote de infraestrutura e planeja apresentar em breve um projeto de lei secundário chamado Plano da Família Americana.
Biden vai defender o projeto de lei George Floyd quando discursar na sessão conjunta do Congresso nesta semana, de acordo com autoridades. Se a tradição se mantiver, Harris ficará sentada diretamente atrás dele na tribuna ao lado da presidente da Câmara, Nancy Pelosi. Será a primeira vez que duas mulheres ocuparam a icônica cena televisiva atrás do presidente.
Com a história, entretanto, vem um fardo.
“Eu carrego um grande peso de responsabilidade sabendo que existem tantas pessoas – as gerações de mulheres que lutaram e imaginaram que haveria uma vice-presidente ou uma mulher na chapa. Penso nisso o tempo todo em termos de responsabilidade que tenho para deixá-los orgulhosos”, disse Harris à CNN.
Ela também está ciente do legado que deixará para as crianças não brancas.
“Tenho um grande senso de responsabilidade por todas as meninas e meninos não brancos”, continuou ela, “aqueles que se identificam de alguma forma porque talvez ninguém esperasse algo deles, mas eles esperam muito de si mesmos, para se darem bem, fazer o certo e fazer o bem”.
(Texto traduzido. Leia o original em inglês aqui.)